Esta é a história verídica, tão verídica como qualquer outra história, de um amor verdadeiro desmazelado e de um falso amor dedicado.

Tinha de lhe levar flores. No final do dia, não se podia esquecer de passar pelo centro comercial. Nem precisava de entrar na grande babilónia do shopping, já que a florista – abençoada! – tinha acesso direto também para a rua, o que era ótimo. Odiava centros comerciais e os seus aglomerados de gente louca e consumistas desenfreados. Só de pensar nisso e já lamentava a hora em que considerou necessário comprar-lhe flores. Amava-a, era o que era. Profundamente. Além de que tinha consciência de que era pouco dado a romantismos e galanteios, mas que essas são armas de peso numa relação que já ia longa. Não podia ceder sempre ao comodismo e à preguiça. Nada está garantido.

By Robert Doisneau

Narcisos e papoilas. Esperava encontrar isso mesmo, narcisos e papoilas. Os primeiros, porque ela passava o tempo a acusá-lo de ser egoísta e egocêntrico, dois chavões que tinha de encaixar sempre que a coisa azedava. Talvez ela estivesse coberta de razão, ou apenas ligeiramente barrada de razões, mas ele sempre considerara mais importante o sentimento, aquilo que de verdade lhe ia na alma – e era imenso o que por lá ia –, sem grande necessidade de o expressar com folclores mediáticos e comercialões, do que a manifestação do sentimento. Compreendia, obviamente, que sem serem expressos, os sentimentos de pouco valem. São apenas coisas que guardamos com carinho no peito, mas que de lá não saem. Claro que palavras também não passam disso mesmo e que também as mentiras se dizem com palavras, por vezes até com palavras bonitas e que soam a verdade. Assim, além de estimar apenas os sentimentos, há que saber comunicá-los a quem de interesse. De outra forma, sendo apenas nossos, mantendo-se calados, no total silêncio, eles correm o risco de ser de ninguém. Pior. De nada serem. Flores eram um clássico e deixavam claro que pensara nela e que a julgava tão importante que valia a pena o desvio para que lhe conseguisse levar flores no final do dia. Eram um amo-te sem palavras. Papoilas, porque ela era a sua flor silvestre. Vermelha e garrida, livre e campestre. Soberba e sem artifícios ou plastificações. Simplesmente, ela.

Já que iria chegar mais tarde e que estava tão perto do centro, encomendaria sushi, naquele pequeno restaurante que ela adorava. Far-lhe-ia a surpresa completa. Talvez conseguisse que lhe levassem o sushi à empresa… Cada coisa a seu tempo. Para já, precisava mesmo de um café e um cigarro.

By Antonio Mora

Sentia a cabeça a explodir e o dia não ia ainda a meio. A sua cabeça parecia um formigueiro, com carreiros de preocupações a alinharem-se em diferentes direções e com ritmos variados. Ora uma correria desenfreada, que guiava as questões prioritárias, ora mais vagarosos, lá mais no fundo da mente, mantendo latentes alguns assuntos menos prementes, mas nem por isso menos importantes. Carreiros frenéticos, determinados, resilientes, persistentes e simultâneos. Tudo a acontecer ao mesmo tempo. Como se não bastasse o emprego, as queixas de um cliente importante que teria agora que ‘bajular’, um chefe cujas mãos pareciam as de um cego, sempre a tatearem ‘inocentemente’ o seu corpo, os pais, em plena crise de afetos pós-meia idade, a mãe a precisar da sua ajuda para tratamentos médicos, agora que tinha ataques de pânico e não conseguia conduzir… Os cães. Lembrou-se dos cães. Tinha de levar a Salsa e o Coentro ao veterinário na sua hora de almoço. Andavam com uma tosse estranha, tinham de ser observados urgentemente. O que implicaria ficar sem almoçar, pois entre ir buscá-los, levá-los e regressar a casa para os deixar… Reparou, a meio de um telefonema, que estava a chover. Que miséria. Tinha deixado roupa na corda, devia estar mais molhada agora do que quando saiu da máquina. Por falar nisso, precisava de detergente e não apenas. Enquanto falava com o chefe pelo telefone ia tomando notas do que necessitaria de trazer do supermercado. A lista já tinha duas colunas quando desligou o telefone. Mesmo que faltasse alguma coisa logo se veria. Para já, tinha de tratar já daquele assunto, não gostava de pontas soltas além de que, com aquilo resolvido somaria mais algum tempo à sua hora de almoço. O almoço fê-la pensar que não tinham nada preparado para o jantar. Tinha mesmo de passar ainda hoje, no regresso a casa, pelo supermercado. Talvez um frango assado. Logo veria. Os circuitos faiscavam no seu cérebro, levando corrente ou privando dela múltiplas zonas, quase todas alertas vermelhos sobre o que fazer, como e quando fazê-lo.

