A noite prometia e ela jurava-lhe ainda muito mais. Ó, se jurava. Agendara consigo própria uma noite alta-total-completa e absolutamente délabré, décapé e fulminantemente esquecível. Boémia e decadente. Burlesca, até, porque não?! Sim, também planeava beber até ao completo esquecimento, muito embora programasse momentos épicos e cenas feéricas que colocariam num velho chinelo longe da memória as melhores atuações do Cirque du Soleil e Cardinali de uma só vez. Dançaria até perder os sentidos e nada poderia deter a vontade de se virar do avesso. Estava em modo wild party e já toda ela fremia de impaciência. Reforçou com um nó o laço da sua capa de veludo vermelha. Estava pronta para tudo, mas era escusado começar por mostrar demasiado ao tipo do Uber. Não era num carro que se queria divertir. Embora… Mas adiante.

Havia uma festa de máscaras à sua espera não longe dali e sabia como era bom reservar o melhor para o fim, ou, caso assim se proporcionasse, logo para o início da festa. Capuchinho Vermelho Decadent era o seu fato e toda ela era cosplay. Por fora, uma Lolita de se lhe tirar o chupa-chupa. Havia adoráveis tranças, umas sardas naturais de se morrer, umas meias até ao joelho, uns lábios carnudos e bem rosados e tudo guarnecido por uma capa de veludo que tudo tentava esconder. Por baixo dela, a maior surpresa de todas, mas isso teria de esperar pelo minuto exato, para alcançar o efeito desejado. Desejo era, em absoluta verdade, a senha de tudo aquilo que tinha encapsulado na sua mente para essa noite de ramboia. Concedia a si própria uma noite por ano de lancinante perdição e más decisões, e a deste ano era precisamente hoje. Uma purga anual – em tempos idos era de repetição semanal, mas isso já lá ia – de onde retirava as suas melhores histórias, aquelas que faziam vibrar o seu sangue, garantindo ao seu corpo que estava muito viva, ainda que terminasse praticamente morta lá mais para o final. Não raras vezes, eram também noites de enormes desilusões, prolongados vómitos, tremendos sustos e alguns preservativos defeituosos e hálitos que só se concebem num qualquer dos nove círculos do Inferno de Dante. Ainda assim, a ramboia subia mais alto do gráfico das gratificações do que a putrefação de certos episódios.

Era a noite de ir para a floresta e ser devorada por todos os receios lupinos das restantes noites que totalizavam uma completa voltinha ao sol. Hoje, era sem medos, sem reservas, sem preconceitos ou inibições. Tudo ou Nada, sendo que o Nada não era opção, pelo que… O Tudo que se preparasse. Capuchinho estava a chegar.

– Que Capuchinho Encarnado tão apetitoso! –, rosnou alguém ao seu ouvido.

Não reconheceu a voz e nem poderia. Não conhecia betos, e só o nojo do indivíduo em dizer vermelho e optar naturalmente por lhe dar o nome de en-car-na-do já dizia tudo o que pretendia saber sobre aquela personagem. Não sabia que a Liza – a anfitriã – conhecia afetados, mas não tinha importância. Olhou para aquele Lobo da linha de Cascais e – enquanto repetia para si própria que não podia beber ao ponto de esquecer que não deveria sociabilizar com o Lobo –, virou-se para o monte de pelo, que usava umas Paez de padrão muito básico, e atirou, como quem lança o martelo numa prova olímpica:

– Não preferes, antes, uma transfusão de sangue pelas mãos de uma enfermeira da Cruz Encarnada? Já vi passar pelo menos duas… Uma para cada um dos teus ‘caninos’ dotes.

Lobo esbugalhou os olhos de entusiasmo. Não tinha percebido patavina e isso excitava-o para lá do permitido por lei. Tinha absolutamente de descobrir o que Capuchinho Encarnado trazia no seu cesto. Spray pimenta. Essa foi a primeira coisa que Lobo descobriu que Capuchinho trazia na sua pequena cesta de lantejoulas e algumas paillettes. Ficou extasiado. Uma miúda cheia de expediente e capacidade de surpreender e uma verve rara com a qual não estava, de todo, habituado a lidar. Capuchinho já lá não estava há muito, quando Lobo finalmente conseguiu voltar a abrir os olhos e a conseguir enxergar, ainda que com uma quase total e persistente neblina roxa. Um contingente cromático que dificultou a sua perseguição por aquela floresta de êxtase. Por pouco não beijou uma Bruxa Má e um Pierrot, mas já não foi a tempo de evitar os avanços de uma Eva bem torneada, que erguia um cartaz apelando a que provassem as maçãs. A maçã era doce, já agora, mas foi já um pouco tarde que percebeu que era uma maçã de Adão. Cuspiu o caroço e despediu-se, meio agoniado.

