Enxertos. O marido era ótimo a enxertar. Só no pequeno quintal das traseiras do anexo que arrendavam aos sogros, tinham para mais de uma dúzia de árvores mágicas e esquizofrénicas. Cada uma delas aglutinava espécies diferentes, em número variável, suscitando nomenclaturas, elas próprias, híbridas e estapafúrdias. Macigueira, que tanto dava maçãs como figos, por vezes dava mesmo nada, que a seiva baralhava-se na entrega de informação específica e isto de fazer de Deus, já se sabe, é sempre labor complexo. Nesrã era outro dos prodígios. Ora dava nêsperas, ora dava romãs, em diferentes alturas do ano e conforme as possibilidades da árvore, cuja miscelânea de tamanhos, formatos e cores de folhas era bonito de ver. Mas daquele bonito circense, que tanto é verdadeiramente belo e encantatório, como horripilante e deprimente. Uma espécie de mulher das barbas das árvores de fruto. Já para não falar no espetáculo aleatório de folhas e falta delas conforme as espécies amantizadas à força. Bem sabemos como o amor exige entendimentos vários, os quais o mero sexo não contempla nem providencia. Com as árvores acontece o mesmo. Podem medrar, mas não cumprem o seu potencial, não excelem. Não é por serem de matéria vegetal que não sentem o mesmo desconforto, vergonha e embaraço, nem o facto de estarem presas no chão as impede de perceberem a sua falta de autoestima por tamanha aberração. Nem as aves as entendem. Há ninhos que se descobrem a meio de uma estação, ficando metade ao relento, por conta de inesperadas folhas caducas, e metade ao abrigo de parte de copas perenes, e ninguém gosta de ser enganado por senhorios trafulhas, mais ainda quando isso resulta no desalojamento de toda a família. Episódios desses não eram inéditos na Alfareira, que tanto pendia para a alfarroba como para a cerejeira.

Havia também um pé de laranja-lima. Menos mal. Sempre pareciam géneros, de alguma forma, comunicantes, dentro dos citrinos, mesmo tipo e cor de folha, frutos que brotavam na mesma altura, ou por aí, e que se podiam juntar num mesmo sumo, sem agravos de maior. Talvez mais umas colheradas de açúcar, para limar o travo da lima. Todavia, ela fugia do pé de laranja-lima sempre que tinha afazeres, pois era uma árvore muito faladora, sempre interessada na sua vida e curiosa acerca de tudo em redor. Por vezes era cansativo. Nessas alturas, refugiava-se na Diosvideira, cuja azáfama interior para conseguir gerar dióspiros numa fase do ano e uvas na outra, lhe ocupava todo o santo tempo, o que largamente desculpava a sua antipatia e aquele ar solene de antissocial, que funcionava como polo negativo, repelindo tudo e todos em seu redor. Nem as toupeiras por lá passavam. Não sabia sequer quem se dava ao trabalho de a polinizar.

 

Medrotina, um cocktail de medronhos e clementinas, era quem acusava com maior histeria a sua dupla personalidade. No geral, parecia um carro alegórico de um qualquer Carnaval de poucas posses, de uma terriola do interior pagão. Um perfil disruptivo, mesmo no meio de toda a alarvidade daquele quintal sui generis. Gostava particularmente daquela árvore. Gostaria de encontrar igual falsa alegria nas suas idiossincrasias, nas várias formas pelas quais sentia que também ela destoava do resto do mundo. Mesmo no meio daquele estranho pomar, nem sempre encaixava. Sempre de fora. Sempre do outro lado. Sempre à parte, como a salada.

Ainda assim, era no meio de toda esta miscigenação que sentia pertencer. Também ela contava com inúmeros enxertos que em nada se harmonizavam com aquilo que sentia ser por dentro, menos ainda com o que sonhara vir a ser. Tudo tinha sido um forçado e macabro enxerto na sua vida. Desde logo o seu casamento. Uma gravidez precipitara a sua adolescência para o abismo da casa dos sogros. Um buraco fundo, onde a única luz que entrava percorria aquele pedaço de terra com um estranho e macabro desfile de árvores transgénero. Nascida de uma maneira e desenvolvidas de outra, sem nunca acertarem o passo com o esperado, prisioneiras dos enxerto do marido. Tudo, afinal, em vão. Não era uma criança o que trazia na barriga, mas um quisto.