 

O seu cérebro lembrava o Windows, com quinhentas janelas abertas, tal como as que se escancaravam no ecrã do computador à sua frente, onde dedilhava sem parar. Percebeu precisamente que uma dessas janelas estava relacionada com a conta da Santa Casa da Misericórdia e lembrou-se de abrir mais uma, para jogar no Euromilhões, afinal, quem sabe, um dia… Não tinha saldo. Carregou rapidamente o cartão enquanto ultimava um e-mail importante, com o qual poderia fechar uma negociação que se arrastava há meses. Um assunto que chutaram para a sua secretária, por saberem que não desistiria facilmente. Não desistiu. Já 12h45. Tinha de ir buscar os cães. Estava sem gasóleo. Ainda havia tempo.

Ele pega no telefone com o propósito de encomendar o sushi para, no fim do dia, não ter de estar à espera no restaurante. Rodou o polegar no visor do telemóvel. S… o primeiro nome que lhe surgiu foi o do Sérgio. Bolas, há quanto tempo não falava com aquele maluco. Nem hesitou. Ligou-lhe. Como estás, como não estás, o que tens andado a fazer e esqueceu-se por completo da razão porque acabara na letra S dos seus contactos. Voltou para os braços daquele ficheiro Excel que tanto o consumia. Uma tabela complexa que obrigava a total concentração. Deu o documento por concluído no momento exato em que, no WhatsApp, recebia o lembrete de João, seu parceiro de padel, para que não se esquecesse de que tinham hora marcada no campo. Vestiu o casaco e saiu. Sente o telefone a vibrar no bolso das calças.

– Olá querida! Estou a sair para ir jogar padel com o João, depois almoço por lá. Queres ir lá ter?

– Não posso. Vou levar a Salsa e o Coentro ao veterinário, não gosto daquela tosse insistente.

– Mas tens de almoçar, não podes simplesmente passar o dia todo movida a pequeno-almoço.

– Ó, depois como qualquer coisa. Liguei-te para perceber se poderias ir tu, mas já percebi que não.

– Se me tivesses avisado… Temos isto marcado e faltar em cima da hora, ele até já lá está.

– Os cães também são teus, a preocupação também deveria ser tua, não tenho de te avisar do que quer que seja. Mas deixa estar, já vi que não posso contar contigo.

– Claro que podes contar comigo, não digas isso, apenas agora, em cima da hora…

– Ok. Não te preocupes. Vai lá para o padel, logo falamos.

Agora, sim, tinha mesmo de levar flores. Conhecia bem aquele tom, aquela nota passivo-agressiva, aquela vitimização. Talvez fosse mesmo ocasião para rosas vermelhas. Não. Manter o plano inicial. Tem bastante mais significado do que as comuns rosas vermelhas em número ímpar. Narcisos e papoilas. E se as encomendasse também já? Lembrou-se de que se tinha esquecido de encomendar o sushi… Trataria de tudo isso quando regressasse do almoço.

A bomba perto da empresa tinha uma fila interminável. Olha para o ponteiro indicador de combustível. Ainda não está sobre o vermelho. Arriscaria. Não era assim tão longe e, com sorte, encontraria alguma outra bomba pelo caminho, se bem que, mentalmente antevia a rota que tinha previsto e não se recordava de bomba alguma. Estaciona à porta de casa. Que sorte!, congratula-se. Cobre o banco de trás com a capa protetora. Enfia os ganchos das trelas de segurança aos fechos dos cintos e sobe a correr. Salsa e Coentro rejubilam com a sua inesperada presença a meio do dia. Descem a correr pelas escadas. Um chichi antes de entrarem no carro, para evitar percalços. Com a excitação, os cães enleiam-se nas suas pernas e ela cai. Meias de vidro pretas todas rasgadas. Não tem tempo para subir de novo para calçar outras. Enfia os cães no carro. Entra e tira as meias. As pernas geladas. Mais vale assim, do que com buracos gigantes numas meias pretas. O veterinário partilha da sua preocupação. Umas análises ao sangue, para despistar algo mais complicado, e um primeiro diagnóstico de tosse do canil. A baixa repentina de temperatura tinha feito das suas. Antibiótico de espectro abrangente, diurético para evitar líquido nos pulmões e logo se veria os demais procedimentos logo que tivesse resultados mais conclusivos com base nas análises. De volta a casa. Salsa e Coentro choram na hora da despedida. Finalmente uma bomba e o telefone que não para de tocar, avisando-a de que a hora de almoço terminou. Regressa ao escritório. Exausta. Bebe um café bem forte e longo.

