De pé, encostado ao balcão do bar, num canto onde o som das colunas, ainda que insuportável, não era tão estrondoso como noutra zona da sala, Guilherme Leão passava em revista o desastre em que a sua vida se tinha tornado e avaliava de antemão o choque frontal que se adivinhava. Era como se, ao volante de um honesto, mas humilda Fiat 600, em plena rota de colisão com um camião de transportes internacionais, apenas só já conseguisse ver a grelha do outro veículo em toda a extensão do seu vidro frontal. Como a realidade pode ser absolutamente madrasta, vivia esse momento em câmara lenta, como nos filmes, para permitir ao espectador assimilar toda a brutalidade do impacto, toda a espetacularidade do acidente que já se adivinhava. Como acontece nas simulações, nos testes de colisão realizados por qualquer fabricante de automóveis. Ele, como é óbvio, era o dummy, o boneco que fazia as vezes dos humanos nestes ensaios.
No plano seguinte, misturando e confundindo emoções, retardando o óbvio e adiando desfechos óbvios, o realizador intercalaria essa cena, no interior do inferno ainda por acontecer – com o protagonista já desistente, também ele percebendo que já nada do que pudesse fazer o salvaria do choque –, com um clássico flashback, com vários e intermitentes throwbacks. Ritmados. Histriónicos. Enervantes. Ainda assim, contemplativos. Ainda assim informativos. Amortecedores morais do caráter do pré-defunto. Isto partindo do princípio de que o camião fará o seu trabalho, cumprirá a sua tarefa, aquela que todos aceitamos como a mais realista, a de que trucidará o mínimo Fiat em situação de embate frontal. Qualquer outro desfecho, mesmo em cinema, não seria aceitável, não seria verosímil fora do contexto de comédia ou independentismos nonsense. Nesse ritmo sincopado, ora à espera da morte, ora revivendo, ou simplesmente recordando episódios passados, o espectador passaria de sádico voyeur a empático assistente de um desfecho injusto. Aquele homem, não obstante o seu poder e riqueza, era, afinal, apenas um de nós. Um de nós que conseguiu sucesso, alguma fama no seu meio, e riqueza. Nenhuma fortuna, mas o suficiente para, em termos meramente comparativos, ser considerado rico por qualquer um de nós. Por nós, entende-se a esmagadora maioria daqueles que se limitam a remar, cientes de que jamais avistarão a ponte de comando do navio. Apenas remando. No porão. Junto à carga. Esta, porém, segue inerte, tranquila, enquanto nós remamos para garantir o sustento apenas para seguirmos remando. Guilherme Leão, porém, vivia na proa, avistava os belos horizontes da vida, não obstante, e isso era do conhecimento do próprio, não ser o dono do navio. Esse, era ainda outro campeonato. Ainda mais restrito. Ainda mais elitista. Talvez, um dia, lá chegasse. Não seria assim tão extraordinário imaginar esse cenário. Noutros tempos. Não agora. Agora, aguardava-o aquele camião de inúmeros rodados, que se preparava para o trucidar. Para cilindrar, sem remorsos, o seu pequeno veículo. O problema não estava sequer na carroçaria, nem sequer na dimensão do veículo que conduzia. Um Volvo ou qualquer outro nome grande da indústria, sofreria o mesmo desfecho. Teria o mesmo final. A questão estava na desproporcionalidade. No enormíssimo desequilíbrio de forças.
Num desses erráticos episódios do passado, que a sua memória agora recuperava, sem ordem cronológica ou importância afetiva, regressou a casa dos pais. Voltou a ter seis anos, altura em que o pai lhe ensinou a pescar e a mãe lhe começou a recomendar que fosse sempre um cavalheiro para as meninas. Ainda hoje é um exímio pescador e jamais foi rude ou ficou em falta com qualquer uma das mulheres que cruzaram a sua vida, e dizer que foram muitas é, ainda assim, um eufemismo. Era um sedutor nato. Tinha carisma, diziam-lhe os amigos e os invejosos. Os primeiros, com admiração, os segundos, por puro despeito, achando que era uma arma desonesta, quase uma afronta para os restantes mortais. Guilherme chamava-lhe apenas educação e respeito para com os demais. Sempre se preocupou mais com os seus atos e atitudes do que com as dos outros, mas jamais permitiu injustiças à sua frente. Tinha um jeito frontal e direto, mas gentil, compreensivo atencioso, que era absolutamente persuasivo, encaminhando os outros para o gesto mais correto, a atitude mais certa. Poder-se-ia dizer sobre si que era um líder. Assim era visto na sua empresa, pela maioria dos seus empregados. Assim era nas relações de amizade. Um timoneiro. O homem do leme. Destemido. De peito feito para a vida. A vida, por seu lado, não facilita a vida de quem vive sem medos, com medo, por certo de que a tomem por certa.
