O amor não contempla comparações e mesmo que as admitisse, numa tola suposição, como equiparar emoções, como perceber, em absoluto e sem resquício de dúvida, se um amor é mais feliz do que o outro, em maior quantidade do que outro, mais completo ou perfeito do que os demais? Os afetos, cada um por si, têm vida e existência próprias. Existem na sua exata medida, proporção e dimensão, as quais lhe são exclusivas. Não se podem relacionar nem relativizar perante o que quer que seja, nem mesmo por sentimentos que julgamos pares ou equiparáveis. São avaliáveis as expressões que deles emanam. São mensuráveis as manifestações que podem originar em cada um dos amantes. As formas como exaltam ou calam os afetos para o exterior. São visíveis as ações, mais ou menos românticas, mais ou menos exteriorizáveis de algo que vai na alma. Porém, é paupérrimo e vácuo qualquer argumento que, em função do que é visível, se preste a avaliar, quantificar ou qualificar um amor em função de outro. Isso é conversa de vizinhança desocupada, de amigos que se prestam mais a julgar do que a compreender ou meramente a aceitar a realidade dos outros, já que cada um tem a sua, disso que não se duvide.

Assim, e ainda que longe destas considerações, já que era homem pragmático pouco dado a teorias filosóficas ou pensamentos demasiado abstratos e elaborados, Aquilino considerava-se feliz. Amava e era amado. Um amor satisfatório, dado que preenchia medidas e requisitos de ambos os envolvidos, ou assim o aceitava sem grandes inquietações. Considerava-se um homem feliz, realizado, com motivos de orgulho pessoal e profissional. Tinha uma mulher fantástica a seu lado, a quem se dedicava exclusiva e apaixonadamente – ou algo equiparado –, e uma profissão que, sem grande espaço de manobra para se falar em carreira, lhe proporcionava, apesar disso, conforto e cujo desempenho lhe agradava. Havia acomodação em tudo isso, mas era consentânea com a sua preguiçosa forma de ser e de estar na vida. Era homem de uma só mulher. Uma casa na cidade, à distância apenas de algumas estações de metro do trabalho, e sem ter de mudar de linha – esse tinha sido um dos seus requisitos quando procuraram casa –, ainda um pequeno apartamento alugado em Armação de Pera, durante uma quinzena para umas rotineiras, mas sempre desejadas férias. Sempre o mesmo apartamento, alugado de ano para ano, à mesma proprietária. Um ramerrame que estava para Aquilino como o ronronar está para os felinos. Previsível, mas, ainda assim, agradável. Morno. Sem surpresas nem desagravos. Era o seu naco de vida. A sua quota-parte de conquistas. O seu pedaço de mundo. Bastante mais do que a maioria e suficiente para a sua boca. Tudo na medida certa. Um verdadeiro reino, onde se sentia dono e senhor. Quando pensava nisso, sorria interiormente de satisfação. Um amor, um espaço seguro, uma cama quente onde se aconchegar e coisas para fazer num escritório onde se sentia útil. Tudo o resto são adereços e os acessórios, é sabido, não enchem a alma nem acalentam o espírito.

O dia tinha começado com ameaça de tempestade, num abril em tudo insólito, por razões várias e bizarras, onde pandemia e pandemónio se aproximavam tanto na vida de todos quanto no dicionário. Trovejava, pelo que Aquilino temeu usar o elevador. Iniciava a descida dos oito lanços de escada quando, da porta ao lado da sua, saiu a nova vizinha. Uns sorrisos, uma curta apresentação e ambos a explicarem a vontade de exercitar as pernas em vez e arriscarem ficar presos no elevador, não obstante haver um circuito seguro exclusivo dos ascensores, como lhes haviam explicado, mas… O seguro morreu de velho e tranquilamente, pelo que valia a pena seguir-lhe o exemplo. Entre um e outro patamar, Aquilino ia rejuvenescendo. Claro que os anjos ajudam na descida, mas aquele anjo era deveras prestável. Não apenas aligeirava o passo e tonificava os músculos, como a cada degrau ia recuando no tempo. Quando chegaram ao átrio do edifício, Aquilino jurava ter menos quinze anos e acreditava que se verificasse o seu cartão de cidadão ele lhe diria isso mesmo.

