Não podia ser tudo verdade. Sabia que a felicidade não existe sozinha, em absoluto. Não é uma cor patenteada. Um objeto visível. Não é um facto. Não é palpável ao tato, nem descritível por palavras. Pertence àquela família disfuncional dos sentimentos. É volátil. Difícil de estabilizar. Difícil de identificar, até. Nem sempre se percebe o que é, como é, de onde vem, de que é feita. Menos ainda quanto tempo vai ficar. É instável e caprichosa. Cheia de amuos e sensibilidades. Sabe-se apenas que se vai. Não fica por muito tempo. Quando surge, já vem com bilhete de regresso, com data de ida, de volta para aquele lugar incerto e desconhecido de onde nos chega, tantas vezes de supetão. Quando se demora mais do que o médico que vem visitar aquela constipação que teima em gozar férias na nossa garganta – e visita de médico é, como se sabe, bitola universal, para medição de tempos vagos –, sabemos com ansiedade, com tremores de expectativa, que deve estar de partida. Isto se não se foi já, apenas não reparámos.

Não vimos que já estava de malas feitas. Que já nos virava costas e nós ainda a falar, mas já sem interlocutor à vista. Triste e humilhante. A felicidade, não sendo de porcelana, parte-se facilmente. Não sendo líquida, evapora-se à menor corrente de ar. Não sendo de madeira, arde num instante. Consome-se. Tantas vezes sem que nos permita tempo ou consciência suficientes para a saborearmos. Estava habituada à sua volatilidade. Aos seus caprichos e destemperos. À sua inconstância e temperamento imprevisível. Sabia que a felicidade, pelo menos na sua vida, muitas vezes apenas assomava à porta. Em alguns momentos bateu à porta, ao de leve. De forma quase impercetível ao ouvido humano. Outras, terá insistido, tocando fremente à campainha, é verdade. Mas sempre que correu para abrir a porta, por meros segundos que tenha gastado na tarefa, por mais célere que fosse o passo precipitado do seu coração, ao abri-la, expectante, já ela lá não estava. Parecia brincar à apanhada, a ladina. Parecia um aprendiz de mago, praticando as suas habilidades ‘houdinescas’.

Por tudo isto e outro tanto, Jacinta sabia bem que não podia ser verdade. Aquele nervosismo, aquele aperto no peito se o telemóvel não tocava, aquela ansiedade incontrolável que antecedia os seus encontros, aquelas unhas já no sabugo sempre que ele se atrasava… Não podia ser amor verdadeiro. Não devia, sequer, ser paixão. Ora, como também não podia dizer que fossem amigos – que a amizade implica maior solidez, mais partilhas, confidências, risota, medos e lágrimas –, então, tudo aquilo que lhe fervilhava lá dentro, só podia ser… colesterol. Isso. O seu médico podia recebê-la apenas daí a uma eternidade, pelo que consultou antes o Dr. Google. Sempre disponível, sempre a horas, e doutorado em todas as especialidades de todos os universos conhecidos e desconhecidos, reais ou imaginários, o mais certo seria já nem precisar de recorrer ao Serviço Nacional de Saúde. Melhor! Ora, colesterol. O que o Dr. G. sabia sobre esta gordura e as suas várias faces, era bestial. Havia, porém, um entrave de monta: havia necessidade de fazer análises clínicas a fim de medir quais os seus níveis exatos, valores sem os quais não se podia avançar para um tratamento. Percebeu ainda que os sinais de colesterol alto não incluíam palpitações e outros apertos cardíacos… Claro. Era isso. Devia ter um sopro. Uma arritmia. Um qualquer desassossego cardíaco. Isso, sim, justificaria até os suores frios e aquele aperto no coração sempre que o via. Deveria, portanto, deixar de o ver. Afastando-se a causa, evita-se o efeito. Muito simples.

Nisto, o telefone toca. É ele. Ciente, agora, de que o seu estado de nervos e a sua débil saúde se deve a um sério caso clínico e não a uma possível paixoneta, não atende, apenas retira o som do aparelho, para não exaltar o seu músculo cardíaco predileto. Tinha de se poupar. De acautelar derrames internos, AVCs e até embolias. Estas, quando fatais, eram ótimas. Um simples interruptor que se desliga e pronto. Tudo terminado. Tudo limpo. Um cadáver impecável. Mas quando não atingem a perfeição mortal, as embolias são demoníacas. Já se imaginava a babar-se, numa cadeira de rodas ou, pior, numa maca, completamente dependente de tudo e todos para os mais básicos afazeres fisiológicos. Sentiu um vómito preso na garganta. Tinha de afastar esses maus pensamentos. Merecia a felicidade, uma vida sem sobressaltos. Tinha de fazer um esforço extra, já que a sua era uma saúde débil, como bem sabia. Percebia-o sempre que vislumbrava alguma exaltação. Pequenos assomos de alegria, interrompidos de forma abrupta pela sua frágil condição física. Um padrão que recuava aos tempos da sua infância, mas que se tornou mais óbvio e premente com o passar dos anos.

