Se me amas, lembra-te de esquecer aquele dia. Tu sabes qual. Aquele em descobriste mentiras nas minhas verdades. Falta de concordância na minha sinceridade. Gralhas no meu amor por ti. Erros ortográficos na minha honestidade. Mas isto não é um ditado. Nem tu te podes colocar no lugar de corretor automático. Por isso, lembra-te de esquecer aquele dia. O dia em que soubeste que te traí com aquele que dizes ser o teu melhor amigo. Mas também tu não és sincero. Nem contigo próprio. Mentes, tal como eu. O Luís não é nem nunca foi o teu melhor amigo. Queres maior prova de não-amizade do que o tórrido ‘enrolanço’ em que ele e eu nos envolvemos? Tu próprio lamentavas o facto de seres o único dador nessa amizade. Que ele sempre te tinha usado em nome de interesses vários, entre eles – talvez o mais hediondo – a tua capacidade financeira para provir aos seus devaneios e megalomanias. A tua capacidade moral de pagar a conta. Todas as contas de que ele era devedor. Um romântico, defendia-lo logo de seguida, com essa tua habilidade de corrigir o teu próprio enunciado. Fica-te apenas pelo Luís. Deixa cair a palavra amigo. Um amigo de verdade não teria sexo com a tua mulher.
Que escândalo fizeste. Que eu era um ser humano falso e mesquinho. Que o mundo se esvaía à tua frente. Que era o fim do universo. Quando não era. Estavas também tu a ser mentiroso, megalómano e egoísta. Enganaste-te. O mundo e o universo continuaram bem sem ti. Nem tudo gira à tua volta. Foi apenas uma traição oportunista. Tu não estavas lá. O Luís estava. E eu também e, quase do nada, estávamos na nossa cama, com aqueles lençóis de que tanto gostas – sabes quais são? –, envolvidos numa paixão fulminante como aquela que nos unia no início. Lembras-te? Se te lembras, compreenderás. Foi uma única vez. Sem sentido. Sem propósito. Foi apenas aquilo. Naquela hora. Não teve importância. Apenas tu pareces ainda importar-te. Não sejas ressabiado. Não vivas no passado. Eu segui em frente. O Luís também. Porque não fazes o mesmo? Imagino… Correção: nem sequer imagino o que aconteceria se soubesses de todos os outros. Antes de ti e durante ‘nós’. O que seria? Que coisas más e cheias de ódio não serias capaz de me dizer? Enxovalhar-me-ias, por certo. Nem quero pensar. Quando te enervas perdes a noção. Mas eu amo-te. Amei-te sempre. Amei-te quando tive sexo com conhecidos e amei-te quando o fiz com desconhecidos. Tens de acreditar nisso, ainda que não acredites em mim. Não vês que nada foi sério ou sentimental?
Que amor poderia ter pelo tipo que nos foi betumar o chão de madeira de carvalho do corredor? Ou pelo teu chefe, que apenas vi uma vez na vida? Ou com o chato do teu padrasto? Ou com o casal de ‘helders’ que me bateu à porta, por engano, um sábado de manhã em que jogavas futebol com os teus amigos? Sempre os teus amigos e as tuas coisas. Achas bem deixares-me sozinha nos únicos dias da semana que temos apenas para nós, mas ofendes-te de morte por eu lá encontrar forma de ocupar o tempo livre. Senti-me sozinha, só isso.
Se me queres, esquece-te de lembrar as minhas falhas, os meus defeitos. Todos temos as nossas fraquezas e as nossas bengalas. Porque seria eu diferente? Porque não posso utilizar tudo aquilo que está ao meu alcance, para ultrapassar os meus obstáculos? Esquece, portanto, aquele outro dia. Sabes bem qual. Aquele em que foste dar comigo a esconder doses de cocaína no interior dos meus tampões e a voltar a colocá-los na caixa, como novos. Sim. As coisas a que me obrigo para não te magoar. Isso não conta? Sabes o que custa abrir, sem destruir, a rigidez de um OB? Não sabes! Simplesmente não fazes a menor ideia. Caso contrário, ainda me terias ajudado. Mas não. Apenas desilusão. Críticas. Gritaria e zangas. Como te melindras. Como tudo te ofende. Não pessoalizes tanto. Serás capaz de um momento de descontração? Podias, ao menos, ter elogiado, ou apenas apreciado, a minha criatividade. Coca num tampão. É hilário, ou nem isso? Quem mais se lembraria de tal coisa? Todos têm nojo de tocar nesse tipo de objetos de utilização íntima, mesmo quando ainda intocados, porque se encontram demasiado associados, colados mesmo, à utilização que lhes damos, à função que se lhes atribui. Nem as mulheres mexem nos tampões umas das outras a não ser em caso de total necessidade.
