Não era fácil de aceitar, menos ainda de processar, mas era o que era. Não podia ser outra coisa. Não podia ser de maneira diferente. Aproximava-se o desfecho de um terceiro ato que não contabilizávamos ainda, na tola crença de que seria para sempre. Eterno e maravilhoso como até então. Não sabemos medir o tempo, pois que desconhecemos o seu fim, apenas nos damos conta, quando damos, do seu princípio, ou antes, do nosso princípio. Do início da nossa consciência sobre o mundo e o tempo. Assim, incautos, pelo meio, vamo-nos ocupando de coisas e coisinhas, afazeres e recados, nem sempre urgentes ou proveitosos, nem sempre promotores de felicidade, organizados numa tabela inventada, a que chamamos calendário e sobre esta aplicamos ainda uma outra, meticulosa, rígida, a que tuteamos por horário, e lá vamos, em carreiros mais ou menos acessíveis, alinhavando, sem nos darmos conta, porções de momentos atrás umas das outras, crentes de que não haverá fim, de que existem pedaços de tempo infinitos ao nosso dispor. Não é assim. Nem para as pedras do caminho é assim. Também elas tiveram um início, num pequeno grão de poeira que o tempo não levou, e que chamou a si outros grãos e juntos, no vagar que é próprio das pedras e montanhas, lá se foram sedimentando, unindo, fundindo e enrijecendo, como uma raiz dentro do solo. Apreciando sempre a mesma paisagem em mutação, o mesmo sol, limando-se, aqui e ali, com o vento, sofrendo um pouco mais com a chuva e a neve, até ao dia em que todos os grãos unidos deixarão de o ser. Deixarão, primeiro, de ser unidos, e, depois, de ser grãos. Erodidos pelos elementos, regressam ao pó dos ares, depositados num outro lugar, inalados por um qualquer nariz. Tudo tem o seu tempo. Tudo tem a sua parcela de continuidade. Tudo conhecerá um fim. Sabemos que ele existe, que tudo termina, exceto talvez o amor e o próprio tempo, ambos acima de medições tolas, tabelas infantis, que servem apenas para sossegar o coração dos Homens sobre o muito (pouco) tempo que lhes resta. A cada um individualmente, e a todos enquanto humanidade.

Seria também assim para ela. Não querendo acreditar nisso, já estava a ser para ela. As mudanças finais chegam, num primeiro momento, devagar. Impercetíveis. Apresentam-se quase como novos caprichos. Diferentes formas de fazer o de sempre ou de dar início a novas coisas. Um apetite mais exigente e caprichoso, ou apenas falta de apetite que justifique o apreço por qualquer ementa. Um olfato deficitário que impede saborear condignamente os alimentos e, lá está, um menor apreço pela comida. Uma nova cadência gustativa que rima com o ouvido, que se torna tão duro quanto as rígidas articulações, que impedem o prazer de rebolar na relva fresca, de alongar os membros num gostoso espreguiçar, que fica agora a meio, ou que já nem se ensaia com receio da dor que se segue. Vai-se mais vezes à casa de banho, ou deixa-se de ir. Percebemos a falta de vista quando a primeira porta não se desvia ou uma esquina se alonga no jogo de sombras que se adensa à nossa frente. Tudo o que um dia foi importante, garante primeiro e último de felicidade, é substituído por novas coisas que tentam destronar as primeiras, sem nunca o conseguir efetivamente. Ganha-se apreço pela imobilidade. A cama é um trono, sempre que o corpo a ela não ganha alergia, por conta de dores, artroses e outros temores. Procuram-se novas rotas, na tentativa de estabelecer com o mundo laços de felicidade e prazer, em passeios que se encurtam. Encurtar. Tudo se resume a isso no fim, sempre que o fim se alcança no final da jornada e dos limites do biológico. Talvez por isso, os fins prematuros sejam mais dolorosos e impossíveis de aceitar, porque o corpo ainda se espreguiça e a boca ainda saliva na expectativa de um doce, na ânsia de um beijo.

O fim é isso mesmo: uma limitação espacial. Não apenas do tempo, este quase parece esticar-se em horas que já nos maçam. Uma redução do espaço. Daquele que se ocupa e daquele que se pretende ocupar. O mundo encurta-se. Fica cada vez mais pequeno e reduzido. O espaço resigna-se ao necessário e ao possível. O universo resume-se cada vez mais e mais, até ao grão de poeira onde toda e qualquer existência cabe. Ser novo é não ter limites. É sair da casa para o espaço. Ser velho é ver o horizonte a aproximar-se. É sentir que o único espaço existente é aquele que as pernas alcançam. No final, navega-se numa cama, sem destino ou rota, soprada por algum sonho bom, temor ou memória que se teima em reviver. Assim acontecia agora. Um golo de água. Uma colherada de comida apetitosa. Os ossos que se pronunciavam. Uma delicadeza que mais do que apenas isso, era já fragilidade. A borracha tinha dado lugar ao cristal. Cada vez se requeriam mais e mais cuidados. Mais e mais delicadezas no toque e no trato. Tudo se podia partir, mesmo antes da partida. Cuidado. Muito cuidado. E muitos cuidados.

