Era o início de um novo ano. O que queria isso realmente dizer? Não é o tempo, afinal, uma linha contínua que apenas a mente humana descontinua a fim de melhor se organizar? A fim de tentar encher e preencher o tempo com mais e mais coisas? Em que é que as 24 horas de dia 31 de dezembro se distinguem das 24 horas de dia 1 de janeiro, ou de quaisquer outras 24 horas? Mesmo para quem gosta de arquivos, pastas e todo o tipo de meticulosa organização, não seria melhor contabilizar anos novos a cada aniversário individual? Horários e calendários não serão a coisa mais artificial do mundo? Dia e noite, faz sentido. Pois que são visíveis e percetíveis. Estações do ano também. Quer dizer, já fizeram mais sentido e já foram mais percetíveis do que agora, em que tudo se esbate e se mistura e em que até a Natureza baralha os seus ciclos, ludibriada pelas grandes e percetíveis mudanças atmosféricas, em que os caprichos do clima já não encontram lugar nas tradicionais estações climáticas. Ainda assim, poderíamos ficar com os dias e as noites, as estações, enquanto as conseguirmos distinguir, as horas, pois que sem elas seria uma anarquia e qualquer tipo de encontro ou marcação deixariam de poder existir.
Mantenhamos a calendarização mensal e os aniversários… Parou para pensar. Sorriu. Santa ingenuidade. Tudo isso dependia única e exclusivamente da passagem do tempo como a conhecemos, ou seja, seria sempre necessário instituir a passagem de anos, de marcos temporais que nos norteassem. Caso contrário… Como seria? Sem segundas e domingos, sem horas certas e meses definidos, sem pontualidades nem atrasos. Não haveria sequer aniversários ou qualquer outra data. Deixaria de haver celebrações ou dias especiais. Tudo seria normal. Banal. Envelheceríamos? O que seria de nós sem calendário? Parou. Refletiu. Concluiu, para si, que se conseguíssemos dispensar calendarizações e qualquer tipo de gaveta de tempo, seriamos finalmente livres. Eternos. Isso. Sem tempo espartilhado, não haveria a semana laboral, nem a necessidade de acordar o corpo antes do corpo querer acordar. Poderíamos dormir de noite ou de dia, pois nada nos obrigaria a cumprir rotinas mundialmente instituídas. Havendo eletricidade, o que impediria uns de trabalharem de noite, se fosse essa a sua altura mais produtiva, mais criativa ou apenas se preferissem menos contacto com outros humanos? Haveria trabalho, de facto, se os relógios não dividissem o tempo em pequenas porções? Sem medição de tempo, ficaríamos apenas com o espaço. E este, ainda que finito nos seus limites físicos, não se tornaria uma infinidade? Sem horários que delimitassem e determinassem onde deveríamos estar a cada hora do dia ou da noite, o espaço não ganharia atributos de infinito?
Partir não deixaria de implicar um garantido regresso? A que regressaríamos de decidíssemos partir? A casa? Haveria necessidade de casa num mundo infinito de espaço e nulo de tempo? Haveria sempre temporalidade, sequencialidade, mas sem que a medíssemos… Como se encontrariam os humanos? Teriam de viver sempre muito junto daqueles que lhes são importantes, pois sem medição de tempo, poderiam um dia perder-se de vista e nunca mais se encontrarem. Sem relógios universais, como poderiam combinar um encontro? O que seria a hora de jantar? Apenas a hora em que se tinha fome e, nesse caso, haveria tantas horas de jantar quantas pessoas no planeta.
Não seria a internet, esse universo paralelo, sem tempo, apenas espaço navegável, que tentava recriar em teoria? Estar online é prescindir do tempo, exceto quando se tem limite de dados móveis e de rede e lá vinha o tempo de novo, interferir. Quando não se pagar para estar online, poderemos finalmente prescindir do tempo e optar exclusivamente pelo espaço. Um espaço onde nem sequer há dia ou noite, primavera ou inverno, nem aniversários ou passagens de ano. Um espaço apenas espaço. Apenas área para calcorrear. Uma área infinita, inesgotável, em que a paisagem jamais se repete, jamais se esgota. Em que não há necessidade de arrepiar caminho ou voltar para trás. Pode sempre seguir-se em frente. A vida toda. Para todo o sempre. Em que é possível encetar a mais extraordinária maratona. Sem paragens.
