– Chamem o Baby Designer, imediatamente!
O tom era perentório. Azedo e imperativo. Não admitia atrasos ou justificações. Nem mesmo justificações plausíveis, que certificariam a justeza de atrasos ou, mesmo, a própria impossibilidade de cumprir a ordem, ou falta de obrigação de o fazer perante outra maior urgência. Sim. Aquilo não era um pedido. Uma mera solicitação. Aquilo era uma ordem expressa e clara. Não contemplava respostas outras que não fosse a presença imediata do Baby Designer no gabinete do chefe do departamento de Baby BioConcept.
Um alerta vermelho assinalou, na pulseira eletrónica do Baby Designer, que a sua presença URGENTE era requerida no gabinete do chefe. Não sabia do que se tratava, mas sabia perfeitamente qual seria o tom e que aquilo que ouviria não o deixaria feliz, já que nunca a presença urgente de alguém no gabinete do chefe nunca se devia à necessidade imperiosa de tecer um elogio, de enaltecer uma decisão, de reconhecer o mérito. Por isso, pensou uns segundos. Não lhe apetecia ir. Não queria ir. Não estava para ouvir disparates e impaciências, azedumes e reclamações despropositadas. Iria ficar irritado o resto do dia. Isto com sorte. Podia ser que a conversa que se adivinhava acabasse por entornar o caldo de toda a semana. Começava a odiar o emprego. Não por aquilo que fazia, mas por tudo o resto que envolvia e ainda pela postura destemperada do chefe. Um tipo franzino e nervoso, incapaz de defender as tropas e enfrentar com inteligência e bons argumentos os caprichos alienados de uma clientela mimada e despreocupada, habituada apenas a mandar e a ser obedecida na hora. Não suportava a postura de subserviência de toda a cúpula da empresa. Pios, não compreendida nem aceitava que não se munissem de conhecimento suficiente para saber dar respostas corretas às exigências estapafúrdias de pessoas cujo único adjetivo que lhes assistia era o de serem ricas. Apenas isso. Nada mais eram do que apenas ricos. Herdeiros ociosos, empresários de sucesso, artistas enfadonhos e enfadados, uma fauna oca que habitava universos vazios. É certo que não compreenderiam argumentos, pelo que bastaria ter-se a postura certa para negar-lhes idiotices quando eles as solicitassem. Bastava um simples:
– Não é possível.
Perdia-se clientela, alertavam, olhando folhas de cálculo. É verdade, mas seguiam-se normas éticas, fazia-se um trabalho correto e sem sobressaltos e não se satisfaziam pedidos estúpidos. Havia dias em que não desenhava seres humanos, mas modelos de catálogo, hipóteses arriscadas de mera preocupação estética. Sempre quisera seguir as ciências biomédicas, brincar aos deuses com o ADN humano. Salvar vidas que ainda não o eram, evitar doenças genéticas… Tinha acabado, afinal, a desenhar bonecos, segundo traços específicos ditados por pais idiotas. Porque não participava toda a equipa nas reuniões de adjudicação de cada novo modelo? Porque não se aprimoravam as versões básicas de cada módulo, de maneira a que, de forma preventiva, impedissem solicitações estúpidas e inexequíveis? Não era preciso ser-se extremamente inteligente. Bastava ter-se alguma capacidade cognitiva, básica que fosse, para compreender e aceitar este tipo de argumentação e conseguir implementá-la nos procedimentos internos. Torná-las nas boas práticas da empresa. Depois, o cliente ou aceitava ou recusava, mas jamais se comprometida o resultado final. A raça humana caminhava para um alucinante freak show. Cada novo bebé era uma futura aberração. Cada nova empresa no mercado aceitava fazer mais e mais alterações, mais e mais achegas, em troca de somas obscenas de dinheiro e privilégios.
Sentia-se ainda mais frustrado por ser uma conversa igual a tantas outras, sem sentido ou propósito, apenas um raspanete, uma advertência, uma velada acusação de mau profissionalismo, a sombra ameaçadora de um possível despedimento – que era sabido que jamais aconteceria. Era o melhor designer de bebés da empresa, cobiçado por um sem número de concorrentes, jamais o deixariam ir, mas também, já o tinha percebido, jamais incorporariam a sua visão da vida humana. O sinal vermelho na sua pulseira continuava a piscar no seu frémito alarmante, aumentando de frequência e potenciando nervosismos desnecessários? Tinha em mãos um projeto-bebé quase concluído… Um bebé quase pronto. Detestava deixar o código genético a meio. Odiava ser interrompido. Sentiu uma onda de ódio puro, violento, irrefletido e inédito a invadi-lo. Saiu disparado. Era ele quem, agora, sentia uma urgência desenfreada em falar com o idiota do chefe.