Nunca se chegava a habituar a ser feliz. A sua condição não lho permitia. Recordava o caso peculiar e dramático do seu baile de finalistas. Conseguira emagrecer os três quilos necessários para caber no vestido que tinha eleito, numa loja da baixa. Tinha tanto de giro e sedutor, como de caro, mas não era o seu número. Determinada, focou-se nesse objetivo e em apenas uma semana, o vestido servia-lhe e já balouçava num cabide lá de casa. Faltava-lhe um par à altura de tanta elegância. Num golpe de coragem, quase desaforo – tão improvável que era ser bem-sucedida –, Jacinta arriscou um convite a um colega da turma da sua melhor amiga. Um ano mais velho, e giro de morrer, seguramente já tinha planos e par. Não quis saber. Lá foi. O ‘não’ está sempre garantido, pelo que, tudo o que conseguisse acima disso já seria um ganho substancial. Não é que ele lhe achou a maior graça e aceitou? Não cabia em si de contente, mas para essa dieta – a fim de voltar a caber em si – já não havia tempo. Mal sabendo, Jacinta, que começava aí um somatório de contas de horror que perfaziam a história da sua vida amorosa.

Aquele deus do Olimpo a tocar à campainha, para a ir buscar, e ela num confronto miserabilista com questões intestinais na casa de banho. Não precisou de ir ao médico para saber que tinha aquela síndrome pavorosa do colon irritável. Era irritável, sim senhor, pois parecia exibir-se em todo o seu fulgor sempre que algo de bom estava para acontecer. Não foi ao baile. Não chegou a beijar aquele Adónis dos subúrbios, nem voltou a ter melhor amiga, pois parece que também ela andava de olho naquele colega, desejando secretamente ser ela a eleita para a noite do baile. As pessoas são estranhas. Se falassem abertamente, tudo seria tão mais simples. Enfim. A vida encontra compensações para tudo.

Já na faculdade, onde chegou calamitosamente virgem, impôs a si própria objetivos claros para o primeiro semestre: perder a dita cuja virgindade o quanto antes, para depois se permitir alguma promiscuidade, que o tempo passa demasiado depressa para que deixemos coisas por fazer. Além de que há idades e lugares certos para tudo, ultrapassados os quais tudo se torna mais difícil, senão mesmo patético. Jacinta chamava-lhes C.C., Condicionantes Castradoras. Tinha, para si, vários exemplos. Tirar a carta de condução era um deles. Isso deve ficar resolvido logo que se atinja a idade legal, ou antes, mesmo. Só na loucura da adolescência consideramos excitável entrar numa máquina demoníaca, que não controlamos com as meras 25 lições, e avançar a toda a velocidade por estradas e caminhos, cujos sentidos desconhecemos por completo. Se se tiver o azar de só se conseguir tirar a carta mais tarde, a consciências e a nova forma de balizar perigos e medos vai comprometer definitivamente um bom resultado. Haverá exceções, obviamente, mas são apenas isso, e não são para aqui chamadas.

Não é à toa que é nessa idade que se forçavam idas à tropa. Há coisas para as quais é necessária uma generosa dose de inconsequência e irresponsabilidade. Quando começamos a pensar nas coisas, acabamos por percebê-las de formas que nos impedem um total envolvimento. Claro que a virgindade estava nesse rol e começava a ser uma pedra no seu sapato, se bem que também desconfiava de um caso sério de joanete a ser avaliado para uma possível operação.

Cedo se encaminhou um romance tórrido e secreto com um professor assistente a quem, para evitar constrangimentos ou que ele desistisse, escondeu o seu estado imaculado da cintura para baixo. No papel de jovem destemida e aventureira, ele jamais desconfiaria e acabaria por livrá-la daquele peso. Tudo se proporcionou convenientemente num dos gabinetes vazios num período de tempo fora de horas de expediente ou qualquer outra atividade académica. Ora, mesmo, mesmo quando a coisa chegava ao destino é traída pela sua saúde. Um desmaio. Uma fraqueza e a certeza interior de que era diabética. Nem precisou de confirmação, aquilo cheirava a falta de insulina. Com o susto – entre o pânico de se ver na contingência de chamar uma ambulância, que afinal não foi precisa, de ter de explicar o que fazia com uma aluna àquela hora num gabinete que não era o seu e com a instalação das Condicionantes Castradoras, que lhe deram tempo para avaliar a insensatez da sua atuação –, o caso com o professor terminou ali, naquele preciso instante em que ela retomou os sentidos.

