Começava a estar saturado. Como se não houvesse naquela empresa outro funcionário – qualquer outro, atenção, não precisava de ser um CEO ou outro aglomerado de letras em caixa alta –, que não ele, para o trabalho árduo. Sentia-se verdadeiro burro de carga e acreditava mesmo, ao ver-se ao espelho, que já lhe cresciam as orelhas. Não fora esse assunto de uma outra história, e asseguraria que era mesmo verdade, que já se assemelhava ao jumento que o faziam sentir-se. Só mesmo um asno para se prestar àquele serviço. Quando falou num carrinho, numa mesa com rodas, ou numa qualquer geringonça que lhe facilitasse o trabalho, ainda se riram na sua cara. Tudo em cima do seu lombo. Tudo à mão e à pata. Por causa das escadas, algumas em caracol, e da inexistência de um monta-cargas e da impossibilidade de andar carregado com dossiers pelos elevadores de serviço, por onde chegavam e partiam os senhores doutores, mais os excelentíssimos juízes, e ainda as testemunhas, os inocentes e os culpados. Principalmente os culpados, que bem podiam surripiar uma ou outra página, experientes que eram nas contas e na prática da subtração, já para nem imaginar se o atrevimento levasse à supressão de todo um dossier. Não. Aquilo era trabalho especializado e entregue apenas a funcionários da casa, em quem se podia confiar cegamente, para garantir que nada se perdia. Que tudo se mantinha sigiloso. Que não havia fugas…
Chico bem que queria fugir e pensava nisso mais vezes, a bem da verdade, pensava nisso a toda a hora. Só não pensaria quem não carregasse nos braços, o dia todo, para cima e para baixo, apenas com a força dos braços, todo o tipo de carga. Resmas de papel, dossiers, caixas, o almoço de fulano e beltrano, e ainda a aleijadinha do terceiro piso, que tem lá uma doença complexa e impronunciável, coitada, mas que de burra nada tem. Sempre a insinuar-se, a encostar a sua halitose às crescentes orelhas de Chico, e a toda a hora a precisar de circular de um andar para o outro, mais os intervalos para fumar, e ela sempre a espremer-lhe o pescoço, a rolar o olho de vidro em frente aos seus olhos, e a roçar os lábios nos seus. Um nojo! Chico admitia até que não era o homem de bom coração que julgava ser. Aquilo era demais para si. Compreendia, ajudava e tinha muita simpatia – mais do que isso, empatia – por todos os indivíduos com problemas, mas cá andar com eles ao colo, há que convir que havia limites. Se fosse uma garota magrinha, leve, enfim, serviço é serviço, e até a poderia levar às cavalitas, quase numa brincadeira, vá, ou entreter-se a tentar adivinhar se o lado afetado era mais leve do que o outro. Sempre era uma entretenga, caramba! Mas acontece que a loura era demasiado velha e gorda para qualquer efeito que entusiasmasse Chico.
– Quando é que percebem que é urgente um elevador para o povo?
Chico levava amiúde esta queixa ao chefe, mas este fazia-se de mouco. Chico chegava a pensar que, no meio de tanta incúria divina, manifestada em infelicidades várias, físicas e psicológicas, bem patentes nas pessoas daquele lugar, ser asno nem era a pior coisa que lhe podia acontecer. Sempre tinha um corpo inteiro e que funcionava, claro que nele não se podia contabilizar o cérebro, mas quando não se tem cérebro também não se dá pela sua falta, não é verdade? Nessas alturas, em que colocava as coisas em perspetiva, até agradecia a sua boa sorte ao seu Anjo da Guarda e lá seguia caminho, sem dar conta do peso que carregava, pois se o fazia, é porque conseguia e só podia estar grato. Mas isso, lá está, não era coisa que o animasse diariamente. Pelo contrário, começava a odiar a aleijadinha. Lá estava ela, cada vez mais ofegante ao seu ouvido, com a boca sempre aberta, como se tivesse falta de ar, quando o seu problema era apenas nas pernas e num braço. Naquele dia, já depois de fazer quinze pisos no seu habitual sobe e desce com recados deste e daquele e ainda sacos de papel para destruir, que mereciam toda a atenção, Chico já estava farto. Só porque era um forte e saudável mancebo, não podia ser discriminado e maltratado daquela forma. Não era burro, então?!
