Esta é, infelizmente, uma história batida. Tão batida que já nem dor sente, de tão repetitivas que são as vergastadas diárias e os abusos, incluindo de linguagem. Podia contar-se em três tempos, mas como temos vagar, fazemo-lo em um pouco mais, que os detalhes e um bom relato, nestas coisas, são de valorizar. Se não apreciar o slow-reading nem miudezas, pode saltar que o comboio ainda mal começou a andar.
Podia igualmente resumir-se a três personagens, o Manel, a Maria e o Juiz Ambliope. Estes, para nos colarmos um pouco mais à fábula de Esopo que aqui nos reúne, neste pedaço de prosa, seriam, pela mesma ordem de apresentação, o Cão, a Ovelha e o Juiz. Vamos, porém, dar profundidade psicológica a cada uma delas – mas não muita, pois não sabemos o que poderíamos encontrar lá bem no fundo – e, para tal, necessitamos de acrescentar mais umas quantas personagens, as quais introduziremos sempre que tal se justifique.
O Manel
Comecemos pelo Manel. O Manel vem da classe alta. Não tão alta como ele imagina, que essa não é verdadeiramente visível nem Manel é provido de muita criatividade, mas vem de uma relativamente mais alta do que todas as outras percetíveis a olho nu, pelo que Manel estava habituado a pensar em si, não como um ser socialmente privilegiado, mais ainda sendo branco, hétero e cisgénero, mas como um ser inata e naturalmente superior. Havia nele tanto de arrogância e soberba, como de imbecilidade e embrutecimento, que o excesso de mimo é outra espécie de incúria, cria mais arestas do que lima. Os pais do Manel eram encantadores. Brincavam aos casamentos há tempo suficiente para que Manel já fosse imune à toxicidade dos abusos infames do pai, verdadeiro terrorista psicológico, e ao psicótico génio manipulador da mãe. A fachada era perfeita, ou, pelo menos, gira de se ver ao longe. O interior era do género doentio, com cada um a gerir parcelas de felicidade e bem-estar individualmente e sem grande sucesso, e não a agir enquanto uma entidade coletiva, uma família una, um grupo a zelar pelos interesses de todos, um núcleo duro ou caroço. Cada um que se safasse. O pai fazia-o humilhando a mãe e esbanjando amantes. A mãe cumpria o mesmo lema abusando de psicotrópicos prescritos por inúmeros terapeutas, psicólogos e psiquiatras e alargando as suas experiências sexuais com todos os amigos ou colegas que conseguisse. Mas não conseguia muito, na verdade. Manel almejava uma certa acalmia sempre que vestia a sua capa de super-rufia da escola, o que acontecia dia sim, dia sim e ainda ao fim de semana, junto de primos, vizinhos e praticamente qualquer ser vivo com quem se cruzasse. Um temperamento violento e errático que era amenizado por diagnósticos caseiros de “menino bom incompreendido” e “uma escola pouco estimulante”, que desculpavam até abusos físicos e psicológicos com que atemorizava empregados domésticos e, na verdade, todos aqueles que atemorizava. O dito “menino bom incompreendido”, com o tempo, tornou-se num jovem obscenamente mimado, inseguro e com déficit de autoestima, que era temido por ser exímio na delicada arte do bullying. Uma joia de moço, portanto.
A Maria
A Maria foi educada por pais liberais, imbuídos de princípios sociais igualitários e humanistas, e incentivada, desde sempre, a seguir os seus ideais, a desbravar o seu caminho, de igual para igual, sem estigmas de género, condição social ou qualquer outro. Pensamento crítico, autodeterminação, autonomia, igualdade e pelo na venta faziam parte do ADN de Maria. Um quadro familiar que germinou ainda doses significativas de criatividade e originalidade, de capacidade argumentativa e interesse pelo conhecimento e pelo outro. Maria era dada a filosofias e destacava-se na vida académica por ser uma voz ativa e participativa, inteligente, dinâmica, dinamizadora e até poética, e, fora dela, por ser empática, comunicativa e solidária. Tinha uma ampla rede de amizades variada e heterogénea, o que resultava dos inúmeros interesses que alimentava: música, pintura, voluntariado, desporto… o que consubstanciava vários núcleos de ação intelectual e social e alimentava a sua ânsia de conhecimento. Ágil e extrovertida, era ainda linda, apesar de traços exóticos que poderiam não ser consensuais, mas que ganhavam graça e sensualidade, porque associados a uma personalidade vibrante, colorida e destoante das demais. Não encontramos disto todos os dias, verdade?