Capuchinho, por seu turno, seguia o seu plano à risca e ao risco. Desbravava o início da noite a alta velocidade, transpirando aborrecimentos na pista de dança e exorcizando frustrações de viva-voz e até aos berros. Com a sua capa rodopiante, havia espaço suficiente em seu redor, o que lhe permitia uma clareira isenta de suores alheios e um hiato de gente que a deixava livre para se expandir em passos elaborados e complexas gesticulações que todos, em seu redor, evitavam, a fim de protegerem a sua integridade física e a laca que mantinha algumas perucas no ar. Claro que tudo isso mudou de forma trágica quando, com o aumento da temperatura corporal, Capuchinho retirou a capa vermelha e deixou a nu o resto da sua fantasia e sobre esta, pode dizer-se que era, de facto, fantástica. Não pela sofisticação, mas pela simplicidade, tão simples e despojada que descobria quase tudo, mas de forma, ainda assim, mais sensual do que sexy. Pouco importam os detalhes, o certo é que se tornou no vórtice centrifugador de todas as atenções e mesmo quem não dançava avançou com os seus melhores passos, inebriados com a mera possibilidade de tocar Capuchinho ou apenas de conseguir estar próximo daquele corpo endiabrado, o qual parecia nu, mas eram tantas as tatuagens que ninguém se atreveria a jurar tal evidência. Um E.T. andava demasiado sôfrego e acabou por descobrir outro dos acessórios que o diabrete vermelho trazia na tal bolsinha brilhante: um pequeno cipó, com o qual o açoitou entusiasticamente e com pontaria suficiente para lhe cortar a luzinha na ponta do dedo, mas sem que isso o impedisse de regressar à galáxia de onde tinha vindo.

Um sedutor e muito convencido Gato das Botas avançou com bravata e um requintado ramo de flores, mas a emancipada Capuchinho recusou, por gostar de ser ela a escolher e a comprar as suas próprias flores, como explicou displicente. Gato das Botas convenceu-se de que afinal, Capuchinho era um homem, pois nem concebia a possibilidade de uma mulher que não se encantasse com presentes e galanteios. Enquanto isso, cantava Miley Cyrus, dizendo praticamente a mesma coisa que Capuchinho, e com enorme entusiasmo. Gato das Botas sentiu-se esmagado e ultrapassado. Pulou para as suas botas das sete léguas e rumou para outra festa, mas como a próxima festa era logo ao virar da esquina, bem mais perto do que sete léguas, acabou bem mais longe e por lá ficou, segundo dizem, mas carece de ser apurado.

Uma Mata Hari delambida tentou a sorte, mas ficou-se pela terminação de um beijo, pois, embora adepta da experimentação, espionagem não era o género preferido de Capuchinho Vermelho, que estava de olho numa dupla policial capaz de dar andamento a uma longa-metragem e a uma série de várias temporadas. Mas nisto o seu cérebro fez zapping e as suas lentes entraram em contacto com um Freddy Mercury todo ele em bom e em tronco nu de se lhe tirar o bigode. Com um violento rodopio, voltou a encasular-se no veludo escarlate da sua capa e flutuou para junto dele, sussurrando-lhe bem junto do pavilhão auricular:

– It’s a kind of magic…

– Nada disso, é só uma roupinha de trazer por casa!

Riram desbragadamente e perceberam que era o início de uma boa amizade, mas apenas isso ou, afinal, nem isso. O Freddy vinha com um Harry Styles e os sete anões e Capuchinho ainda se recordava bem da última vez que tinha ido parar à história errada. Meteu bombeiros e urgências hospitalares e algo mais de que não tinha memória. Tinha outros planos para essa noite.

Um enigmático Batman ofereceu-lhe uma bebida e, aquilo, sim, era um bom pronúncio, embora continuasse a controlar pelo canto do olho uma Mona Lisa emoldurada numa linda estrutura de talha dourada. Enrolaram-se os dois, Capuchinho e Batman – prestem atenção à história – na gigantesca capa de capuchinho e muita coisa poderia ter acontecido ao abrigo dessa soberba tenda de circo vermelha, mas o equipamento do super-herói estava bloqueado e Capuchinho perdeu o interesse com a espera. Meio delirante, a um canto, dançava freneticamente um cowboy que, assim que a viu, não lhe tirava os olhos de cima. Capuchinho simulou o gesto de o estar a puxar com o seu chicote, e lá veio sedutor um cowboy do Intendente, meio indiano, meio nórdico, sem que as luzes permitissem avaliar nacionalidades. Mas que vinha matador, lá isso…

Quando já estava meio caminho, e Capuchinho exultava de felicidade, já em busca do telefone, pois um Uber poderia impor-se naquela situação – podemos brincar na rua com um super-heróis, mas um cowboy à antiga é coisa para se levar para casa, pensou –, quando uma Alice lhe acenou com um país das maravilhas, e o parvalhão cedeu ao embuste. Melhor assim, mentiu a si própria, para não cair na frustração.