Parou, de repente, entusiasmado com um possível axioma. Sem medição de tempo, não há morte. Pois se há apenas espaço, e o tempo é uma linha contínua não contabilizável, não poderia dar-se o caso de não haver envelhecimento e consequente morte? Gostava do caminho daquela conversa consigo mesmo. As mais proveitosas, de resto. Ninguém entendia os seus postulados existencialistas, as suas teorias anárquicas, as suas premissas sociais, as suas aspirações à liberdade pura. À derradeira libertação humana. Encontraria o espaço físico formas outras de nos controlar e dominar como fizera o tempo? Não acabaria por nos impedir de partir, mantendo-nos confinados numa caixa espacial sem ontem nem amanhã? Não estaria o Homem condenado sempre a qualquer tipo de domínio externo? Não seria a escravatura, sob qualquer forma que tomasse, condição inevitável à existência do Homem? Bem vistas as coisas, sempre fomos escravos. Do clima, da meteorologia, dos predadores, dos Deuses, das doenças, da indústria, dos poderosos, do dinheiro, do amor…
Ah, mas sobre o amor, Eduardo tinha outras tantas teorias. No que às relações interpessoais diz respeito, o amor era o relógio do sexo. Estava para este como a contagem das horas estava para a existência em geral. Era apenas um grilhão. A pesada bola de ferro presa ao tornozelo. Para existir, ser feliz e preservar a espécie, a humanidade apenas necessitava de sexo. Livre, descomprometido e sem sequer precisar de ser de qualidade. Apenas um encontro, mais ou menos prazenteiro. Deixar a semente, ou recolher a semente, conforme o género, masculino ou feminino, e partir, ou ficar. O amor, tal como as horas, apenas se instituiu para complicar, para nos escravizar uns perante os outros. Enquanto o sexo podia ser absolutamente simples, desde que houvesse comum acordo, já o amor era de uma complexidade doentia. Nem o comum acordo lhe bastava. O amor era de tal ordem macabro que nem sequer bastava. Quantos casais que se amam perdidamente, simplesmente não conseguem ser felizes a dois? Se amor bastasse. Mas nem isso. Um acha que ama mais do que o outro, o outro inventa que tem ciúmes, um acha-se incompreendido na relação, o outro sente-se explorado. Sim, o amor exige balanças, equidade, delicadezas e sensibilidades.
Amar é andar munido de bisturi, luvas e cautelas cirúrgicas a todo o instante, pois uma operação delicada está ao virar de cada palavra, dita ou omissa. De cada gesto mal medido, de cada olhar menos calibrado. Uma distração e lá vem a cirurgia cardíaca de peito aberto. Lá jorra sangue que mal se consegue estancar. Lá vem o bypass e a esfusiante aorta e arritmias incontroláveis. Amar exige todo o tempo do mundo, e paciência ilimitada. Foi aquilo que se disse e tudo aquilo que se deveria ter dito, mas ficou guardado algures, entre um parágrafo e um erro ortográfico. Ou aquilo que se disse no tom errado, com falhas gramaticais e junto de quem nada daquilo deveria ter ouvido. Amar é usar ininterruptamente um colete armadilhado enquanto se anda de metro em hora de ponta. Sem tirar, nem pôr.
Mas é bom. É a derradeira certeza de que estamos vivos. É a melhor forma de nos mantermos em forma. Argutos. Atentos. Sensitivos. Musculados. Tonificados (em muitos casos até literalmente). Em permanente escuta. Para não perdermos. Para não nos perdermos. E até para quando percebemos que temos de nos perder. De ir contra a parede e rebentar com o maldito colete de explosivos de uma vez por todas. Eduardo sabia que tão importante quanto amar era saber quando não amar. Quando o produto se extinguia. Quando não era de primeira qualidade. Quando trazia mais sofrimento do que felicidade. Mais gritos do que beijos. Era preciso estar atento e agir com celeridade. Uma nota fora de tom e bye-bye love.
Eduardo atentava mais no que dava do que no que recebia. Quando gostava mesmo de alguém, tudo fazia para a manter feliz, pois sabia que da felicidade da mulher com quem estava, dependia a sua, já que elas são do tipo mais instável. Uma espécie de líquido volátil, que deve estar sempre bem-acondicionado, num ambiente seguro a uma temperatura constante, sob perigo de explosão eminente. Os homens eram mais do tipo… madeira. Desde que longe de incêndios, serras elétricas e catástrofes naturais, eram duros e constantes, não obstante as suas próprias sensibilidades e os humores próprios da seiva, que madeira também não é pedra.
Para si, mantinha uma teoria imbatível e inabalável. Sabia que estava apaixonado quando não reparava no nariz da outra pessoa e, quando este ganhava visibilidade e o achava bonito, era a prova dos nove de que amava perdidamente. Tão simples quanto isso, pois Eduardo sabia que não havia narizes bonitos. Quando o seu cérebro apagava o nariz da mulher por quem se interessava, ou, mais sério e raro ainda, quando se dava ao trabalho de o moldar e enfeitar ao ponto de Eduardo o achar bonito, era amor. Chegado aí, nem se questionava com qualquer outro assunto ou obstáculo. Desde que ela mostrasse algum interesse, ele atirava-se de cabeça. Isto é, ia ao seu roupeiro e de lá tirava o mais estonteante colete armadilhado, com os mais poderosos explosivos, e vestia-o alegremente. Estava apaixonado. Disposto a explodir e a rebentar.
