O olhar de Nuno é distraído por um suave reflexo dourado, que inicialmente não ganha interesse ou significado na sua mente. Começa por nem olhar, mas uns segundos depois – como se a sua mente tivesse ocupado esse nano espaço temporal em conjeturas sobre a possível origem daquele ainda insignificante brilho –, Nuno dedica-lhe atenção. Olha o chão de onde vem aquele pequeno raio luminoso. Dirige-se-lhe. Baixa-se e palpa o chão de madeira dourada do qual a coisa brilhante mal se distingue. Toca-lhe. Os seus dedos percebem de que se trata. Um anel. Ergue-se e olha-o. Uma aliança. Uma não, que só há duas alianças lá em casa. Estando a sua no anelar da mão esquerda de onde nunca saiu em dez anos de casamento, aquela que tinha na palma da mão era a de Patrícia. Nuno sorriu. Imaginava já a aflição que não iria na cabeça da mulher ou que viria a ocupá-la logo que desse pela sua falta. O muito de significado que encerra uma simples argola dourada.

Sorria ainda. Guardou-a no bolso. Reconsiderou. Estaria mais perdida no bolso das suas calças, onde poderia perder-se até da memória, do que naquele pedaço de chão, já debaixo do toucador do quarto, de onde a tinha resgatado. Abriu uma caixa de madeira. Lá dentro, uma parafernália de adereços. Agarrou num brinco cuja argola do fecho permitia que ficasse agarrado à aliança, guardando-a como uma espécie de porta-chaves, mas à laia de porta-aliança. Enfiou essa mesma argola na casa do botão do bolso interior do blazer e fechou-o. Perfeito. O botão prendia o brinco, o brinco segurava a aliança e, assim, presos ao casaco, pendiam para dentro do bolso. Junto ao coração, pensou. Sorriu mais ainda. Não era dado aos mínimos olímpicos que fosse do romantismo, pelo que a ideia que acabava de lhe ocorrer, de que trazia a aliança de casada da mulher junto do seu coração, lhe pareceu patética e pirosa. Por que carga de água lhe tinha ocorrido tamanha bimbisse? Ia ligar à mulher, para a tranquilizar. Pegou no telefone. Já eram 11h? Reconfirmou as horas no relógio de pulso, que o telemóvel andava com caprichos tecnológicos.11h05. Estava atrasado. Pegou na chave do carro e no comando do portão da garagem. Ligaria do caminho.

Melhor do que ligar, pensou, seria surpreendê-la ao jantar. Isso. Era o aniversário do pai de Patrícia. Havia jantar de família na quinta dos sogros. Pais, tios, primos, sobrinhos, cunhados, netos… Faria uma das suas partidas. Imaginava já uma pequena cena de ciúmes por perceber que ela não estava a usar a aliança… Isso. Não precisava de ensaiar. Logo lhe sairia algo adequado. Melhor ainda seria se informasse alguns membros da família, para que tomassem o seu partido e o embaraço de Patrícia, sempre tão delicada e aprumada, fosse ainda maior. Já a imaginava a corar, perante o escrutínio geral.

Ainda ao longe, sob o negrume da noite sem luar, naquele ermo campestre, e já se percebia que era dia de festa. Desde o portão da quinta, dois corredores de tochas ladeavam a estreita estrada de gravilha. Apesar do ligeiro vento e da geada de janeiro, as chamas estavam protegidas pelos troncos de plátano das árvores que, de um lado e de outro, acompanhavam o longo caminho até à casa. As tochas pendiam de argolas de ferro há muito espetadas na madeira, a fim de acolherem velas e tochas em dias de festa. Um cenário idílico no Natal, que sempre entusiasmava os mais novos, mas que ia bem com a data que se celebrava. O sogro, Zé Miguel, completava 70 anos, e há mais de um mês que Maria Luísa, a doce sogra, se embrenhava nos preparativos da festa, na qual todos envolveu. A Nuno coube tratar do catering, o que, sendo empresário no ramo da restauração e da organização de eventos, não lhe custou mais do que um telefonema para uma das suas assistentes.

Rumou ao estacionamento traseiro, onde já lá estava uma das suas carrinhas e a normal azáfama de cozinheiros e auxiliares. Entraria pela copa, a fim de ver se estava tudo a correr bem, como previsto. A sogra determinava qual o serviço de mesa a ser usado e indicava o caminho para a cave. Estava rosada de excitação.

– Meu querido. Muito obrigada por toda esta ajuda.

– Maria Luísa, então, em família não se agradece. Agora vá tratar de si ou do resto, que eu assumo o controlo da cozinha.

– És um santo. O mais santo de todos, bem sabes que sim, mas não contes a ninguém. Fica entre nós. Não temos filhos preferidos, mas temos genros prediletos.

Saiu. Virou-se ainda, para piscar o olho a Nuno que a surpreendia mesmo colado a ela num abraço que a comoveu. Ao ouvido segredou-lhe que preparava um pequeno número de ciúmes, por conta da aliança de Patrícia, que tinha encontrado caída no quarto e que ela não saberia onde estava.

– Tu… Só tu! Tenho de dizer alguma coisa?

– Não, mas se quiser mostrar-se indignada pela falta de estima que hoje se tem pelos símbolos do sagrado matrimónio… Esteja à vontade. Afinal, quem andou no Conservatório não fui eu. Improvise à sua maneira.

– Não precisas de dizer mais.

Esfomeados, novos e velhos, todos se dirigiam à cozinha e à copa, ou à adega, dependia das idades, pelo que Nuno conseguiu contar aos cunhados – uma irmã e dois irmãos de Patrícia –, em segredo e em privado, que se preparassem para ver Patrícia em apuros. Era melhor que nem todos soubessem, para que a genuinidade das reações tornasse tudo mais credível.