Não se recorda bem do início da conversa, nem de tudo aquilo que lhe disse ou de tudo o que ouviu, mas chegados ao fim da descida estavam a trocar números de telefone e perfis e sorrisos tão imberbes que roçavam o constrangedor, se vistos por alguém que não os envolvidos. Quando entrou no metro, a sua mente ainda era ocupada com a imagem, em tamanho outdoor, dos reduzidos calções de Anabela – é verdade, a vizinha chamava-se Anabela, o que prova que ainda existem Anabelas no mundo. A imagem era a cores, mas tudo encaixou no seu peito como uma matriz a preto e branco, como negativo que não necessitasse de revelação. À chegada ao escritório, era já o peito atrevido da vizinha quem desviava a sua atenção dos primeiros e-mails do dia.

Considerava-se, por essa altura, um homem curioso, cheio de vida e energia, avesso a rótulos e monotonias. Praticamente um aventureiro, de cabeleira ainda farta – ou perto disso – e um corpo recortado por músculos. Não tinha apreço por marasmos e, dentro destes, a própria monogamia soava-lhe a ranço geracional, a espartilho cultural. Um amor único e exclusivo no espaço e no tempo era uma construção religiosa, uma forma de manter o rebanho ordenado e obsequioso. Um método socialmente imposto para domesticar a testosterona e garantir aos menos ricos e poderosos que as suas mulheres não se deixavam encantar pelos atributos e valentia dos mais afoitos.

Aquilino dedicou toda a manhã a visitar e a fazer-se visita em todos os perfis de Anabela que encontrou. Logo se trocaram mensagens e gracinhas adolescentes, meias palavras e subentendidos. Dois garotos presos ao teclado, num início de qualquer coisa que Deus juntou pela mão de uma tempestade. Santa Bárbara bendita! Já a tarde lhe pareceu ainda mais proveitosa, toda ela ocupada com buscas de temas pertinentes como ‘Adultério, as melhores práticas para não ser descoberto’ e ‘Poliamor, o que é e como funciona?’ Findo o mestrado nestas matérias desempoeiradas e de aromas ultracontemporâneos, Aquilino apressou-se a regressar ao lar, sabendo, de antemão, que Anabela também não tardaria a partilhar paredes consigo. Que coisa maravilhosa, pensou. Nem precisaria de sair de casa, ou trocar as pantufas pelos sapatos para ir ter com a amante. Já lhe chamava amante, pelo que não lhe restavam muitas dúvidas de que havia sido tomada uma decisão daquelas que mudam uma vida. Porque contentar-se com uma porção, quando poderia ter duas? Um naco apenas quando poderia banquetear-se com dois? A luxúria entusiasmava-o, claro, mas a logística da coisa, essa, fascinava-o. Haveria coisa mais cómoda e pacífica do que ter dois amores num mesmo andar?

Em pleno entusiasmo, Aquilino não tinha despendido espaço e atenção a um elemento deveras importante naquela aventura dos sentidos: a mulher. Não se sentia particularmente empático perante possíveis suscetibilidades da parte dela. Avaliando o quinhão de campeão que lhe estava a ser oferecido de bandeja, e trajado com uns nano-calções, qualquer obstáculo levantado pela mulher teria de ser driblado com habilidade e sem dramas. Todavia, o amor que sentia por Felisberta, seu amor primeiro, fazia com que não se sentisse confortável com a saída eventual e inicialmente mais fácil: mentir. Não podia. Até porque não estava preparado para perder a mulher, por causa de uma mentira, de um caso que poderia não durar o suficiente nem ser afetivamente marcante ao ponto de justificar a perda de um amor maior. Por outro lado, a avaliar tudo aquilo que lhe ia no peito e percorria outras áreas do seu corpo e cérebro, também não imaginava que aquilo que pretendia desbravar com Anabela acabasse em pouco tempo. Aquilo era coisa para merecer várias visitas, muitas saídas e incursões várias, físicas e intelectuais, afetivas e sexuais. Anabela fascinava-a. Identificava-lhe um interesse distanciado. Era como se ela o desejasse com ardor, mas não muito ou, pelo menos, assim programava que a mensagem passasse.