Ainda não tinha transposto por completo a porta do gabinete do coordenador do departamento de Baby BioConcept e já um chorrilho de incriminações em tom irónico lhe caía em cima, que nem napalm, não deixando espaço nem oxigénio. O próprio tempo parecia andar de forma trôpega.
– Ora aqui está ele, o Sr. Deus em pessoa. Não são claras as determinações que lhe chegam às mãos? Não entende português? Não reconhece fórmulas básicas? Não distingue um de dois braços?
– O que está, para aí, a dizer?! Nem um dos meus bebés é deficiente. Todos são perfeitos…
– Perfeito, perfeitos… O que é um bebé perfeito, senão aquilo que os pais desejam? A perfeição é um projeto individual, e não a sua visão do mundo. A última encomenda veio de volta. E, agora? Quem fica com a criança? Os pais acreditavam estar a pagar pelo que tinham pedido, um bebé sem um braço, para levar a cabo a sua conceção biomecânica do universo, a sua estética Steampunk, e você, com essa ideia cretina de perfeição, concebe um bebé digno de anúncios de papa do século passado. Mas o que lhe concede o direito de pensar? De decidir pelos outros?
– Um bebé com apenas um braço? Era isso que queria que eu fizesse? Queria responsabilizar-se por outra aberração? Estamos a transformar toda a genética de uma raça, a brincar com o fogo…
– Quem brinca, aqui, é o senhor biodesigner. Você só tem de cumprir ordens e indicações. Este casal passou a mais luxuosa das nossas versões e você decide fazer tudo como lhe apetece? Não entende que isto é um negócio? Estas crianças são desejadas e serão amadas pelos pais. De que serve a esta criança ter dois braços se nasceu sem pais?
– Ela não nasceu sem pais, ela nasceu com pais estúpidos e desumanos, o que é bem diferente. E não se preocupe que eu fico com ela.
– Você não pode ficar com todas as devoluções, com todos os casos que deram errado, na verdade, com todos os seus erros.
– Não vou continuar esta conversa consigo. Não voltaremos a tê-la nunca mais. Estou farto de produzir arianos, crianças louras de olhos azuis, como se não houvesse mais combinações possíveis no universo. Como se não estivesse na diversidade de possibilidades a grande mais-valia da matéria viva, da substância humana. Seres que são apenas cópias aperfeiçoadas ou amaldiçoadas por preferências bizarras dos pais não é natural, nem aceitável, menos ainda desejável. O plano inicial era erradicar doenças genéticas, malformações, entidades capazes de retirar saúde ou qualidade de vida ao ser humano e não embonecá-lo segundo este ou aquele critério, e eles são sempre tantos e tão obtusos… Não contará comigo para mais um desenho que não cumpra escrupulosamente princípios clínicos, de eliminação de problemas de saúde. Pode despedir-me já, ou esperar que eu o faça se este tipo de incidentes voltar a repetir-se. Já basta de homens sem cérebro.
– Então e a diversidade de que fala? Só conta quando se ajusta à sua argumentação? Aos seus propósitos? É tão questionável eliminar doenças como retirar membros. Não serão as doenças, elas próprias, desígnios superiores da Mãe Natureza, para equilibrar a balança da vida? Para decidir quem fica e quem parte? Se ninguém morre de doença, e com tantos avanços científicos a prolongarem cada vez mais a longevidade humana, qualquer dia não cabemos todos neste universo.
– Pois inventem-se outros. Além de que apenas os ricos, capazes de pagar as versões mais elaboradas são contemplados. Os pobres continuam apenas a conseguir pagar as versões básicas, os kits vão de escada, cuja única garantia – sem sempre certa – é a de que as crianças não nascem com malformações. Todos os outros caprichos e aberrações são por conta de ricos enfadados com a vida e o espelho. Abortarei qualquer exigência que não tenha propósitos dignos ou razoáveis.
– Muito bem. Nesse caso, considere-se desempregado, Dr. Ken. O seu lugar será ocupado por uma especialista em Baby Design e com um profissionalismo à prova de éticas unipessoais e sem ambições divinas. Já deve ter ouvido falar dela, chama-se Dr. Barbie.
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