Januário Miguel foi dos primeiros a chegar. A situação desgostou-o. Não era apreciador de atrasos, reveladores de falta de respeito, de interesse e de má organização, e ser dos poucos a cumprir o horário estipulado, 21 horas, deixou-o incomodado. Era desagradável e constrangedor. Principalmente naquela situação. Conhecia quase ninguém e os poucos que conhecia eram contactos recentes, mais conhecidos do que amigos. Dada a falta de intimidade, nem sabia bem porque tinha sido convidado para uma festa particular, em casa de um… Não era um colega, nem um cliente, mas alguém com quem estabeleceu contacto por via profissional. Um parceiro de atividade, ou de negócios se preferirem. Um bom contacto, por sinal. Juntos haviam já conquistado coisas incríveis, positivas em termos humanitários, numa vertente social, e financeiramente muito proveitosa, também. Porém, sempre tinham sido muito formais, distantes quase, tudo tratando com o maior profissionalismo e racionalidade. Sem troca de histórias de vida, sem copos no final do dia, quase mesmo sem almoços de trabalho, sem intimidades ou sinal de amizade. Apenas um entendimento real e frutífero, que mantinham alheado das vidas pessoais e privadas de cada um.

Agora que pensava nisso, Januário Miguel percebia que isso se explicava facilmente pela falta de curiosidade de ambos. Eram demasiado racionais. Não valorizavam a empatia, apenas a coisa pura e dura. Se havia um interesse profissional, ele era exposto em Excel, com tabelas de cálculo, com planos de negócio, com previsões temporais, com indicadores e factos reais. Tinha sido Januário Miguel a dar início àquela relação com Bonifácio José. Um simples e-mail, a exposição de um projeto em que os saberes de cada um seriam uma mais-valia inestimável, um Zoom meating, mais e-mails, WhatsApps e tinham avançado com a ideia. Simples, honesto, direto e descomplicado. Tinha sido realmente, um prazer trabalhar assim e um privilégio ter conhecido alguém tão focado quanto ele para abraçar uma ideia com a qual Januário Miguel pretendia autonomizar-se, muito em breve, de patrões, sócios, CEOs, gerentes e outra malandragem, cuja principal função era apoderar-se das ideias dos outros e subir um pouco mais na tola hierarquia da empresa. Pois Januário Miguel queria exatamente o oposto, descer toda a escadaria até ficar completamente sozinho e autónomo. Tão livre quanto possível. A revolucionária App que ultimava com Bonifácio José, seria o seu passaporte para fora de muitos espartilhos, dentro dos quais já sufocava.

Ouve-se a campainha. Finalmente. Mais gente para melhor se poder camuflar. Ali, sozinho, no meio da sala, não havia como não reparar na sua pessoa. Neste tipo de situações, quantos mais, melhor, um lema diametralmente oposto ao que regia a sua vida em todas as outras situações. Privilégios da mundanidade, pensou tão para dentro quanto possível.

– Olá, sou a Benilde. Entrem, entrem. Sentem-se, por favor, e sirvam-se. O meu pai colocou as bebidas no terraço, logo depois daquela porta e a minha mãe não tarda. Querem que guarde algum casaco?

A miúda que acorreu a abrir a porta não teria mais do que 15, 16 anos, mas agia com um à-vontade e uma graciosidade que Januário Miguel gostaria de ter tido com aquela idade. Aliás, gostaria de as ter agora, mas quando se é bicho do mato, como era o seu exemplar caso, apenas se admiram essas capacidades nos outros. Jamais se procura desenvolvê-las de verdade. Adiante, portanto. Congratulou-se por ter sido a empregada a abrir-lhe a porta e não a adolescente. Perante tamanho entusiasmo e espontaneidade costumava ficar sem ânimo, nem reação. Até mesmo sem voz. A miúda desapareceu, sem ter oportunidade de a ver bem.

Antes que a recém-chegada comitiva entrasse na sala onde se encontrava, saiu pela porta do terraço, grande, por sinal, e voltou a entrar em casa por outra porta, também ela aberta para o terraço. Esta dava para o escritório, ou assim parecia, e daí saiu em busca da casa de banho. Bonifácio José encontra-o precisamente a fechar a porta do escritório e olha-o entre o inquiridor e o chateado.

– Então, Januário?! O que fazes aí? Perdido?

– Ando à procura da casa de banho.

– Pois, mas esse é o quarto das miúdas, é zona interdita, se não te importas.

– Pensei que fosse um escritório… com as secretárias

– Com camas cor-de-rosa? A casa de banho das visitas fica lá em baixo, descendo as escadas, no final do corredor. Na porta há uma inscrição onde se lê WC. Não entres sem ser nessa, se fazes o favor!