A sensação assemelhava-se à de alguém que parece olhar através de nós, ou finge que nos escuta, quando percebemos perfeitamente que não está ali, a ouvir. Apenas um corpo à nossa frente. Cérebro e espírito de saída, numa qualquer viagem para a qual jamais seriamos convidados. Anabela era tudo isso. Instigava-o, seduzia-o, mas sem a continuidade e intensidade que uma paixão no seu primeiro estádio implica e exige. Anabela era uma teaser. Tinha de a apanhar o quanto antes, que aquilo não era coisa para grandes cortejos, nem havia propósitos de casamento, apenas de acasalamento e tanto ela quanto ele estavam bem cientes disso tudo. Além de que Aquilino não era nativo virtual e gostava de tocar. Tocar, todavia, era coisa complicada por estes dias, mas nada que uma boa e prévia desinfeção e imaginação na cama, para que não se trocassem mais fluidos do que os necessários, tudo se conseguiria, que não era um vírus que acabaria com a traição. Parou de novo. Traição. Não podia trair a mulher. A sua querida Felisberta. A sua Berta Feliz. Contar-lhe-ia. Abordaria as relações abertas e aguardaria que Berta estivesse aberta a novas experiências. Falar-lhe-ia do poliamor, ou podiam apenas começar por uma ménage à trois. Fosse como fosse, ela teria de participar, de saber e de concordar.

Passo um: apresentar a vizinha. Provocar um encontro casual, o que, sendo vizinhos do lado, não seria complexo nem estranho. Talvez mesmo forçar um jantar com as devidas distâncias sociais ou oferta de álcool-gel, em vez de vinho. Quanto à logística, às máscaras e luvas, logo pensaria nisso. Alavancado o mood sexual, tudo será facilmente incluído num role play e ganhar até contornos kinky. Já os imaginava em práticas sexuais pouco convencionais. Porque não embarcarem no peculiar? No bizarro? Os tempos que se vivem não são menos do que isso mesmo, uma bizarria, uma extravagância que tinha vindo para ficar, quanto a isso não se equivocassem os saudosistas daquele outro mundo que até há bem pouco todos habitávamos. Quem sabe se o novo normal da sua vida sexual não seria o ‘desviante’? Esse era um bom argumento para apresentar a Felisberta: deixar o planalto sensaborão da baunilha e somar sabores exóticos à vida sexual de ambos. Voltar ao frenesim da luxúria dos primeiros anos juntos. Abrir a mente à novidade. Refrescar entusiasmos e premir com volúpia a tecla da excitação. Afinal, não iam para novos e experimentar faz parte da saudável curiosidade humana. Enquanto casal, só tinham a ganhar. Era uma boa argumentação. Aquilino desejava apenas que Felisberta não propusesse antes um trio maioritariamente masculino. A experiência que ele queria levar a cabo, não era abstrata, nem visava apenas a vivência de algo novo, pela vivência de algo novo. O que ele pretendia era experimentar com a vizinha. O que ele queria era Felisberta, lá de casa, e Anabela, da casa do lado, juntas numa mesma ‘sandwich’, por assim dizer, e que lhe perdoassem a metáfora culinária, boçal e vulgar, mas muito apropriada.

By Rodney Smith

O primeiro encontro aconteceu inesperadamente logo naquele primeiro dia, quando Aquilino, ao regressar a casa, encontra ambas as mulheres, a legítima e a futura amante, a conversarem no patamar do oitavo piso. Que maravilha! A imagem era – dando seguimento à metáfora gastronómica – deliciosa. Uma loura, outra moura, como aquela outra canção. Na sua mente listavam-se já todas as especiarias que entendia necessárias para condimentar aquela magnífica receita. O quadro era sensual e apelativo. De tal forma que Aquilino, num ato de pura espontaneidade sugeriu, de imediato, um jantar. Surpreendido, percebeu que esse era já o entendimento de Felisberta e Anabela, que já tratavam da ementa, com base no produto de ambas as despensas. O vinho estava a cargo de Aquilino. Incrédulo, mas esfusiante, achou que tratar do vinho para ter na mesma mesa, e logo que possível na mesma cama, a mulher e a vizinha, eram os mínimos olímpicos. Entendeu mesmo que deveria contribuir com algo mais. Nem entrou em casa. Voltou à rua para tratar também da sobremesa, no topo da qual desejava colocar a cereja sexual. Não bastava desejar. Aquilino começou a engendrar um plano. Talvez com vinho suficiente e uma conversa bem conduzida, acabassem a banquetear-se de outra forma ainda nessa noite. Era demasiado ambicioso, mas se era para desejar, que fosse em grande.