Cada vez mais o coração conversava com os pulmões e metia conversa com os rins, que se comunicavam com o fígado, que tentava interceder junto do estômago, que já mal falava com os intestinos… Uma zaragata pegada. Um concílio onde, seguramente, decidiam o que fazer. Por quanto tempo mais. Mediam filosóficos porquês. Decisões tomadas a cada dia, depois, a cada hora e, em breve, a cada segundo. Avaliavam risco e benefício, mazelas e proveitos de continuar. Um dia mais. Razões que motivavam a mais um esforço. Quando a mente é resiliente, todos se esforçam um pouco mais. Todos aguentam para lá do previsível. Porém, quando a liderança é fraca, as falhas de comunicação, a desmotivação individual, pequenas traições na equipa e rumores maldosos e desmoralizantes acabam por minar aquilo que resta e tudo se precipita. Não era esse o caso. De todo. Ela não era de desistir. Nunca fora. Tinha a determinação de um fugitivo e a paciência de um predador. Aguardaria um pouco mais. Esperaria até a presa estar verdadeiramente a jeito e ao alcance da sua passada. Aguentaria mais um pouco. Tinha sobrevivido ao impensável, escarnecendo de compêndios médicos e conhecimentos clínicos. Experiência médica alguma determinaria aquilo que ela poderia fazer. Aquilo de que era capaz. O pior, por estes dias, é que a demência poderia baralhar circuitos, dar falsas ou erróneas ordens e acabar por executar comandos fatais. Talvez fossem circuitos paralelos e a errância dos movimentos, agora sem propósito ou com propósito desconhecido, não interferisse e nada tivesse a ver com determinações biológicas mais sábias, enraizadas numa bem focada cadeia de ADN, e que continuavam a levar o sangue e o oxigénio onde eles eram precisos. Por enquanto, era assim.

 

Ela tinha sobrevivido a tanto, num guião de vida cheio de sobressaltos, peripécias, total liberdade e momentos altos, exaltações, excitação e uma fervilhante vitalidade, que o fim nunca foi expectável. Não este fim. Não assim, por chegar ao fim da linha. Talvez um acidente, resultado do muito que viveu e de tantas e arriscadas aventuras, próprias de uma alma temerária e destemida. Por conta de uma vontade férrea de viver e ser feliz. Uma certa despreocupação que alimenta e vai protegendo os audazes. Os que arriscam sem temer o risco. Tudo ultrapassou com o charme e a elegância dos atrevidos. Com a relutância dos corajosos. Com a sorte dos aventureiros. Com a resiliência dos bravos. O que torna este fim mais trágico. Mais triste. Menos espectável, ainda que evidente. Envelhecer é deixar de poder. É deixar de conseguir. É deixar de fazer. Mesmo num universo em constante encolhimento. Mesmo num tempo emperrado. A cada dia, algo menos e a linha do horizonte já visível mesmo ao seu olho direito, cego há já algum tempo. Há coisas que se veem cá dentro. Desejava que ela não visse isso. Que não visse tudo aquilo que eu, de fora, via e temia, sem a sua coragem, sem a sua despreocupação. Seria mesmo despreocupação? Como sabê-lo? Falar-lhe de tudo isto seria cruel. Só traria algum proveito se, de facto, o trouxesse às minhas inquietações. Quem ama preocupa-se, quem vive apenas vive. Parar em tudo isto seria parar, ponto. De nada adianta atormentar a mente com tudo aquilo que o espírito já pressente. Não vale a pena abreviar o abreviado, incentivar o que já está a acontecer, atrair o que já lá vem. Com que passada virá? Quanto tempo mais? Quanto espaço menos?

O pior de tudo é o egoísmo. Sofro por ela, ou por mim? Quanto deste sofrimento antecipado não é pena de mim, de ficar sem ela, de não poder contar com as suas conversas, o seu afeto, a sua fiel dedicação à minha felicidade, a sua alegria da qual me alimento, o seu colo. Ah, perder um colo é perder uma possibilidade de felicidade e conforto e isso doi. Doi muito. Doi mesmo antes de o perder. Doi muito antes de acontecer. O medo dessa perda tem mais de comiseração do que de qualquer outra coisa. Não tenho pena dela, que segue o seu caminho, aquilo que resta dele, de cabeça erguida, sem queixumes ou lamúrias, rumo à linha do horizonte que até o seu olho cego já destrinça no escuro. Tenho pena de mim e daquilo que perderei quando ela se perder no horizonte. No seu horizonte.

Não temos muito mais tempo, mas o que temos será sempre nosso, tal como todo aquele tempo e espaço que tricotámos lá atrás, quando tudo era verde e esperança, e tudo aquilo que nos une manter-se-á depois de tudo. Até depois de nós. Porque os sentimentos são eternos. Têm vida própria, a partir do momento em que os parimos, saídos de uma parte fértil do coração. Eles estão vivos e sobrevivem aos seus criadores, porque são de uma matéria que não dominamos, que não precisa de nós. O amor em estado puro é um substantivo absoluto e autónomo. São eles o paraíso, estou em crer e em querer também. Uma vez nascidos, vão à sua vida, ainda que a eles nos agarremos com ambas as mãos. Não temos muito tempo. Mas todo o que temos é nosso.

Para já, temos hoje e hoje é eterno e infinito. Um tempo e um espaço onde cabe tudo, mas, mais importante, onde cabemos nós. Um hoje precioso. Para ela e para mim, se conseguir deixar de sentir pena por aquilo que ainda não chegou e me permitir aproveitar o sol que hoje nos aquece o corpo e amolece os músculos. Se me permitir apreciar o afago da sua mão na minha cara e o bafo da sua respiração na minha pele. Não temos muito mais tempo, mas aquele que temos ainda é nosso. Quanto tempo mais? Quanto espaço menos?

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