Januário Miguel não percebia. Não tinha visto camas, apenas sofás e com tanta secretária e livros. Mas percebia o tom aborrecido de Bonifácio. Pior, pensava, seria se tivesse entrado no quarto do casal e acabasse por adormecer na cama, como já lhe tinha sucedido num outro jantar supimpamente maçador. Apenas atravessar uma divisão, cuja porta se encontrava aberta para o mesmo terraço onde se serviam cocktails numa festa, não lhe pareceu absurdo, menos ainda ofensivo. Porém… O tom de Bonifácio denunciava um certo enfado-barra-ofensazinha. As pessoas são mesmo insuportáveis, pensou Januário, que continuava sem dar com a casa de banho. O que dissera o outro? Descendo ou subindo as escadas? Se os quartos eram naquele nível da casa, talvez a casa de banho de serviço fosse no piso de cima. Receava voltar a cometer uma gaffe sinistra. Bonifácio, que sem que Januário desse por isso, lhe manteve os olhos dissimuladamente em cima, elevou a voz, percebendo a indecisão do parceiro de negócios, e repetiu:

– Descendo as escadas no final do corredor.

Aquilo aborreceu e enervou um pouco Januário. Não gostava de ser observado, ou dar nas vistas, ou que reparassem nele… Só tinha passado por um quarto, qual era o drama? Mas aceitou que o outro se melindrasse. Era a sua casa. Estava a dar um jantar. Queria tudo perfeito… enfim! Fez um gesto com a mão, dando a entender que tinha recebido a mensagem, ainda que quando se sentia inquieto, pouca importância dava ao que se passava em seu redor. Aquela ocasião era um desses casos.

Um gato chama a atenção de Januário Miguel. Sempre se sentira mais feliz, seguro e confortável junto de animais. Não hesitou um segundo em seguir o tareco, que entrou numa porta à direita, bem antes do final do corredor. Lá estava ele, enroscado na cama e nada intimidado ou incomodado com a sua presença. Avançou. Deitou-se sobre a cama ao lado do bichano e foi entendimento à primeira festa. Que tranquilizador que era quele momento naquele preciso serão, em que tudo começava a desagradar-lhe num ambiente onde se sentia perdido. O felino era providencial. Mais do que isso, terapêutico e era ainda dizer pouco sobre o quanto aquela irmandade o tranquilizava. Deve tê-lo tranquilizado demasiado, pois quando se deu conta Bonifácio José olhava-o espantado, entre o incrédulo e o irritado. Pelo menos assim lhe ‘soaram’ as faces rosadas do outro. Talvez também ele estivesse a precisar do gato, para acalmar os nervos, que isto de dar jantares e festas – que não a gatos, mas as humanos – é bom para os convidados, que quem recebe está sempre a trabalhar, numa azáfama de dar dó. Perguntou ao amigo:

– Queres partilhar?

Januário tinha avaliado mal a situação. A irritação tinha a ver consigo, com o facto de estar na suite do casal, enroscado na cama com o gato da família. Mas qual era o problema daquela gente? Parecia que tinha sido apanhado a roubar. Seriam, certamente, mais benevolentes e compreensivos se o tivessem apanhado na cama enroscado com a empregada. Que gente sensível!

Ao lado do de Bonifácio José, um rosto de olhos esbugalhados observava-o. Não conhecia aquela cara e isso enervou Januário. Clotilde Margarida apresentou-se. Era a mulher de Bonifácio que ainda bufava para o ar acerca da inadmissibilidade de não estar a conviver com os restantes convidados e ter de andar pela casa à procura de Januário, e que o jantar estava servido, e que todos o aguardavam e que não era delicado nem adequado andar, assim, às escondidas pela casa…

Januário tentou defender-se, já que percebeu que não levaria a melhor se apontasse o absurdo de tanta inquietação por causa de uma cama e um gato.

– Adoro gatos. Não lhes resisto e ele é tão simpático…

Encaminhavam-no escadas acima, quando Januário se lembrou que tinha acabado por não ir à casa de banho e era, agora, ainda mais urgente que o fizesse. Bonifácio e Clotilde encaminharam-se para o piso de cima. Antes disso, porém, Bonifácio assegurou-se de que Januário, desta vez, entrava na porta devida e aproveitou para trancar o quarto com o gato lá dentro.

A mesa de refeições era feérica, misturando inúmeras cores de intensidade circense, mas com uma harmonia espantosa que muito impressionou Januário. A luz das velas criava uma atmosfera intimista ou romântica que sempre lhe agradava, pois permitia camuflar-se entre as sombras e os reflexos e passar mais despercebido, sem ter de olhar diretamente nos olhos de alguém, coisa que sempre o atrofiava um pouco. Não havia, por isso, receios. Estava protegido por aquele biombo de bom gosto e requinte. De luzes baixas, amarelas e ondulantes, que nunca permitiam dizer com segurança, quem olhava quem. Claro que também necessitava de alterar a graduação das lentes, mas fosse qual fosse a verdade dessa falta de vista crescente, tudo junto e sentia-se seguro. Iria mesmo arriscar o vinho, que se esparramava em decanters dalinianos, cuja barriga de vidro escorregava para fora da borda da mesa, como os relógios do pintor.