Aquilino exultava. Sentia-se um adolescente prestes a conseguir a primeira relação sexual digna desse nome. Seria o seu primeiro trio. E que trio. Teria tudo a dobrar. Duas mulheres, duas casas, dois reinos. Duplicaria as suas hipóteses de felicidade. Era o esplendor do poliamor. Quem sabe, mesmo, se ambas as mulheres não embarcavam nesse comodismo? Com toda esta história do coronavírus, era até uma questão de higienização, de proteção sanitária ter tudo à mão, sem necessidade de sair à rua. A desinfeção estava mais garantida num único piso, no seio de uma família única, ainda que alargada a suas mulheres. Não acreditava na sua sorte. O jantar correu otimamente. Felisberta e Anabela entendiam-se às mil maravilhas. Um sem-fim de coisas em comum, um entendimento ímpar, o mesmo sentido de humor e quase uma atração física. Havia toque, risadas, mais toque… Aquilino inebriou-se com aquela imagem, e com o vinho também. Acha que perdeu um pouco o rumo à história. Não entende como é que aconteceu. Acordou entorpecido. O corpo todo dorido. Tinha-se deixado dormir no sofá. Uma peça de design que, agora bem o percebia, não tinha sido concebido para dormidas, antes para fins decorativos. Procurou Berta. Não a encontrou. Temeu o pior. Tinha-se deixado dormir e perdido a hora de se levantar. Já devia ser muito tarde. Tinha de se despachar. Olhou para o relógio. Seis da manhã. Afinal o despertador ainda não tinha tocado.

Onde estariam elas? Que má noite para se apagar com álcool. Recriminava-se por tamanho desleixo numa noite decisiva para dar início ao seu plano. Que estúpido. Principalmente porque tudo parecia que seria mais fácil do que imaginara. Tudo subentendido, sem necessidade de convencer ou argumentar. Apenas intuição e química puras. Ligou para Berta, entre o atordoado e o preocupado. Aquilino não entendia. Sentia-se perdido. Só. Abandonado. A mulher foi direta: Não regressaria. Voltaria a casa apenas para levar a sua roupa e meia-dúzia de objetos pessoais. Ele que perdoasse. Ele que entendesse. Tinha passado a noite com Anabela e encontrado a sua verdadeira natureza. O seu destino. A sua verdade. Amava Anabela. Era repentino. Demasiado repentino, talvez, até mesmo para ela, mas quando nos encontrámos, percebemos qual o nosso lugar e é difícil sair de um lugar que percebemos ser o nosso. Aquele. O tal. Um lugar especial onde nos sentimos especiais. O seu era ao lado da vizinha Anabela.

By Pieter de Jong

Aquilino não compreendeu como passou de um homem feliz, de ter uma vida satisfatória, uma mulher, um amor para zero. Zero tudo. Uma sombra de si mesmo. Mais ainda, como foi que numa bela conta de vezes dois – de tabuada simples e cálculo mental fácil –, que jamais implicara ficar sem aquilo que já tinha, acabara esmagado pelo elemento absorvente da multiplicação: o déspota zero. O pior de tudo era que os melhores ‘nacos’ da sua vida moravam, felizes e apaixonados, na porta ao lado. Comiam-se e lambuzavam-se praticamente debaixo do seu nariz. Muito cru. Tão cru quanto sushi. Deveras cruel. Tão cruel como wasabi. Percebeu ainda que talvez devesse parar com as metáforas culinárias, mas era-lhe tão difícil resistir-lhes.

Moral da história:

É bom saber olhar para o umbigo e conseguir fazê-lo. Quer dizer que se está em forma e se é capaz de uma boa higienização corporal, tão vital nos novos tempos de higienização imaculada. Porém, não perder de vista que há muito mais para ver, ao perto e ao longe.

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