Percebeu que, entre entradas, sopa, prato principal, queijos, fruta e sobremesas, necessitariam de mais de 500 pratos. Confirmou que havia em número suficiente e máquinas de lavar que permitiam a rápida lavagem e substituição. Decidiu ainda que a mesa das crianças poderia começar já a ser servida, para deixar os adultos mais tranquilos durante todo o jantar.

Patrícia estava atrasada. Só faltava ela e Rodrigo, o marido da irmã mais velha de Patrícia. O sogro entretinha os netos, fazendo de conta que jantava com eles, para que não se sentissem excluídos do aniversário do avô. Patrícia e Rodrigo chegam ao mesmo tempo. Nem de propósito. Só faltavam eles para dar início à ronda ‘oficial’ de cocktails, sendo essa a sua deixa para abandonar a supervisão do jantar e deixá-la totalmente entregue à sua assistente, Cristina. Supercompetente e rigorosa. Não precisaria de se preocupar. Disse-lhe, antes de ir para o salão, que tinha lugar à mesa, mas Cristina declinou simpaticamente. Era uma celebração de família, além de que estava a trabalhar… Nuno não queria desculpas, nem admitiu escusas. Jantaria com eles, claro que sim, uma vez que todos os outros funcionários já tinham jantado e apenas ela acabaria por não comer condignamente. Afinal, em casa de ferreiro o espeto não tem de ser de pau. Eram ou não uma tremenda empresa de ‘comes e bebes’? Cristina sorriu timidamente e anuiu.

Patrícia e Rodrigo riam a um canto, ainda, mas logo todos os irmãos e cunhados se juntaram num grupo. Maria Luísa desfez a roda solicitando que todos circulassem para que os parentes mais afastados e os amigos do marido não se sentissem excluídos.

– Circulem, por favor.

– Vai de roda – disse Nuno, sempre o mais efusivo e divertido.

Lá sociabilizaram até à hora em que se anunciou que o jantar seria servido. Sete mesas, para dez pessoa cada – perfazendo 70 convidados, o mesmo número de anos celebrados – dispunham-se, sem se acotovelarem, no enorme salão térreo da casa. Uma mesa ao centro e todas as outras a circundá-la, à laia de malmequer. Na mesa do aniversariante, central, precisamente, a mulher, os quatro filhos e respetivos cônjuges. O núcleo duro. O coração. O pulmão oxigenado de toda uma linhagem. Nuno sentia-se feliz por pertencer também àquela família. Não sendo a sua, também era a sua.

Aguardavam já o café e a tagarelice entre mesas tinha acalmado, que aos septuagenários ia-se esgotando a energia, quando Nuno sentiu ter chegado a sua oportunidade. Num tom grave e sério, a voz bem colocada e percetível em toda a sala, como quem declama à boca de cena, Nuno olha Patrícia nos olhos e diz:

– Onde está a tua aliança, Patrícia?

Patrícia demora a perceber. Olha para a mão esquerda. O cinzento dos seus olhos escurece. Parece ainda não entender. Cora. Olha em redor. A irmã pega-lhe na mão.

– Tu sem aliança Pat? Queres contar-nos alguma coisa?

Nuno mostra-se impaciente.

– Onde está a tua aliança, Patrícia?

Nuno percebia o embaraço da mulher. Adorava as suas faces coradas, a facilidade com que se amedrontava, aquela espécie de fragilidade doce e inocente, aquele olhar meio perdido e alheado. Percebia porque se tinha apaixonado por ela e porque a amava tanto. Por ser genuína, sincera, terna e dedicada. Ali estava ela, aflita por aquela pequena infração. Uma aliança perdida. E ela que não sabe onde possa estar. Logo a simbólica aliança, que ela tanto estima. Levou a mão ao bolso interior do casaco, não conseguia esticar mais aquela partida. A sua doce Patrícia já estava aflita e isso, naquele instante de felicidade, incomodava-o.

Patrícia recupera de um salto, como um gato em queda livre, naquele preciso instante em que o chão já se adivinha, pois que o peso se vai multiplicando com a velocidade, e é forçoso rodar o corpo, exigir aquele golpe aos rins para cair de patas e não de costas, o que partiria a coluna em pedaços. Todos a olhavam. A aliança. Onde estava a aliança? Nuno vacilava, ainda. Conhecia bem aqueles embaraços paralisantes de Patrícia, o aperto no coração, como ela o descrevia. Não a devia ter melindrado. Ia parar com a brincadeira, agarrá-la nos braços e dançar com ela entre as mesas.

– Bolas, como é que foste logo reparar nisso? Fui hoje mesmo mandar apertá-la, pois estava sempre a cair-me do dedo e receava perdê-la. Só isso. Nem me ocorreu contar-se.

A mão de Nuno parou antes de chegar ao destino. Ao bolso, onde um brinco segurava a aliança da mulher, encontrada de manhã no chão do quarto. Os pais e os irmãos de Patrícia entreolham-se. Os corações aceleram no peito. Nuno fica sem fala. Sabem, todos sabem, mas… Ricardo, cunhado de Nuno, marido da única irmã de Patrícia, num tom entre o casual e o nervoso, é o primeiro a falar. E o único.

– Pois foi e imaginem a coincidência. Então não é que encontrei a Patrícia à entrada da ourivesaria, quando vinha do almoço? Nunca vou para aqueles lados e logo hoje… Acabei por ir com ela, pelo que sou testemunha ocular deste caso. O misterioso caso da aliança desaparecida.

Partilhar