By Thomas Barbéy

Congratula-se, por só já faltarem quatro a cinco horas até poder ir para casa. Quer dizer, não diretamente. Uma paragem no supermercado e outra ainda na farmácia. De qualquer maneira, as tardes pareciam-lhe sempre mais curtas do que as manhãs, vá-se lá saber porquê. Num post-it escreveu, em maiúsculas e com marcador vermelho: FRANGO ASSADO. Colou-o no visor do telemóvel. Sentou-se à secretária e embrenhou-se no muito que tinha para fazer, sorrindo perante a imagem que guardava para si e na qual se equiparava a uma rês de focinho enfiado na lamela. Pena que a sua lamela não tivesse comida, apenas deveres a serem cumpridos.

O jogo foi intenso e o banho, sob um chuveiro de alta pressão, estava a saber-lhe tão bem quanto uma massagem. O João estava em forma. Tinha um apetite bovino, como partilhou com o parceiro. Não poderiam ficar-se pela cafetaria do ginásio, cheia de sumos detox e coisas demasiado saudáveis. Um bife era o que se impunha. Uma moção aprovada por unanimidade. Claro que tinham de ir ao Humberto. Eram os melhores bifes da cidade. O almoço prolongou-se um pouco mais, mas nenhum dos dois tinha grandes blindagens na sua hora de almoço. O João tinha a sua própria empresa e ele demasiado crédito para que alguém fizesse reparo na dilatação temporal de três horas em que se ausentou. Claro que compensaria noutro dia qualquer. Estava era a ficar apertado de tempo para todos os planos que tinha para o final do dia, já que talvez não conseguisse sair um pouco mais cedo. Mas não faltariam as flores nem o jantar preferido dela. Isso, era ponto assente.

Finalmente 19h. Uma hora a mais do que o previsto, uma dor de cabeça persistente e o estômago revoltado com a ausência de alimento. Os barulhos que emitia já a embaraçavam. Desligou o computador e as luzes atrás de si (sim, como era hábito, era das últimas a sair). As pernas geladas arrepiam-se quando contactam com o ar gélido da rua. Noite cerrada já. Não se recordava de onde tinha deixado o carro à hora de almoço. Só se lembrava de onde o tinha estacionado de manhã. Aciona o comando. Ele ali estava. Correu. Hipermercado. Parece que toda a gente, tal como ela, se tinha esquecido de deixar o jantar preparado. O carrinho que não andava e quando o fazia era na diagonal. Não entendia porque carro algum de supermercado roda como deve ser. Naquele caso eram rolos de cabelos e cotão aquilo que parecia impedir o bom funcionamento das rodas, mas mesmo carrinhos novos nunca andavam. Não haveria um engenheiro ou designer que se pudesse dedicar a encontrar solução para aquilo? Transpirava só do esforço de empurrar aquela geringonça, cuja locomoção exigia o empenho de todo o seu corpo a fim de conseguir que diagonalmente conseguisse ir em frente. Passou os olhos ela lista, feita por ordem de corredores. Graças a Deus que os supermercados acabam por se repetir na sua organização. Ia atirando os produtos lá para dentro.

 