A dado momento, Januário Miguel percebeu que a conversa exigia a participação de todos. Não era a coisa que mais lhe agradava, mas o serão até estava a correr de feição, pelo que não se iria colocar na confortável zona do bicho do mato. Pedia a simpática anfitriã – que agora, sem os olhos esbugalhados, até se revelava bem gira – que todos contassem um episódio embaraçoso. Algo que recordassem ainda com algum constrangimento, não obstante a benesse do tempo decorrido. Houve relatos escatológicos, movidos a crises intestinais extemporâneas, um dente que caiu em pleno direto televisivo – parece que havia jornalistas na mesa, mas Januário não via muita televisão –, uma saia presa nos collants um dia inteiro…

Era chegada a vez e Januário Miguel. Não sabia bem o que contar, não tinha experienciado muito daquele bric-à brac quotidiano, mas recordava com mágoa uma grande injustiça, pelo que se decidiu por ela.

– Um dia, de madrugada, à porta de um clube noturno da moda, encontrei uma jovem caída no passeio. Sozinha. Meio inanimada, envolta numa poça de vómito e uma saqueta de pó branco e comprimidos na mão. Um quadro muito triste, olhos vazios e revirados… Tentei falar com ela, saber qual a morada para a pôr num táxi a caminho de casa. Não se recordava do que quer que fosse. Nem o nome me soube dizer. Ainda a esbofeteei, para ver se o cérebro retomava as suas funções básicas, mas nada. Lembrei-me do telemóvel, onde hoje se arrumam vidas inteiras e procurei o contacto dos pais. A miúda, que até então apenas interrompia a baba para a trocar por mais vomitado, saiu daquele estado pré-comatoso de um salto, como se lhe tivesse tocado de forma imprópria no corpo e olha-me em súplica.

– Não avise os meus pais, por favor. Não posso… não assim…

Os olhos da audiência de Januário escancaravam-se no seu máximo ângulo e bocas havia que se entreabriam. Se tivesse reparado como captara a atenção dos comensais, talvez o narrador se tivesse assustado com tamanho interesse despertado. Como não reparou, ele lá continuou a sacar do peito e da memória aquele nefasto e bizarro caso.

Tive pena da miúda. Uma noite péssima só acabaria pior se os pais a vissem, naquele estado deplorável. Ainda que meio-morta, a miúda tinha razão. Se a queria ajudar, teria de ajudá-la de facto e não empurrá-la para maior degredo emocional. Levei-a para casa, às cavalitas. Uns cinco quilómetros às cavalitas, que por tão pouco nem me atrevi a mandar parar um taxista. De manhã, bate-me à porta a polícia, com palavras rudes, indiciações de sequestro e abuso de menores e uns pais histéricos que me atacavam com murros… A miúda, já de banho tomado e uma torrada no estômago, o que é que faz? Aproveita em parte a história que se começava a montar, diz que não tem memória, que era como se estivesse drogada – o que me faz desatar a rir, percebi depois que não jogou a meu favor –, resumindo, que não se lembrava de nada. Referiu que num minuto estava a dançar, no outro na minha casa de banho. Foi o cabo dos trabalhos. O meu cérebro explodiu. De morta-viva a vivaça da silva e sem pingo de reconhecimento. Jamais lhe toquei, exceto para a carregar que nem um camelo durante quarteirões e quarteirões. Dezasseis anos! Aquela criatura sonsa e maldosa, com maquilhagem até ao tutano, sacos de cocaína nos bolsos e uma bebedeira hercúlea, tinha apenas dezasseis aninhos e uma lata descomunal.

Tecia à minha volta a mais pérfida das teias, a ‘menina’, que os pais gritavam ser inocente e ingénua e ter um coração do tamanho do mundo. Não sei em que planeta vivem. Enfim, a polícia acabaria por acreditar, e câmaras de vigilância e amigos da ‘pequena’, corroborariam a minha versão, mas nada convenceu os pais, mesmo com testes médicos e toxicológicos que deitavam por terra as pretensões de todos aqueles desconhecidos para me incriminarem por ter feito uma boa ação e não deixar a fedelha no meio da estrada. Mais valia!  Resolveu-se tudo, nem sei como, antes de queixas-crimes e tribunais, porque andava um figurão qualquer à procura da miúda, por ela lhe ter roubado ‘bens’ pessoais nessa mesma noite, naquela discoteca. O pior de tudo é que atrasou por completo a minha vida e ainda fiquei sem a minha melhor camisa, que emprestei à jovem e que até hoje nem se dignou entregar-ma. Era de seda e algodão, com um toque suave excecional e todos os botões tinham cores diferentes…

– Olá a todos. Mãe, encontrei a prima Aniceta Cristina que dorme cá esta noite. Avisas a tia?

Era Benilde Sofia com a prima pela mão, que entrava de rompante na sala de jantar. A prima Aniceta Cristina vestia uma camisa cujos botões eram todos de cor diferente e cujo toque de seda de algodão se adivinhava, mesmo com aquela luz, excecionalmente suave.

Moral da história:

Se não é sociável, não socialize. Se não gosta de pessoas, não interaja. É tudo uma grande chatice quando a mentira soa melhor do que a verdade.

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