O Juiz Ambliope
O Juiz Ambliope era, contrariamente ao que poderiam prever os estudos e vivências que lhe haviam permitido chegar ao lugar que ocupava na magistratura, era, dizíamos, um homem de vistas curtas e conceções do mundo emolduradas a régua e esquadro e enfeitada de rançosos estereótipos. Azedo, de mal com a vida, frustrado, maçado e maçador, fã de clichés e adágios populares, vivia num pequeno universo de intrincado linguajar jurídico que lhe esmifrara o prazer de viver, se é que o chegou a ter algum dia. Um mundo partilhado com a mãe, a quem era absolutamente devoto, bem como a Nossa Senhora de Fátima e a mais um ou outro santo, únicos seres impolutos e incapazes de pecar, cujas imagens decoravam o austero apartamento onde vivia com a progenitora. Não vamos acrescentar a sua falta de sucesso junto do sexo oposto, nem mencionaremos as tentativas frustradas de vingar perto do mesmo sexo, nem um outro dado que selaria com chave de ouro a imagem que, por esta altura, já fazemos do Juiz Ambliope, o de que já estava na casa dos 60. Afinal, sempre dissemos. Paciência. Também, é um dado público e apagar o que já se escreveu é sempre muito penoso para o escriba.
O caso
O caso que reúne tão opíparas personagens nada tem de insólito ou original. Basta a leitura atenta de qualquer pasquim ou do mero quotidiano e já se percebe que é o pão nosso de cada dia, por assim dizer. Tudo começou no início do mundo, mas vamos avançar no tempo que o jantar não se faz sozinho e há ainda mais coisas a cumprir na agenda de hoje. Assim, um fast foward, deixa-nos confortavelmente no momento em que a garrida Maria decide celebrar com os amigos os 20 valores obtidos com a sua Tese de Mestrado, com a qual prevê a urgência de novas formas de entendimento político, ambiental, social, cultural, económico e urbanístico e delineia hipóteses de modelos para um futuro mais sustentável e humanamente habitável. Uma mega tese, um quase tudo em um, com a abrangência e o volume necessários para que muitos considerassem que eram várias teses numa só. Um trabalho que a academia acreditava merecer o título de mestre e de doutora de uma só vez. Maria era hiperativa, nunca se rendia a preguiças além de que tirava prazer da forma consciente como conseguia canalizar a sua energia para projetos hercúleos. Pois bem, Maria quer celebrar e reúne a sua histriónica grupeta de amigos, que parecem ter sido eleitos a dedo para a eventualidade de haver um segundo dilúvio e ser necessário um exemplar de cada possibilidade de gente. Todas as etnias, credos, preferências sexuais e profissionais estavam representadas. Um autêntico festival de cores e hipóteses de se ser feliz, ou de viver tentando lá chegar. Foi de t-shirt preta, uns micro-calções prateados, que a noite merece brilhos, e uns ténis confortáveis que Maria se preparou para dançar até ser dia, ou noite de um outro dia, já que Maria estava com tempo e precisava de férias académicas.
O grupo esgota quase a lotação de um clube alternativo, onde jazz, blues e funk uniam esforços para galvanizar uma clientela garrida e descomplicada. Maria rodopia na pista sem parar.
Manel, que junto de três rufias tinha elegido o mesmo clube para “aviar” uns gays, só para descomprimir, repara em Maria e acredita que foi o destino que ali o tinha levado, com o propósito de os juntar. Queria aquela miúda. Esqueceu a vontade de bater em inocentes pelo simples facto de se sentirem atraídos sexualmente por pessoas do mesmo sexo e fixou-se nos residuais calções de Maria. Maria sai para fumar. Manel sai no seu encalço. Mete conversa, mas Maria topa-o à distância. Além de que quer apenas dançar, libertar-se e receber boas energias. Eventualmente beber um pouco mais do que o costume e, até, quem sabe, fumar algo recreativo, e mistelas recreativas era coisa que não faltava a boa parte da sua gente.
– Olha, marcamos encontro para daqui a um ano à mesma hora. O que me dizes?