Teria sido a ciumenta da vida a pregar-lhe esta rasteira. A colocá-lo naquele canto de um bar, enquanto avaliava o seu percurso e percebia que o seu espaço no mundo não era mais do que o exíguo interior de um carro de escassas dimensões que desafiava, num troço de sentido único, um impetuoso camião. Como tinha chegado ali? Ao volante daquele Fiat 600? Àquele atalho escuso? Àquele camião pela frente? Não havia espaço para fugir. Uma moto, talvez se conseguisse esgueirar, ainda que com os espelhos roçando as paredes laterais daquele túnel, ainda que perdendo peças ou ele esfolando as pernas, mas um carro…
Deambulava ainda, misturando na sua mente presente, passado e um inexistente futuro. Como faria o realizador. Como perceberia o espectador. Entrou de novo naquela reunião onde percebeu a cilada que lhe tinham preparado. O seu aval era necessário para um negócio milionário, mas nada escrupuloso. Apenas uma forma, mais ou menos engenhosa, mas não menos óbvia, para quem estava por dentro dos meandros financeiros, de extorquir, de enriquecer mais ainda à custa de quem nada tinha. O império farmacêutico de um lado, promovendo uma droga que não tinha sido devidamente testada, uma máfia de permeio, vendendo curas milagrosas, o Estado sem resistir ao engodo e doentes graves ou em fim de linha suplicando alternativas. Não deu o seu aval. Seguiu os seus princípios. A sua moral. Enfrentou os gigantes. Derrotou-os. Achou que os tinha derrotado. Tinha sido uma ilusão. O tempo passou. Não muito. Um dia percebeu que apenas aguardavam na sombra, para o apanhar. Faltava o castigo pela ousadia. Não que isso alterasse o negócio, que jamais seria feito, desmascarado que ficou o propósito e a natureza daquela gente. Apenas para mostrarem que podiam. Apenas para o castigar. Mais importante ainda, para alertar futuros parceiros de que de nada valia enfrentarem-nos, a eles, os poderosos. Eles seguiriam sempre em frente. Os outros, não. Ficariam para sempre virados de frente para a dianteira de um camião que não tardaria a pôr-se em movimento. Era a vida, segundo os fabricantes da mesma. Zero tempo de garantia. Pegar ou largar. Matar ou morrer.
No seu caso, foram particularmente violentos e criativos. Uma toxicodependente apareceu morta, a seu lado, numa cama de hotel. Era um homem do mundo e com mundo, mas não há conhecimento, nem mesmo da natureza humana, que nos prepare para algo tão rocambolesco. Nem mesmo a ficção. Nem mesmo o cinema. Achou que tudo não passava de brincadeira. Um jogo de mau gosto. Um pesadelo mais bem elaborado do que os habituais sonhos. Uma partida. A polícia não achou o mesmo. A droga que encontraram em sua casa não dizia o mesmo. A mulher morta, ainda que já nada dissesse, seguramente também não indiciava o mesmo. Era o seu fim. A caução tinha sido uma fortuna e precisava agora de um advogado. Não apenas um bom advogado. Precisava de alguém mais ao nível do milagreiro. Um Pai de Santo. Uma Mãe de Terreiro. De Deus, ele próprio. Deus estava demasiado ocupado, com todos os outros Guilhermes injustiçado do mundo e ele não podia aguardar a sua vez. Ainda assim, deixou o seu cartão, caso o seu caso lhe interessasse. Deus que lhe telefonasse. Estava mais certo de que Deus telefonaria antes de qualquer outro parceiro de negócios. Todos tinham roído a corda. O medo pode ser muito cobarde. Percebeu melhor o alcance dos tentáculos e garras daquela gente, quando o seu advogado se escusou a representá-lo, do que quando acordou com uma mulher que jamais tinha visto na vida morta na sua cama. Compreendeu bem o fosso em que se encontrava quando aqueles que considerava amigos lhe viraram as costas, ainda que com palmadinhas amistosas, de que o apoiariam… Mas… Não compreendia, ou antes, compreendia-o na sua total extensão. Se o queriam mesmo apoiar, não seria aquele o momento para o fazerem? Aguardariam que altura para o ajudar? Não seria aquele o caso extremo de necessidade de auxílio? Imaginariam pior? Temiam pelos seus negócios. Pelas suas vidas. Não queriam ser os próximos. Percebia que podiam até ter tido uma boa educação, mas não a sua formação. O seu caráter. Jamais virara as costas a quem quer que fosse que necessitara de ajuda com o seu conhecimento. Mesmo quando mal conhecia as pessoas, jamais permitiu injustiças. Num negócio ou num transporte público. Sorriu ao perceber como era, no final de contas, ingénuo. O perfeito totó. Escreveria um livro sobre isso, que bem se poderia chamar ‘A Vida Para Totós’.