– Vamos ficar por aqui.

Ficaram. Ficaram e bem, pois que não sendo amor, nem paixão, Jacinta cedo encontrou algo bem mais apetitoso, já que homens não faltavam naquela universidade versada em engenharias, sendo que estas pareciam agir como repelente de raparigas. Havia todo um séquito de pretendentes para cada uma das estudantes. Aquilo, sim, era vida. Lá conseguiu o propósito de perder tudo aquilo que havia a perder e ser um pouco promíscua, seguindo as prioridades do seu plano.

Nisto, em pela atividade de libertinagem sexual, entra na sua vida o Incomparável Jorge. Incomparável em tudo. Ninguém chegava aos seus calcanhares. Era mais alto do que todos, mais divertido, mais giro, mais sedutor, mais educado, mais brincalhão, mais interessante na forma de ver o mundo e o interpretar… Até era melhor aluno e ainda tinha posses. Incomparável Jorge era aquele tipo de herói cinematográfico que, de tão perfeito, achamos improvável e que, no enredo, cumpre meros propósitos ficcionais. Mas Incomparável Jorge era real. Existia, mesmo e, que delicioso guião, estava interessado em si. Não era linha. Era bingo. Até o seu colon andava menos irritado e já nem sentia falta de insulina. O amor também cura, era, por esses dias, a sua otimista máxima. Conheceram-se as famílias, houve noivado – tudo muito clássico, que a família dele é dada ao catolicismo formal –, houve pedido de casamento, anéis de herança e data de casamento. Tudo maravilhoso. Claro que quando a esmola é grande o pobrezinho veste-se de desconfiança, mas nem ela se preveniu para o que estava para vir. Na manhã do casamento, naquele preciso instante em que a sua vida se preparava para atingir os píncaros da felicidade, para espetar a bandeira no cume do monte, eis que tudo regressa à base, por conta de uma avalanche que a arrasta para a planície.

Jacinta descobre que tem múltiplas personalidades, ou, para usar de rigor clínico, sofria de transtorno dissociativo de identidade , vulgo TDI. Uma parte dela quer casar-se acima de qualquer outra coisa, outra lembra-a de como tudo aquilo é idiota e retrógrado, uma outra mostra-lhe como está demasiado gorda para aquele vestido com saia de princesa que a contorna de forma ridícula. Uma outra parte de si, não menos decidida do que as outras, recorda-lhe um facto primordial na história da humanidade: a família dele não permitirá que aquilo dure muito tempo, já que ricos e pobres não se podem juntar à mesma mesa… Havia tantas elas em si que, por amor incondicional ao Incomparável Jorge, decidiu que não se podiam casar. Não podia impor na vida daquele homem perfeito uma saúde que somava desgraças clínicas atrás umas das outras. Um pouco de decência. Em seu lugar, enviou um relatório clínico e a necessidade que sentia de ser internada para que algum médico com um pingo de humanidade a tratasse com choques elétricos. Não lhe bastavam as desgraças físicas, agora também as do foro psiquiátrico. Porque não conseguia ser feliz? Porque tinha de ser tão doente? Não chegava a ser feliz o tempo suficiente para que se habituasse. Pobre de si.

Seguramente, o fim estaria perto e o seu corpo, pressentindo-o, forçava-a à solidão, como acontece com os animais selvagens, dotados de honra e sabedoria. Ou talvez não. Acossada na sua própria toca, percebia como ainda estava bem presente na sua memória aquele outro episódio não menos dramático, o do escorbuto, ao qual acabaria por sobreviver milagrosamente. Em grande parte, fruto do seu otimismo e força de vontade, pois que se tinha por uma brava lutadora. Escorbuto, sim. Improvável, mas não impossível. Aventurou-se, pela mão – e não só – de um amante louco pela Amazónia dentro, ele fotógrafo em busca de fama e prémios, ela apenas apaixonada pela biodiversidade e com uma série de novos biquínis para estrear e lá foram floresta tropical fora. De entre tudo o que lhes poderia acontecer, tendo em conta que ela era diabética, tinha o colon naquele estado miserável, personalidades várias e nunca se sabia qual delas acordaria a cada dia de estada naquelas paragens inóspitas e desconhecidas, pois ela apanha escorbuto. Só podia, e nem valia a pena gastarem dinheiro em helicópteros ou lanchas velozes que os levassem a um centro médico, pois ela reconhecia escorbuto a três molares de distância.