Maria estava a ser sincera, e até um pouco romântica, quando disse isto a Manel, mas este empertigou-se com o desplante da garina e sentiu a sua masculinidade ameaçada, já que tinha óbvias e patológicas dificuldades em lidar com a rejeição e a frustração. Mas quem era aquela “vaca” para o recusar? Aquela “oferecida, com o rabo quase à mostra” tinha de aprender uma lição e não era daqui a um ano, seria já nessa noite. Já naquele instante.
Manel agarra-a pelo pulso com tamanha força que seria impossível a Maria libertar-se. Maria é invadida pelo terror. Nunca tinha visto noutro ser humano tudo aquilo que vislumbrou nos olhos enegrecidos de Manel. Reage. Eleva o joelho e projeta-o contra a braguilha do estafermo, que se encolhe, mas sem nunca largar o pulso de Maria, o qual, agora, torce brutalmente. Maria grita, mas logo sente uma mão vinda não sabe de onde a abafar os seus pedidos de ajuda. Quase sufoca. Não saem gritos, nem entra ar. Sente-se a perder os sentidos. Uma dor lancinante no abdómen. Tem agora ambos os braços presos atrás das costas. A boca tapada por uma sólida mão de betão armado e uma urgência de oxigénio aflitiva. O monstro ergue-se à sua frente. Não é ele quem a manieta. Não está sozinho. Outro vulto surge por detrás do agressor.
– Então, pá!? A gaja é tesa.
– Pois é. Vai ter de levar tratamento triplo. Leva-me essa mula para o beco.
Maria é arrastada pelo chão e pelo ar. Sente na boca o sabor nauseabundo de sangue. No meio de todo aquele turbilhão, dá por si a pedir que seja o seu próprio sangue. A ideia de poder ser de outra pessoa e aquela dor na boca do estômago causam-lhe profunda náusea. Um vómito que só encontra saída pelos orifícios nasais. Um grito de nojo vindo de trás. A mão que lhe tapava a boca desprende-se. O vómito de Maria ganha ímpetos de jato. À sua frente, abrindo o fecho das calças, Manel recebe o vómito na cara. Enfurecido, esbofeteia Maria. Força-a a ajoelhar-se. Coloca-lhe o sexo na boca. Maria sufoca. Não percebe. Está agora com o rosto no chão. Os joelhos raspam na gravilha. Primeiro um. Depois outro. Por fim, o monstro que a agarrava. Maria não se conseguia mexer. Sabia apenas que estava nua. Sozinha. Invadida na sua liberdade. Vencida dentro das suas fronteiras. Violada. A raiva, a dor e o medo de novas investidas e a incapacidade de se mexer.
Deram por falta de Maria. Procuraram-na. Acabaram por encontrá-la. Veio ajuda. Um casaco para a tapar. Hospital e polícia. Vieram perguntas e peritagens. Kits de violação e imagens de vigilância do clube. Veio a cara de Manel e parte de tudo o que aconteceu, antes de ficarem a coberto do negrume do beco, onde a única câmara de serviço tinha sido providencialmente vandalizada.
Depois de ter sido identificado, surpreendido, Manel Cão (de seu nome incompleto) apareceu para prestar declarações e avançar com a sua versão dos factos. Violação? Estariam loucos? Ela estava doida, a meter-se com ele com conversas ordinárias. A pedir isto e aquilo. Viram como estava vestida, ou antes, despida? Se aquilo não era um claro convite para o sexo, o que seria? Não ficou sequer satisfeita. Queria dogging e, no final, quis experimentar também a potência viril dos mirones. Depois pediu dinheiro e, aí, Manel disse que se tinha sentido ofendido, afinal, não dormia com prostitutas, que não era isso que tinha aprendido em casa.
Entraram em cena os advogados, com os seus risos sínicos, fatos de mau e de bom corte, conforme as posses de cada um dos lados da contenda. Advogados que se conheciam entre si e que pareciam mais interessados em não melindrar essa relação do que em vencer o processo. Com eles veio todo aquele linguajar indecifrável, o bafiento latim e as patéticas togas com manchas de anteriores crimes e cheiro a tribunais húmidos.