Mas é apenas algodão e o que lá pus eram apenas unidoses, nada de extraordinariamente escandaloso ou criminoso. Genial, não achas? Perguntei-te então, e pergunto-te agora ainda. Não achas? Claro que não. És incapaz de um elogio. Jamais reconhecerias uma boa ideia que não viesse desse teu cérebro. Nunca conseguirás expressar quanto brilhantismo ou heroísmo existe num feito que não tenha sido concebido ou executado por ti próprio. Tal é o teu egocentrismo. Isso denuncia até alguma mesquinhez, não te parece? Por sorte nunca percebeste que não sou realmente diabética e que as doses de ‘insulina’ guardam outros segredos. Do que serias capaz se to confessasse. Nunca soubeste dar-me espaço para respirar o meu ar, na quantidade e com a sofreguidão que me apetecer. Já eu, toda liberdades e compreensões. Nunca te critiquei o que quer que fosse. Nem o tempo que despendes com tolas ações de solidariedade, manifestações em defesa do planeta, dos animais e de presos políticos. Sabes o tempo que isso rouba à nossa relação? Quantas vezes deixei de compreender e aceitar todas essas atividades? Zero vezes. Zero vezes.
Esquece-te de lembrar. De que serve estares sempre a matutar numa coisa que aconteceu há já tanto tempo? Foi uma loucura. Nunca te apeteceu fazer um disparate, só para sentires que estás vivo e que podes, se assim entenderes, sair da roda de hamster que inventaram também para nós? Para todos nós. Todos pedalamos no mesmo sentido. Apeteceu-me infringir. Destoar. Foi só isso. Não assaltei mais do que uma meia dúzia de casas. Também não é coisa para tanto escândalo. Pareces o teu pai, a reagir a tudo como se a moral fosse chamada a todas as frestas da vida. Foi apenas uma coisa. Uma coisa louca, se quiseres. Mas já passou. Esquece-te, por favor. Só tu sais magoado, com essa tendência para reviver o que ficou para trás. Tão para trás, tão distante que já nem de binóculos alcanço esse episódio da minha própria vida. Não seja esse tipo de voyeur. Não sejas esse tipo. Nem sequer fui presa. Nunca houve provas sérias contra mim. Logo, é como se nada se tivesse passado. Se a bisbilhoteira da tua mãe não tivesse posto na cabeça que o meu terço de ouro era o dela – como se não houvesse mais terços de ouro no planeta, ou apenas a devoção dela contasse –, jamais terias desconfiado. Mas como sempre, usaste de desconfiança em relação a mim – coisa que também nunca percebi, mas sempre aceitei, sem críticas –, lá embarcaste na história da ‘mãezinha’. Por amor da santa! Vê se cortas o cordão umbilical. E fica sabendo que sou uma pessoa bastante devota. Entre o bem e o mal, avalio sempre aquilo que é capaz de satisfazer maior número de pessoas. Premissa que sempre balizou os meus atos aos olhos de Deus e dos homens. Podias respeitar isso. Caso consigas, claro, já que me sinto sempre num tribunal, à mercê apenas de acusação. Sem defesa ou retaguarda.
Esquece-te de lembrar. Pelo nosso amor. Pelo respeito que deves a este nosso mundo, criado com tanto afeto, contra ventos e tempestades. E se eles foram muitos, tanto os primeiros quanto as segundas. Sempre me senti a vogar contra as marés. Esquece-te de lembrar apenas as coisas negativas. Todos cometemos erros. Ninguém é expert em perfeições. Nem Deus. Não o exijas de mim. Esquece-te de lembrar o dia em que achaste que teria de ser o nosso último. Como podes não entender o meu ato de caridade, a coragem de que dei provas ao fazer aquilo que ninguém mais teve coragem de realizar? Como consegues não te congratular com a minha proatividade e a minha capacidade de realização? Foi um ato de humanidade e amor. O derradeiro ato de amor, diria mesmo. Uma pessoa sensível como eu não consegue olhar o mundo pelo prisma mediano, pela mediocridade do aceitável, pela insuficiência dos parâmetros gerais. Foi um favor que fiz a todos. Era, para mim, tão óbvio o que havia a fazer que nem pensei. Não consigo assistir ao sofrimento alheio. Desculpa, mas eu sou assim e se não o sabes aceitar, se não o compreendes, então, talvez seja eu a não puder perpetuar este fake love. A coitadinha não aguentava mais. Entre ela e uma vagem de feijão, distava apenas um a dois tons de verde. Tive de desligar a máquina. Tu estavas desfeito, a chorar no corredor, para não me transtornares, bem sei, e eu não tive alternativa. Desliguei tudo aquilo que estava ligado à ficha, até a televisão, não fosse a telenovela ressuscitá-la, que ele há guiões levados da breca. Para assegurar certezas, culminei com o doce e fofo toque da almofada sobre a já ausência de respiração. Ela agradecer-me-ia tal como tu próprio o deverias ter feito, logo que percebeste. Agora vens-me com a invenção de que ela apenas dormia e que os sobressaltos eram sonhos, normais no seu estado. E que estado. Mas tu saberás o que dizes? A coitadinha já tinha milhares de anos, o que mais a poderia esperar? Um final de vida no hospital? Num lar a ser maltratada? Apenas uma indigestão pós-operatória? É isso em que queres acreditar? Pois, então acredita, mas não recrimines o meu gesto. Uma senhora daquela idade a ser operada às varizes… Claro que se lhe adivinhava o fim. Pura caridade. Pura empatia.