Eliminou-se o mal à sexta semana de gravidez quística e com ele a esperança de poder ser mãe. Ainda tentou reverter o processo e regressar a casa dos pais, mas a mãe já tinha levado o amante lá para casa, a fim de ajudar nas tarefas domésticas, uma vez que o pai era cego, ou, pior, fingia não ver, e ela não dava conta do recado. O seu lugar, por assim dizer, já não existia no preciso local onde julgava pertencer ainda. Voltou, vexada e quase muda, para casa dos sogros, mas também aí já tinha perdido o lugar. Uma prima afastada, que sonhava ser homem quando fosse grande, tinha iniciado o processo de adaptação da sua biologia à sua identidade sexual e, como o hospital era mais próximo da casa dos primos, passou a ocupar o quarto de visitas, onde ela tinha passado a sua lua de mel, a assistir a uma gala do Big Brother Brasil, de mão dada com o marido. Bem vistas as coisas, terá sido o momento mais romântico da sua vida. Foi, então, dada a presença da prima quase primo, que ela e o marido ganharam a independência, ocupando o anexo das traseiras.

 

Foi aí e por essa altura que o marido descobriu a paixão pelos enxertos. Começou por enxertar um filho à vizinha da rua de baixo, dona de uma sex-shop, da qual era o brinquedo favorito da clientela. Um nado-morto que sobreviveria menos tempo ainda do que o seu saudoso quisto. Seguiu-se o enxerto de porrada que o namorado da outra deu ao marido, pois se havia coisa que o fulano sabia é que tinha feito uma vasectomia, pelo que o pequeno defunto não podia ser seu, não é verdade? Uma cirurgia veementemente recomendada pelo seu contabilista, uma vez que se a namorada engravidasse, como sobreviveria o negócio da sex-shop? Podiam ter-se estragado duas casas, mas como a sua não era sequer uma casa de verdade, só os outros dois se separaram. Foi ainda o fim da sex-shop, para grande tristeza do bairro, pois era o único local onde também podiam colocar o Totoloto e o Euromilhões e onde as raspadinhas desvendavam sempre umas figuras muito atrevidas. Recordava-se bem de quando ganhou mil mamilos e quinhentos clítoris com um único cartão.

Quanto ao marido, ainda a remoer o escândalo e a humilhação da sova pública, refugiou-se na agricultura caseira. Começou a enxertar como se disso dependesse a vida do planeta. Passava o tempo na poda, nos golpes cirúrgicos, no entalhe de ramos, e alturas houve em que o pomar mais parecia uma enfermaria de árvores acamadas, cheias de pensos e compressas nos galhos. Bem esgalhadas, umas, mas nem tanto, muitas outras. Talvez fosse um artista por realizar, achava ela, já que o marido, no fundo, se dedicava a tentar mudar a natureza das coisas e isso é o campo de ação dos artistas ou dos deuses. Criam coisas em que ninguém mais pensou e que depois de estarem criadas nos fazem pensar, a nós. Se bem que era curto o tempo em que se pensava nas criações do marido. Até porque quando se tem um pomar, o mais interessante é o sabor dos frutos e, antes disso, a sua existência na árvore. A questão da variedade, num menor espaço e com menor número de pés de árvore, são de menos importância e o certo é que a quantidade e a qualidade não eram extraordinárias. Ou seja, depois da surpresa inicial, em que não se entende muito bem para o que se está a olhar, devido à algazarra de coisas que não batem certo, a habituação surge rápida e tudo passa. Ela devia ser a única que ainda dedicava alguns resquícios de surpresa e admiração aos enxertos e às enxertadas.

Revia-se naquele pedaço de inadaptação à realidade e à natureza das coisas. A todo aquele wannabe-mas-não-sou-capaz, a toda aquela desarticulada aspiração a algo que nem sequer se percebia o que poderia ser. Apenas inspiração, apenas insatisfação. Apenas desilusão. Frustração, na verdade. Também ela sentia braços estranhos a extraírem-lhe potencial, a desviarem para outros caminhos a seiva que deveria estar guardada para outros propósitos, o ânimo necessário a tarefas mais prazenteiras, o húmus vital aos seus anseios. Tudo acabava canalizado para um anexo nas traseiras, junto de um homem que enxertava por aí e um pedaço de terra que paria aberrações. Ela incluída.

Podia sair. Fugir até, mas sentia que ganhava raízes por ali, naquele globo de vidro, naquela bolha à qual faltava apenas quem a chocalhasse para ver cair a neve que ali também não existia. Granizo, sim. Neve não. Geada, muita. Por vezes passava e deixava atrás um manto preto de morte. Tudo queimado. Nada sobrevivia ao peso do seu gelo mortal. Mas logo vinham novas ervas, outras flores, despontavam rebentos, rebentavam vidas outras no mesmo lugar ou em sítios vizinhos. A terra é mãe, é boa. Protege. Permite. Possibilita.