– A menina Carlota, cansa-se com nada, não é? Afinal, por ser aleijadinha, a menina vai aí descansada, ao colo, e quem carrega consigo é aqui o Chico braço-forte, não é verdade? E olhe que eu não estou a respirar pela boca.
– Não seja estúpido, Chico. Quer que faça queixa de si? Não se diz aleijadinha, isso é absolutamente discriminatório e de mau tom. Você vive em que planeta, homem? Simpatizo consigo, acho louvável o que faz por mim, caso contrário, nem sei como seria a minha vida, e quero muito ajudá-lo. Por isso lhe digo, deve referir-se a pessoas como eu, ou com qualquer outro tipo de problema ou grau de gravidade, como sendo pessoa portadora de deficiência.
– Vai-me desculpar, menina Carlota, mas aqui a pessoa portadora da deficiente sou eu…
Ouvindo pela primeira vez aquilo que dizia e que só lhe fez sentido ao ser pronunciado, Chico não contém uma sonora gargalhada. Esta acaba num riso convulsivo que acomete Chico de forma violenta e compulsiva. Quase rebenta de dor. Tenta contorcer-se, mas carrega ainda a menina Carlota, na verdade uma senhora na fronteira da obesidade, que todos tratam gentilmente por menina apenas por ser solteira, o que aumenta a aflição de Chico. A cara dele toda vermelha e inchada do esforço. Os olhos a saírem-lhe de órbita e a barriga a exigir-lhe que se contorcesse, caso contrário aquele riso frenético matá-lo-ia. Não foi de propósito, claro que não. Gostava da senhora. Contra ela tinha apenas uma centena de quilos, tudo o resto era muito aceitável e era uma mulher muito generosa. Nunca a deixava no seu lugar sem que não tivesse uma gratificação. Uma nota de €10, um bilhete para o cinema, um bilhete malandreco no bolso… Não fora a diferença de idades e aquelas arrobas a mais e, quem sabe… Não, isso não. Havia ainda o hálito a considerar, mas conversado tudo tem solução. Resumindo e abreviando, que Chico perde-se muito em pensamentos desajustados à urgência do momento, das circunstâncias e das necessidades: Chico largou a menina Carlota, mais a sua centena de quilos extra, e esta caiu desamparada ao longo de dois lances de escadas pelo amplo caracol de ferro que levava ao arquivo, onde a pobrezinha se entretinha com uma grande tese qualquer, que ali naquela empresa todos eram o pináculo da batata-doce em diversas matérias. Chico não conseguiu acudir a pobre mulher, condenado que estava àquele riso que o paralisava, não obstante o seu cérebro tentar trazê-lo de volta à emergência que se abatia dois pisos abaixo. Carlota apenas não morreu por milagre. Não apenas isso como parece que recuperou parte da sensibilidade numa perna, a qual se acreditava perdida. No celebrado regresso de Carlota, Chico foi timidamente entregar-lhe o olho de vidro que tinha encontrado no bolso da sua camisa.
– Deve ter saltado lá para dentro, quando a menina Carlota voou dos meus braços.
Dito assim, com aquele olhar pateta e descrito com tamanha poesia: “voou dos meus braços”, e porque Carlota tinha, no fim de contas, mais a agradecer-lhe do que a perdoar-lhe, pois que até já conseguia locomover-se com umas muletas, ainda que atabalhoadamente, Carlota emocionou-se com o reencontro com aquele palerma de corpo divino. Quase lamentou que já não tivesse de ser carregada por ele, para cima e para baixo a seu bel-prazer. Entristeceu-se até ligeiramente, ao perceber que dificilmente voltaria a conferir os rijos bíceps daquele portentoso jovem, a quem a divina providência tinha deixado no físico tanto quanto o que tinha levado em inteligência. Mas a vida faz-se caminhando e isso ela já quase conseguia fazer. Agarrou no olho de vidro, que milagrosamente lacrimejava, atento que tinha estado a todo aquele enternecedor episódio. Carlota, levantou a pala de pirata que tinha a tapar o olho vazo, ajustou aquele enorme berlinde de vidro e voltou a tapá-lo com a pala.