Olhou em redor. Tequila pareceu-lhe a saída mais acertada para aquele momento da noite e o barman, já agora, nem sequer necessitaria de limão ou sal. Aquilo merecia ser tomado puro. Em modo shot. Aconteceram coisas debaixo do balcão, é certo, mas não as certas, nem as suficientes, que o fluxo de gente era qualquer coisa de insuportável. Muito bebia toda aquela gente. Cansada da posição e farta do odor a gelo, aborreceu-se e deu às de Vila Diogo, por assim dizer e assim ficou dito, levando algumas garrafas de álcool consigo. Se havia coisa que as suas purgas lhe haviam ensinado, é que álcool nunca é demais. Servem para alinhar os chakras, espalhar smileis e os mais diversos emojis por aí e ainda são úteis na desinfeção de cortes e outros ferimentos inesperados.

Enquanto ainda rastejava para se desembaraçar da zona de bar, viu passar os patins da garota do anúncio da Martini, uma cinquentona que merecia experimentação e em cuja bandeja ia snifando linhas de orégãos que enfeitavam pequenos triângulos de pizza regados a azeite. Aquilo prometia. De braço esticado, quase a alcançar a microssaia rodada da patinadora da sua vida percebeu pelas pernas cabeludas que seria um encontro hétero, pelo que, a primeira coisa que lhe perguntou, foi qual o tamanho do preservativo, para avaliar se teria consigo o kit necessário, ao que ele, sedutor e dominador lhe respondeu que não se apoquentasse com coisa alguma, as preocupações ficariam a seu cargo, ela que sossegasse a cabeça, pois ele se encarregaria de não deixar descendência em úteros incautos. O patinador era soberbo, com aquelas cãs sensuais que denunciam muitos segredos já desvendados e a possibilidade de, finalmente, estar com um homem conhecedor da geografia feminina, com eventual mestrado em anatomia. Um homem que trazia os seus próprios métodos contracetivos.

– Importas-te que a Ovelhinha nos faça companhia? Prometi-lhe o céu, pelo que mais uma estrela do imaginário infantil só vem a calhar.

Capuchinho Vermelho fez um curto sinal da cruz e, em silêncio e reverentemente, agradeceu à Virgem Maria que por ali passava aquela intervenção divina. Uma ovelhinha inexperiente e um veterano da estroinice… Só podia ser intervenção divina. Flutuou animada, no encalço dos rodados oleados daquele ser ‘martinado’, de bíceps torneados e coxas tatuadas. Pelo caminho sinuoso, contornando graciosamente uma multidão de gente, mantendo intactas as garrafas – todas menos uma, da qual bebericou até se esgotar (talvez de Aldeia Velha) –, Capuchinho Vermelho percebeu que se encaminhavam ara a zona privada daquele mega armazém do Chinês, onde se reunia toda aquela turma de gente estranha e cativante. Um reservado. Seguramente onde os empregados dormiam, pois todos sabemos que só existem chineses nas lojas de chineses. Nunca os vemos na rua, nunca os encontramos no banco, nem no hospital ou na fila do supermercado, pelo que é seguro dizer que eles apenas existem n interior das suas lojas e restaurantes. Ainda lá estariam? Não foi preciso perguntar, acabavam de chegar e a área estava vazia. Só o barulho da festa transpirava para dentro daquele quarto gigantesco, com uma incrivelmente grande cama central, com dossel e cortinas, e rodeada por inúmeras outras camas. Um antro de orgias! Eram os primeiros. Seriam os últimos?

 

Logo que o homem Martini abriu os voiles que ocultava, o mega-leito, lá estava a ovelhinha, insegura, nervosa e obediente. Compreendeu finalmente aquilo que tantas vezes ouvia na missa, onde era religiosamente assídua na infância, pois sempre podia surripiar algumas das verbas das esmolas que ajudava a coletar, para comprar BD adulta. Agora, sim, o cordeiro de Deus fazia sentido.