Era dia de dar dois dedos de conversa ao pé de Laranja-Lima. Talvez lhe lesse uma ou duas passagens de um livro que andava a mastigar e que exigia desfecho, ou uns poemas. Laranja-lima gostava de poesia. Mas a poesia era quase sempre melancólica e a ela apetecia-lhe batom vermelho e um refrescante gin tónico. Nada de lamechices. Era dia de saia curta e decote bravo. Hoje, o marido que fosse enxertar para onde quisesse, ela tinha planos e bem que podiam incluir o chefe da esquadra de polícia que voltava a abrir na zona, depois de anos de translado para uma freguesia rival.

– Fazes bem! Tudo isto é demasiado insano e breve, para que castremos os nossos desejos.

Laranja-Lima no seu melhor. Sabia exatamente o que se seguiria. Um inquérito-rajada sobre o polícia, disfarçado de genuíno e empenhado conselho para que avançasse, sem medos. Talvez fossem sinceros – o empenho e a preocupação –, mas o verdadeiros propósito era apenas cuscar tudo sobre o assunto e ficar a saber mais do que qualquer outra pessoa ou árvore enxertada. Estava na sua natureza. Era o doce e o mel, tudo em um e não a podíamos culpar. Se pudesse ter decidido, não seria um dois em um, um bifásico mal-amanhado que de manhã dá limas e à tarde laranjas. Ter-se-ia ficado com o que Deus lhe deu, o que, por norma, já é tarefa mais do que suficiente e ainda sobra. Veja-se o caso da prima/primo dos pais do marido.

– É verdade, como é que vai o processo da pobrezinha? Ou já é um pobrezinho?!

Laranja-Lima exultava com o muito que queria saber sobre esse caso e o assunto em geral. Era um tema complexo e doloroso, mas tinha ainda socialmente a componente de mexerico necessário para o seu guloso palato.

Conversaram sobre o assunto, foram lidos uns quantos parágrafos da imprensa cor-de-rosa que a de outra cor é muito deprimente, fizeram-se confidências e a tarde até que estava animada. Acima de tudo, eram amigas. Ambas enxertadas numa vida que não escolheram e ambas podendo decidir não alimentar mais os ramos alheios, os párias instalados nas suas veias, mas sem nunca avançarem por aí. Podiam simplesmente deixar mirrar até à inexistência os alienígenas. Secariam e cairiam como se nunca lá tivessem estado. Libertar-se-iam de espartilhos, deixando de nutrir aquilo que as consumia, aquilo que impedia a sua real natureza de se exprimir como era suposto. Poder-se-iam, então, cumprir em plenitude e com graça, também. Claro que parte do encanto daquelas tardes de tagarelice era tanto mais intenso e suportável quanto mais gin ela bebesse e nesse dia, a tarde estava a ser extremamente en-can-ta-do-ra.

Nisto, percebeu que tinha estado com as mãos ocupadas, absolutamente absorvida por tarefas manuais, esgrimindo saberes com a destreza de um experiente artesão. Tardou um pouco a entender o que fazia ou porque o fazia. O torpor do Beeffeater, very dry, como gostava, tornavam tudo ainda mais insano e turvo, mas também mais divertido. Continuou o que estava a fazer, mas a partir do momento em que lhe passou a prestar atenção, foi como se deixasse de saber o que e como fazer. É como quando somos apanhados desprevenidos, a dançar tresloucadamente, mesmo sem música e até não nos estamos a sair mal, quando, de súbito, percebemos alguém a observar-nos e tudo se desmorona. Pisamos os próprios pés, caímos sem ritmo e sem graciosidade e, de repente, um momento de pura elegância e felicidade interior é tão-somente tema de chacota, inclusive para nós.

By Erwin Blumenfeld

Ginmoeiro. Tinha acabado de inventar a sua primeira árvore com elevado grau alcoólico. Um gin que já vinha com uma rodela de limão, um limão que já sabia a álcool. O que diria o marido sobre aquilo? E o negócio que não poderia nascer dali?

– Olha. Também sabes enxertar! Tens de me fazer um desses, mas com tequila. Já imaginaste como nos vamos divertir? Tens sal?

Moral da história:

Mesmo que não queira mudar, pode sempre melhorar.

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