Olhou pela enorme janela do local de cowork, onde todos os dias, com devoções religiosas, se dedicava a deixar no papel todo o tipo de listagens e anotações, pensamentos, teorias, desconfianças, suposições e afins – coisas com que enchia o seu neurótico e talentoso site – e percebeu que há já algum tempo, mesmo com o trânsito estupidamente congestionado do seu cérebro, que seguia os movimentos de uma mulher que, tal como ele, se debruçava sobre um computador, na esplanada do piso inferior. Apesar do frio, ela preferia a rua. Usava umas luvas sem dedos e lá se mantinha a teclar vigorosamente. Tinha uma garrafa térmica sobre a mesa e o nariz vermelho. Ainda tinha nariz, pensou Eduardo, pelo que não seria coisa do tipo à primeira vista. Até porque os seus olhares dificilmente se cruzariam se ambos mantivessem as presentes posições. Levantou-se sem hesitações. Iria lá abaixo, fumar um cigarro à rua e olhar de frente aquele nariz vermelho.
Ainda bem que o fez. A coisa foi correspondida. Acabaram por voltar a encontrar-se, muito embora ela, também na área dos conteúdos digitais, não fosse fixa naquele local. De vermelho, o nariz dela passou a transparente, para logo desabrochar naquele rosto branco sem imperfeições cutâneas, como uma esbelta torre de marfim sem mácula. Era amor. Trocaram teorias, gargalhadas e confissões. Eduardo nada lhe escondeu, exceto a sua teoria do ‘nariz apaixonado’. Sabia como poderia ser mal interpretado e se já tinham discussões sérias acerca de questões sociais e políticas e até sobre a forma como cada um entendia que se solucionariam problemas como o trânsito e a importância do design na felicidade coletiva, o que seria atirar um frasco de álcool como esse para a sua fogueira de ideias? Não. Nada disso. Permitiu-se essa omissão inofensiva. Além de que o nariz dela estava cada vez mais encantador, umas vezes à luz da sensibilidade dela, outras, iluminado por visões opostas, que acicatavam aquilo que Eduardo sentia no peito. Ela, chamemos-lhe Susana, até por ser esse o seu nome, ou qualquer outro, que para o caso não é absolutamente relevante, parecia ter o mundo tão pensado quanto Eduardo.
Qualquer assunto era um bom assunto e sobre ele parecia igualmente já ter uma reflexão, uma ideia ou mesmo uma teoria pronta a aviar. Eram de tal forma parecidos, ou antes, compatíveis, mesmo nas suas incompatibilidades, que ambos acreditavam haver mão do destino, ou até de Deus, não obstante os princípios agnósticos que norteavam as suas vidas. Aquilo era demasiado perfeito para ser fruto do acaso. Foi um dos invernos mais felizes na vida de Eduardo. Com a primavera e o desnudar de algumas partes do corpo, até aí protegidas do frio, ainda que vislumbradas na intimidade, chegariam os primeiros sinais de perigo. Começaram as grandes discussões, com acusações de ambas as partes sobre atrasos, faltas de respeito, negligências, saídas com outras pessoas, teorias expressas publicamente sobre as quais cada um deles achava ter direitos autorais… Discussões que em nada mudavam a delicadeza do nariz dela aos olhos de Eduardo, pelo que, rumaram ao verão e a um guarda-roupa cada vez menos casto.
Com o calor, veio a praia – e os malfadados chinelos –, para onde iam ambos dedilhar nos seus computadores, enchendo as suas páginas disto e daquilo. Um dia, ela escreveu uma crónica que deixou Eduardo desconcertado e maravilhado. Eram de tal forma parecidos nas suas idiossincrasias, que também ela odiava uma parte da anatomia humana. Enquanto para ele não havia narizes bonitos, Susana achava que todos os pés eram feios. Mais do que isso, abomináveis, quase nojentos. Decretava mesmo, no final do texto, que todos deveríamos nascer com meias e não nos ser permitido exibir os pés em público ou, sequer, em privado. Ele riu. Ela não. Ele tremeu. Hesitou. Depois, avançou titubeante, com o seu colete ao rubro, rumo à única pergunta que se impunha. Temeu ouvir a resposta, mas sabia que tinha de ser feita.
– Susana, o que achas dos meus pés, gostas deles?
A resposta não foi audível, no meio do estrondo que o colete dele fez quando explodiu numa infinidade de pedaços, onde se incluía, ele jura, mas não garante, a ponta do nariz dela, o qual, lhe pareceu, a ele, pela primeira vez, ser um pouco torto e acnoso.
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