Era a tua avó preferida. Aquela que te criou, dadas as muitas ausências dos teus muito viajados pais, mas estava a morrer, como todos nós, de resto. Aceita que o fiz com a mais pura e dedicada das intenções. Precisamente por ela te ser tão especial é que agi, sem reticências ou falsos moralismos. Todos morreremos, um dia. Aquele era o dia dela. Aceita o destino. Não lhe podemos fugir. Quando chega a nossa hora… Não acredites em tudo o que os médicos te dizem. Achas que não mentem? Que sabem tudo? Que são perfeitos? Que não se enganam? Claro que achas. A única capaz de tudo isso, em teu entender, sou apenas eu. A louca. Louca de paixão, fica sabendo. Tudo fiz por amor. Amor por ti. Amor por ela. Se os médicos são tão divinos, porque estava ela no hospital? Porque não a curaram? Alguém tinha de agir. De evitar que sofresse. De evitar que a visses sofrer. Além de que és o seu único herdeiro. No meio disto tudo, ainda te fiz mais esse favor. Como é que não entendes o meu amor por ti? Não. Preferes remoer na negatividade. Espremer defeitos, como quem rebenta borbulhas dolorosas. Daquelas que crescem mesmo, mesmo no limite dos lábios ou perto do nariz. Pequenos seres malévolos, com as suas tropas de pus que imobilizam o mais forte dos homens. Todos cedem perante uma borbulha. Todos, exceto tu. Tu adoras automutilação. Sádico. Não apenas isso. Também és masoquista e insensível, pois não entendes o sofrimento que me causas com tantas acusações e ações jurídicas e perseguições. Aceita que te amo e, por favor, esquece-te de te lembrares de tanta parvoíce. Contra mim, apontas a mesma meia dúzia de pequenas idiossincrasias de sempre. É passado. Não voltes lá. Não nos martirizes. Nunca erraste? Nunca mentiste? Nunca traíste? Serás o primeiro anjo na terra, por certo. A vida é demasiado curta para que não se ame sem limites, como eu te amo a ti. Tu também me mentes. Estás sempre a inventar filas de trânsito para justificar atrasos. Há lá assim tanto trânsito? Nem pensar! Eu julgo-te ou recrimino-te? Encho-te a cabeça com desconfianças? Não. Porquê? Porque sou compreensiva e tua amiga.
Lembra-te de esquecer que muito do que fiz foi porque mo pediste. Ajuda os bombeiros, dizias-me, mas quando acorri a salvar o mês de dezembro de um casamento de fachada, mostrando-lhe que sim, a sua masculinidade nada tinha de defeituoso ou de errado, lá vieste com acusações despropositadas. Tens de ser mais esclarecedor e específico. Se não querias intimidades, deverias ter-me advertido: vai ajudar os bombeiros sem os levares para a cama. Bastava isso. Era pedir de mais? Sem instruções pormenorizadas, ajudei naquilo que melhor sabia. Claro que junho, maio e fevereiro também não andavam bem e eu dei continuidade ao benemérito projeto ‘salvar os bombeiros’. Lá veio outro escândalo. Lá veio o drama. Que sensível! Que delicodoce! Claro que postei tudo nas minhas redes sociais. Como não fazer brado de um ato de solidariedade? Não te entendo. Palavra que não te percebo. És demasiado moralista. Tu. A tua família. Os teus amigos. Os outros. Todos. Pois eu sou eu. Sou a única pessoa no mundo igual a mim. Ímpar. E gosto de mim. Aceito-me como sou. Livre. Sem espartilhos ou disparates na cabeça. Compreendes isso? Que sou rebelde, selvagem, livre? Vá lá! De que te serve essa memória eterna? Esse constante remoer de lembranças? Onde te levará tamanho ressabiamento?
Sabes que mais? Não consigo viver com uma pessoa como tu. Não suporto tamanha maldade e mesquinhez. Tanto julgamento. Tanta vitimização e comiseração. Só pensas em ti. És incapaz de empatia, de te colocares no lugar do outro. Mas que homem és tu? Olha, não quero mais saber aquilo de que te lembras ou aquilo que esqueces. Já fui. Já esqueci.
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