Um pouco de rede e qualquer um consegue o diagnóstico claro de umas gengivas à beira da morte. Não era o caso, naquele fim de mundo exótico, mas ela já tinha lido o suficiente sobre cancro da boca, para saber que ou era isso ou escorbuto. Rogou-lhe que a deixasse morrer entre os indígenas e ele assim fez, pois já tinha fotografado aquela tribo e muito mais havia para registar. Combinou com ela que era apenas um até já, que regressaria para se casarem e serem felizes. Cumpriu, mas Jacinta tinha já abraçado um estilo de vida primitivo, ao qual se renderam, após terem curado as suas gengivas com umas folhas de tabaco milagrosas. Bom, isso foi o que inicialmente achou, percebeu depois que aquilo era venenoso e que estava com um cancro nos pulmões à conta daquela brincadeira. De volta à civilização, recusaram-se a tratá-la com quimio ou rádio. Sentiu-se descriminada, mesmo quando lhe asseguravam que era apenas uma reação normal dos pulmões ao ar demasiado puro. O quê? Queriam era poupar o SNS, mas não o fariam à sua conta.

É por esses dias que se vê envolvida num tórrido caso de amor sério com um dos médicos do hospital. Que alívio. Um amor completo, que a poderia compreender em todas as suas vertentes, física, psíquica, moral, espiritual, afetiva… Aquilo era uma panaceia completa. Finalmente, podia automedicar-se sem exaltações nem receio de ser apanhada com prescrições falsas. Amá-lo-ia até ao fim dos seus dias. Dos dela, que era débil e fraca, ele seguramente viveria bastantes mais anos. Não ficaram juntos para perceber isso. O que ela tinha era de outra especialidade e ele, longe dos corredores da psicologia, onde achava que ela deveria procurar ajuda, apenas gostava de a privar de drogas. Não veria ele como ela era frágil? Um passarinho? Que homem sinistro. Nunca mais o quis ver, pois não se dava bem com pessoas insensíveis e demasiado saudáveis. Quem nunca teve uma dor não compreende o desespero e o carinho que se devota aos analgésicos.

Logo ela, que apenas queria ser feliz. O raio daquela saúde debilitada e debilitante, que não o permitia. Mas já tinha passado a fase da revolta. Vivia há demasiados anos com as suas maleitas para que ainda perdesse tempo com inconformismos. Ela era assim e pronto. Viveria com isso. Mal, é certo, que as doenças são tinhosas e não dão tréguas. Vive-se em constante sofrimento, sem nunca se poder baixar a guarda. Em permanente alerta. Assim vivia ela. Foi numa das suas incontáveis incursões às urgências, devido ao sem-fim de problemas de que era acometida, que conheceu aquele que julgou ser o amor certo. Um outro paciente do seu nefrologista. Sim, ela tinha descoberto que tinha pedras nos rins, por mais que a empregada lhe dissesse que era a sanita, e não os seus rins, que tinha calcário, devido às propriedades da água naquele concelho, mas ela era por de mais experiente para ir nessa conversa. Além de que não gostava de paternalismos, nem tampouco de maçar as pessoas com as suas doenças. Era o que mais faltava. Cada um que se resolva. Não devemos ser fardos para os outros. Ele era outro pobre coitado, a precisar de um transplante. Amavam-se na incapacitante e exata medida do que lhes era permitido nos intervalos da hemodiálise dele e das várias crises dela. Tudo corria de feição quando, um dia, revelando a sua pérfida e egoísta insensibilidade ele lhe pergunta se estaria disposta a ceder-lhe um rim. Como? Ele apenas precisava de um rim, já ela, pobre e coitada dela, não tinha um órgão funcional. Vivia no pânico constante de qualquer coisa poder invalidar o dia de amanhã. O que era o caso dele comparado com todas as suas problemáticas clínicas? Um simples rim incapacitado por oposição a todo um corpo em ruínas. Jacinta percebeu, dolorosamente – que estas coisa magoam como os garrotes da gangrena – que o seu amor não era correspondido equitativamente. Teve uma convulsão logo ali, antes mesmo de conseguir revelar-lhe toda a sua justa indignação.