– Obrigada, querido Chico! Por sorte, a Madonna, e antes dela, aquela outra jornalista de guerra, tornaram isto moda, pelo que vou adotar este look! Gosta?
– Não. Não gosto. Mesmo nada. Mete mais medo do que o olho de vidro. Se calhar, porque já me tinha habituado ao olho, não sei. Agora, ponho-me a imaginar o que haverá aí por trás e isso é assustador. Perturba-me bastante.
Como consequência do drama vivido na escada de ferro em caracol, que colocou em risco uma douta magistrada e o simplório do estafeta, e que assanhou as garras de seguradoras, Chico acabou por ser promovido a motorista e um elevador tomou o lugar da escada de caracol, para escândalo de arquitetos, a indignação da câmara e de todos os defensores do património. Sempre era possível haver o tal elevador que o pobre brutamontes há muito pedia. Feliz com o desfecho, já que achou que seria obrigado a casar-se com a menina Carlota, para calar as más línguas, Chico exultava. Acreditou mesmo que era engenhoso e, lá no fundo, tinha sido muito inteligente, ao engendrar sozinho e subconscientemente todo aquele episódio, com o intuito de obter uma improvável promoção. Todo ele muito inchado, ao volante de uma carrinha, com a qual tinha de fazer entregas urgentes, ia pensando em como, afinal, era um tipo incrível, cheio de sapiência e estratagemas. Verdadeiro herói de cinema americano. Pensar nisto, porém, fez nascer nele o receio de que o carro explodisse, como acontece sempre em Hollywood, terra de gente hábil como ele próprio. Nos primeiros tempos, porém, o entusiasmo de andar na rua, com um veículo próprio, não lhe permitia mais do que sentir orgulho. Ainda assim, pelo sim, pelo não, nunca enchia o depósito de gasóleo, não fosse o Diabo tecê-las e parece que ele as tece bastante. Vinte euros e já era arriscar faíscas. Não tardou, todavia, que Chico se aborrecesse. Mal falava com outros seres humanos, sempre sozinho, sempre a receber mensagens, sempre a ter de se orientar na confusão do trânsito, a ter de obedecer a um mapa falante para não se perder, e mesmo assim a perder-se… Tinha saudades do sobe e desce, de ver pessoas, de se exibir para a menina Carlota.
Talvez fosse feliz e não o tivesse percebido. Agora, tinha dúvidas. Foi então que Chico decidiu passar à ação e encenar um plano com muita pinta, o qual, pelas suas contas, o promoveria a juiz ou algo muito, muito equiparado. Com base numa ágil regra de três simples, Chico magicou o seguinte: se a carga que transportava era importante, ela deveria ser equiparada à menina Carlota. Ora, se quase matar a menina Carlota equivaleu a uma promoção muito atrativa, então, perder ou destruir os documentos que levava de um lado para o outro deveriam render outro tanto. Voltou de imediato o seu imaginário para Hollywood. Atestou o carro, deixou o depósito aberto e atirou um fósforo lá para dentro. Por conta disso, somos chegados ao fim da história, pois Chico morreu e nada mais temos a dizer. Exceto, talvez, que o cartel para o qual trabalhava foi desmantelado, por conta da carga que Chico transportava e que foi projetada pela explosão salvando-se das chamas, o que conduziu a judiciária à ‘empresa’ onde Chico trabalhava. Dizem que o cabecilha era uma mulher com obesidade mórbida, mas já sabem como são os rumores.
Moral da história:
A regra de três simples pode revelar-se complexa, não há antídoto para a estupidez e nunca saberemos o que levava Chico na carrinha. Pó(de) ser isso.
Adorei. Há pessoas que não podem ver fraqueza ou bondade excessiva, confundem com burrice.
Muito obrigada, Tânia. Ainda assim, vale sempre mais a pena ser-se burro do que estúpido. Um burro pode aprender, um estúpido, não.