As Testemunhas
Não faltaram as testemunhas. De Manel, que Maria era das poucas do seu grupo de amigos que ainda fumava, pelo que se habituara a sair para fumar sozinha, sem nunca achar que necessitava de chaperone ou que viria a precisar de testemunhas que corroborassem a veracidade de uma violação tripla, às mãos de violentos sociopatas. Maria estava sozinha. Manel não. Lobo e Abutre, os outros dois perpetradores do crime cuja identidade a polícia não tinha conseguido obter, compareceram voluntariamente a fim de corroborar a verdade verdadinha da versão de Manel Cão.
– A miúda estava louca de desejo. Queria cenas maradas. Tivemos até que a refrear e às tantas deixámo-la sozinha, com medo de chatices.
Poupamos todos à insuportável irritabilidade dos falsos, humilhantes e inadmissíveis testemunhos dos matarruanos abusadores que rumavam contra a dolorosa versão do ocorrido da magoada, mas aguerrida Maria, contrariada ainda por uma muito honesta e providencial testemunha ocasional, fabricada pela inescrupulosa defesa de Manel. Tratava-se de Milhafre, uma testemunha ocular a soldo, que muitos favores devia a Manel, seu compincha de psico e sociopatias várias, a quem olhava como grande líder da cavernícola classe masculina. Milhafre, que o juiz considerou um jovem garboso e bem articulado, descreveu a cena como a típica de engate de uma prostituta de rua. Disse ainda que Maria tinha adorado, e que exultava e gemia de prazer com os rapazes. Milhafre jurou por Deus e o juiz não precisou de ouvir mais para avaliar a localização exata da verdade. Já Maria tinha sexo escrito em todos os centímetros de pele, a qual, de resto, parecia querer rebentar com a fina camisa de musselina que a cobria. O demónio anda à solta em peles como a de Maria, e Ambliope bem o sabia.
A audiência
Ao juiz caiu mal aquilo a que na sentença se referiu como sendo a “determinação vingativa” de Maria, mas pior lhe caiu a foto com a pouca e vergonhosa roupa que usou na noite dos factos. Estava mesmo a pedi-las, sendo que isso corroborava a versão de Manel, de que Maria tinha, na verdade, solicitado sexo bruto com todos. Por estar bem por dentro do universo das parafilias, o juiz ia enraizando a certeza que já tinha como certa desde o início: as mulheres são seres do demo, não restando aos homens muito mais do que subjugá-las até que se tornem puras e fiquem livres da sua depravação. Talvez este episódio sirva esse propósito junto desta alma devassa, assim queira Deus, pensava o juiz a meio das alegações finais, antes de dormitar um pouco, que o arroz de cabidela do almoço estava demasiado condimentado para o seu delicado trato digestivo. Quando acordou, estava certo e seguro de que a estouvada Maria mais não era do que uma sedutora Eva num paraíso de perdição. A Manel, o pobre Adão, não reconhecia culpa outra que não a de ter obedecido aos impulsos pecaminosos de uma mulher lasciva, mergulhada no pecado da luxúria. Maria, a ébria debochada, teria de ser a ovelha sacrificada no altar da suprema justiça, onde ele oficiava. Manel, o rapaz de boas famílias, com aquele corpo lindo e um futuro brilhante pela frente, não podia ver a sua vida conspurcada por tão ignóbil criatura de ridículos calções prateados. O que seria? O mundo não podia continuar a perder-se nas vielas do pecado imundo, à mão de uma juventude feminina que se dizia emancipada, mas que mais não era do que o braço armado de Jezabel e Maria Madalena a uma só vez. Estava nas mãos de homens como ele, Juiz Ambliope, colocar as coisas nos seus devidos lugares. Quem sabe, assim, Maria não deixaria ainda de fumar, que é coisa aberrante numa mulher. A sua mãe jamais tocou num cigarro. Se não as deixassem estudar tanto, não metiam tantos disparates na cabeça, mas tudo tem solução e ele era um solucionador, um justiceiro. Nada estava perdido ainda.
O juiz estava feliz pela sua capacidade de discernimento e ainda agradecido a Nossa Senhora, que sempre lhe fazia ver a luz no meio da escuridão das suas sestas em dia de decisões sérias. O acórdão já soava na sua mente. Lembrou-se de que era quarta-feira, não podia chegar tarde a casa, pois era dia de empadão de carne e a mãe odiava empadão frio.
Moral da história:
Calções prateados e empadão de beatos não promovem bons acórdãos.
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