Morreria à sua frente, para ele ver como estava a ser injusto e egocêntrico. Ele e o seu rinzinho adoentado. Ela era a enferma daquela relação e o mais certo era ser, agora, também, epilética pois o seu corpo estrebuchava como nunca antes até então. Ficou internada dois dias e, mostrando todo o seu orgulho, saiu pelo seu próprio pé, e caminhou em busca da sua felicidade, a qual, sabia-o agora, não morava ao lado daquele doente renal. O caso dela não se circunscrevia a uma área do corpo. O seu era um caso holístico de falência generalizada. Custava assim tanto perceber isso? Bastava ver as suas permanentes e insistentes olheiras, que nem o melhor corretor-caneta da Chanel sarava, para perceber a sua debilidade profunda. Nunca mais se viram, mas desejava-lhe o melhor do mundo. Um rim brilhante e saudável, pelo que jamais poderia ser um dos seus, mirrados e em tudo semelhantes a uma pedreira alentejana. Tomara ela que eles conseguissem filtrar os seus fluídos.

Num seminário para hipocondríacos, onde um dos médicos do seu batalhão de conselheiros clínicos, sugeriu que fosse, apercebeu-se de que poderia ser portadora de um vírus raro. Isso explicaria tudo aquilo que a acometia desde há um ror de anos, impedindo a sua plena tranquilidade mental. Os participantes, um grupo de pessoas muito tensas, mas compreensivas, alertaram-na para uma teoria a que nunca dera crédito: os médicos nada sabem, são meros charlatães. Retirai um médico do seu enquadramento histórico e temporal e tudo o que fazem são barbaridades, meras experiências macabras. Os ainda bem recentes choques elétricos e as sangrias desatadas dos medievos são apenas bons exemplos, entre milhares de outros disponíveis em qualquer biblioteca ou site da especialidade. Apenas experiências. Logo que estas dão erro ou se mostram incapazes ou surge algo melhor, lá avança a horda dos homens de bata em direção à próxima novidade científica, fiando-se nela como se eterna e absoluta, não deixando espaço a outros tipos de experimentações. Representam um dos piores lobbies de que há memória. Como tudo aquilo lhe fazia o maior dos sentidos. Uma vez perante a verdade, não nos conseguimos desviar dela. Passou a redobrar desconfianças e acatou como certo que ainda ninguém sabia ao certo qual era a sua verdadeira doença. Ou, pior cenário ainda, conheciam-na, mas não tinham cura. Qualquer coisa dentro do espectro das raríssimas e ainda sem nome de batismo. Uma calamidade que nenhum dos médicos teve coragem de lhe anunciar, para não se sentir pateta revelando uma desgraça inominada. Estava perto do fim, era o que era. A par do vírus raro e fatal, encontrou o amor nesse seminário. Era a lei da compensação divina. Ele era um sético. Denunciava pelo mundo a barbari do universo médico, os abusos que se cometiam em nome da ciência, o domínio déspota das farmacêuticas…

Era encantador e detentor de uma verve estonteante. Junto dele, toda ela tremia e se empolgava. Chegou a acreditar na sua hipótese de felicidade. Chegou a acreditar que era dessa. Que tudo se resolveria. Era o seu mais recente amor e aquele que lhe inspirava maior confiança. Há conta de tantos desaires, aprendera a separar o trigo do joio e ele era seara saudável e sem artifícios químicos. Ele era a coisa real. Sabia-o. Sentia-o. Olhando para o telemóvel, onde ainda podia ler o nome dele junto da epígrafe ‘Chamada não atendida’, verteu uma única lágrima. Tinha de virar costas a este amor, pois o seu coração já fraquejava. Em breve, não bateria mais e não podia fazê-lo sofrer essa perda, nem arrastá-lo pelos corredores dos hospitais onde praticamente vivia. Ele tinha de correr mundo em sua defesa. Sua e de todos os outros, enfermos ou nem por isso. De nada serviria que se agastasse a seu lado. Seriam dois a sofrer, quando bastava que ela o fizesse. Eram suas e só suas as dores e as maleitas. Ele que fosse feliz. Ela, de resto, não estava habituada a ser feliz. Sabia bem que tudo acabaria. Invariavelmente, acabaria. Mais dia menos dia. Era apenas uma questão de tempo e oportunidade, que tanto o amor como a doença são oportunistas. Aprendera-o bem, a cada nova lição.

Olhava para o lado, para amigos e colegas, e as suas vidas pareciam tão tranquilas, pacatas e felizes. Porque não lhe era permitida uma quota parte dessa possibilidade de bonança? Tossiu. Era o seu corpo a lembrar-lhe as suas delicadezas e fraquezas. A sua sempre tão presente debilidade. Tossiu novamente. Agora, de forma convulsiva. Tuberculose, seguramente, que ela anda por aí, como todos sabem. E mata.

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