Não vale a pena entrar em detalhes escabroso. Não é o lugar nem o momento, até porque Capuchinho Vermelho prevê, para um destes anos, o lançamento de todas as memórias de que se recordar, pelo que não vamos ser spoilers. Podemos, todavia, afiançar que correu tudo muito bem. Todos cumpriram o seu papel, com desempenhos a aspirarem ao Óscar, houve criatividade, números artísticos, chiaroscuro ao estilo Caravaggio, sonoridades várias e até toalhas e toalhetes, pelo que foi tudo muito higiénico, ao contrário do que se vê, por aí, no cinema. A produção estava de parabéns. Como a dado momento entrou uma pin-up com um montão de pipocas, acabaram por ir ficando por ali, atuando em função do desejo e das capacidades de cada um. Morfeu também se juntou ao quarteto maravilha e foi quando tudo acalmou.

Entregue ao sono dos justos, Capuchinho Vermelho desbravou florestas profícuas em refrescantes nascentes, zonas que se pintavam de vermelho papoilante e outras de azul e amarelo. Havia mesmo cores secundárias, sendo o verde e o laranja as mais atraentes. Sonhou com plumas e aquele suave pelo de ovelha que ainda sentia sob os dedos e pelo qual estava totalmente apaixonada. Rodava os dedos por essa sensação deliciosa como se ainda tive entre os dedos os caracóis daquela terna ovelhinha.

– Toca a acordar, seus dorminhocos.

 

Era a voz de Lisa, organizadora da festança. Capuchinho Vermelho abriu os olhos e viu Lisa vestida de avozinha, uma Betty Boop ainda em bom estado e uma turma de asiáticos em grande azáfama, uma vez que a loja já estava a funcionar e havia ainda uma infinidade de lençóis para trocar, uma vez que, tudo indicava que todas as camas tinham passado a noite a aviar fregueses. De supetão, Capuchinho tentou sentar-se e, tendo a pele da ovelha ficado presa numa lasca das suas unhas de gel, o movimento brusco desvendou duas duras realidades.

Primeira – Tinha uma unha irremediavelmente partida e dolorosamente a rasgar-lhe a pele. Lembrou-se, feliz, do seu stock de álcool que vinha, em tudo a calhar. Não apenas desinfetaria a ferida, como permitiria que continuasse a beber, adiando a ressaca para uma hora mais oportuna.

Segunda – Ao puxar a pele de ovelha, Capuchinho percebeu, com enorme repugnância, que sob ela se escondia o Lobo Mau, aquele mesmo de quem tinha jurado ficar afastada. O asco estava pestes a desencadear-lhe o primeiro do que se adivinhava ser uma série de vómitos quando, num rasgo de racionalidade, inesperado àquela hora e naquele lugar, lhe ocorreu que há muito não se divertia tanto entre lençóis, nem, já agira, entre pernas. Martini Man já lá não estava, restando apenas a bandeja e os patins, um espólio a não desdenhar, pensou ainda, no rasto daquela breve clarividência que a acometia. Percebeu que por baixo de algumas peles de cordeiro se escondem soberbos seres lupinos. Este era, como testemunhava agora, enérgico e portentoso e estava agora a tentar comer a avozinha, quando esta lhe explicou que não era o pequeno-almoço.

– Perdão, Avozinha, a carência de proteína é tal que já nem me permite distinguir alimentos –, lamentou Lobo Mau, ainda a salivar.

Nisto, os olhos de Capuchinho cruzam-se com os de Lobo e há chineses que juram que saltaram faíscas que incendiaram os tais voiles do soberbo dossel. O fogo lá se apagou, uma semana e muitos amassos depois. Veio, então, o desejado Uber, a avozinha chegou a casa a salvo, lamentando a má pontaria do Caçador no qual tinha apostado todas as suas fichas, Martini Man já estava aos comandos do Boing 737 de longo curso do qual era o piloto destacado e Capuchinho e Lobo Mau, despromivido já a Lobo Assim-Assim, estavam a caminho da Missa, pois beto que é beto não prescinde da absolvição dominical na companhia de toda a família e investido de toda a tradição com eu gostam de se abanar nos dias mais quentes.

Capuchinho reabilitou a sua capacidade para recolher fundos cristãos e aproveitou para confessar o impensável:

– Ora, de perto ninguém e normal!

Moral da história:

Nunca mais vamos olhar a loja dos chineses da mesma forma e damos graças por não ser um restaurante. Ou era? Um outro reparo: ninguém viveu feliz para sempre, apenas partilharam o Uber por ambos serem fervorosos defensores do ambiente e é sabido que um carro polui menos do que dois, desde que estejamos a falar de carros em andamento e não parados. Entre carros parados e veículos em andamento, as contas já seriam diferentes.

 

By Paolo Di Paolo

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