Fila para a caixa. Coloca os produtos na passadeira. Desta para os sacos e estes de volta para o carrinho que agora parece já não andar. De todo. Nem na diagonal. Empurra-o com a força da vergonha e já não muscular. Coloca os sacos na bagageira. O telefone a tocar. Ele que toque. O som vintage de um telefone antigo que insiste em enervá-la. Tira o telefone da mala. Ia para atender… O frango assado!? Atira os sacos para dentro do carro. Volta a guardar o telefone, agora já calado, na mala. Corre para o hipermercado. Fila para o frango assado. Felizmente já não necessita de carrinho de compras. As pernas insensíveis. Regressa ao carro. Dá duas voltas à rua da farmácia e nada de encontrar onde estacionar. Segunda fila. Piscas. 20h30, anuncia o relógio do carro. Farmácia cheia, mesmo àquela hora. Quando sai, estão a rebocar-lhe o carro. Apetece-lhe desistir. Não o faz. Nunca desiste. O seu rosto e ar cansado, e o facto de estar a sair de uma farmácia, devem ter dito mais do que o que conseguiu proferir em sua defesa. Os funcionários entreolham-se e desengatam o carro. Ela sente-se feliz como se tivesse recebido um prémio, mesmo sob aquela chuva torrencial que voltava a congelar-lhe as pernas nuas. Finalmente, de regresso a casa e com tudo o que é necessário. Incluindo o FRANGO ASSADO escrito em maiúsculas e letra vermelha no bloco de notas do seu telemóvel.

By Dan Mountford

Ele espreguiça-se na cadeira, enquanto aguarda que passem os cinco minutos que o separam do final do seu dia. 18h. Ainda há tempo para uma cerveja com os colegas antes de ir buscar as flores e o sushi, que miseravelmente não teve tempo para encomendar. Tinha sido uma tarde cheia de assuntos sérios e inesperados e problemas para resolver. Incluindo um atrito mais ou menos sério entre colegas de departamento. Invejas e outras mediocridades próprias dos ambiciosos e de gente sôfrega de poder. Aproveitou para deixar claro que ele era o galo daquele poleiro. Machos beta eram bem-vindos, machos alfa apenas ele. Estava cheio de apetite. Apercebeu-se disso ao não conseguir tirar as mãos da taça dos amendoins que o Sr. Antunes lhes servia com as cervejas. Só mais uma e tinha mesmo de ir comprar as flores e levar o jantar. Sentia-se antecipadamente orgulhoso de si. Mal entra no carro, cai uma chuvada de todo o tamanho. A fila para o estacionamento do centro comercial era desanimadora. Dentro de meia hora começava o decisivo jogo de Portugal de apuramento para o mundial. Levar-lhe-ia as flores amanhã e, já agora, o sushi também podia ficar para outro dia. Imaginava compensá-la, de algo que ela nem sequer suspeitava que ele lhe tinha prometido, brindando-a com um sentido ‘Amo-te’ e um copo de bom vinho. Afinal, o amor está nos detalhes e ela era uma mulher simples e pragmática. Como ele a amava.

Ela chega a casa e não quer acreditar que, ainda assim, é a primeira dos dois a chegar a casa. Sai com os cães, que já devem estar a rebentar de vontades higiénicas. Depois, seguem-se duas viagens de elevador para conseguir levar as compras para casa. Arruma tudo nos armários. Põe a mesa. Coloca o frango no forno, onde pretende aquecê-lo um pouco mais. Espirra. Percebe que a roupa que traz está completamente encharcada. O corpo gelado. A cabeça a rebentar com uma repentina enxaqueca. Sente-se febril. Um duche rápido. Toma um antigripal. Faz um chá. Bebe-o bem quente, com uma colher de mel e gotas de limão. Já não tem fome. Deita-se sobre a cama. Tão sozinha. No peito, sentimentos de revolta e um ódio crescente pelo filho da mãe com quem teve o azar de se casar. Um verme egoísta e narcísico e não participativo, menos ainda na vida doméstica. Como se os assuntos dele apenas começassem da porta para fora. A cabeça a rebentar. Finalmente, o cansaço domina-a. O sono. Adormece a pensar no divórcio.

Ele chega a casa e sente o cheiro reconfortante do frango que aquece no forno. Os cães com a respiração normalizada, felizmente. Esta será uma noite bem passada. Ela dorme, linda de morrer. Deve estar cansada. Não a acorda. Ainda bem que ela comprou frango assado. Não obstante a quantidade alarve de amendoins, tinha fome e nada bate um bom frango no churrasco. Abre uma garrafa de vinho. Ela continua a dormir. Liga a televisão. O jogo está a começar. Não tem tempo de passar a louça por água e colocá-la na máquina. Não pode perder um lance que seja. Lavará a louca no final da partida, já que depois de seca no prato, a louça tem mesmo de ser lavada. No final do jogo, e após meia garrafa de vinho, sente-se sonolento. Tratará da louça de manhã. Além de que o barulho ainda a acordaria e ele gosta de pensar no bem-estar dela. Olha-a em silêncio. É linda e ele ama-a. “Até amanhã, minha papoila”, sussurra-lhe ao ouvido.

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