Sentiu o telefone a vibrar. Uma mensagem. Só podia ser Deus, abandonado que estava. Não era uma mensagem. Era mesmo uma chamada. Divertido, atendeu dizendo:
– Olá Deus.
Do outro lado, uma voz que se silenciou. Que julgou ser engano. Uma voz que, ainda assim, se atreveu a falar. E logo o seu nome.
– Guilherme Leão?
Encaminhou-se para o corredor de acesso às casas de banho, para fugir ao som, que lhe parecia cada vez com maior volume, naquele bar, onde percebeu quão sozinho estava.
– Sim.
Limitou-se a dizer.
– Sou Guilherme Leão.
– Guilherme, sou eu, Adalberto Rato. Não te deves recordar de mim… fomos colegas de escola…
– Mas claro que me lembro. Por que razão não me deveria recordar de ti, Adalberto? Como estás?
Percebeu que Adalberto, não esperando aquela sua resposta, ficou sem fala, uma vez que tinha planeado todo um discurso que já não necessitaria de concluir.
– Liguei-te para saber se precisas de ajuda. Sei que não tens representação legal e, não sei se sabes, mas sou advogado. Não daqueles caros, que por certo farão fila para te representar num caso tão mediático, mas senti que tinha de te ajudar, caso precisasses. Ou, pelo menos, de te dizer que estou disponível para o que precisares.
– Porquê?
– Como?
– Porque me queres ajudar, Adalberto? Não nos vimos há uma vida, praticamente.
– Porque sempre foste meu amigo. Jamais esqueci o que fizeste comigo durante todo o secundário. Um tipo como eu, franzino, nerd, que gaguejava… Só não levei mais porrada porque sempre me protegeste. Isso não se esquece.
Aqui, pensaria o realizador, poderia recorrer a mais uma estratégia exclusiva do cinema, voltar atrás no tempo e retomar a hombridade com que Guilherme – líder indiscutível de popularidade, pelo seu porte físico e o já estridente carisma, a que o sexo oposto era particularmente sensível – sempre defendera os mais fracos. O modo como, de forma absolutamente gratuita, intercedera pelas vítimas de bullying, como tomara como suas as lutas dos outros, daqueles com menos defesas – como era o caso do fraco Rato, vítima predileta dos muitos predadores que proliferam em todos os recantos da sociedade –, sobre quem recaíam humilhações desnecessárias impostas pela força bruta por indivíduos sem caráter. Pensaria depois, ainda o realizador, que tudo ficaria melhor apenas no subentendido. Encurtavam-se elogios gratuitos a um homem que, já se percebeu, tinha um caráter impoluto. Seria chover no molhado. Seria puxar o dramatismo barato. Dispensaria esse recuo. Essa previsibilidade. Contrariaria isso com discurso direto. Com pragmatismo. O mesmo de que davam mostras ambos os protagonistas.
– Aceito.
– Como?
– De gago passaste a surdo?
– Ahahaha. Não é isso, é que, é que, não sei, julguei que não precisasses.
– É tudo aquilo de que preciso. De ajuda. Se for legal, ainda melhor.
– Ótimo. Tenho matutado no teu caso e tenho uma linha de defesa que julgo ser infalível. É que a minha mulher, imagina a coincidência, trabalha nessa farmacêutica e, bom, é uma pessoa de princípios, com uma ética acima da média corrente e, pode parecer-te mal, ou, pelo menos estranhos, mas tem vindo a acumular documentação comprometedora preciosa ao longos dos anos e…
– Adalberto, não falemos ao telefone. Não será bom para ti. Vem ter comigo. Guarda tudo o que tens para me dizer.
– Ok, ok. Tens razão. Nem imaginas quanta! Até já, então, Leão.
– Até já, Rato.
Guilherme desligou. Guilherme sorriu. Voltou a cofiar a sua juba de lutador. Sentia-se de volta ao ringue. Ergueu o copo ao teto. Olhou para cima e agradeceu. Deus sempre tinha ligado.
Moral da história:
Seja gentil. Ainda que na dúvida, seja gentil. Não custa e compensa. Até porque há sempre um leão acima de nós.
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