A adicção, contrariamente à subtração, é a capacidade de escalar infinitamente uma dosagem, encurtando o tempo entre tomas. Longe dos cálculos aritméticos e da alçada da matemática, a adição não é benevolente, nem generosa. Na verdade, tira mais do que acrescenta. É apenas dependência, compulsão, ansiedade. Esta soma é desespero, assemelhando-se mais às contas de menos, por conta da sua capacidade de retirar anos e felicidade à existência. De sacar muito mais do que aquilo que apenas aparentemente dá. A adicção é esbanjadora e aí, talvez aí e apenas aí, haja uma associação entre esta e as contas de mais.
Leão jamais o admitiria. Era demasiado orgulhoso e por demais zeloso da sua imagem pública para tropeçar no escorregadio degrau da sinceridade, menos ainda expondo-a por aí, ou aqui que fosse. Tinha pavor à honestidade, sempre demasiado singela e pura. Por mais que as levasse para o provador, nunca lhe assentavam bem. Ou não tinham a cor desejada, ou o padrão de que mais gostava, ou não havia do seu tamanho… Era escusado. Acabava sempre por sair com outras peças mais adequadas ao seu porte e muito mais consentâneas com todo o restante guarda-roupa, o qual tanto estimava e onde soberba, orgulho e arrogância coloriam vestuário para todas as estações. Honestidade e sinceridade são peças básicas, na verdade, que nada trazem de novo à perspetiva dos vencedores, dos ambiciosos, dos líderes, nem entusiasmam audiências. Ele exigia sofisticação.
Todavia, a verdade, ainda que a negasse à primeira oportunidade, era estrondosamente óbvia: Leão estava de ressaca. Tão simples quanto isso. Ressacava dolorosamente. Sentia nas veias a ausência da maledicência e nos músculos a abstinência do frenético dedilhar de impropérios e malvadezas. Faltava-lhe o ânimo. Sentia a mesma inquietação no peito de quando ficava sem rede a meio de um comentário odioso, daqueles que lhe escorriam que nem manteiga em scones quentes. Era a vida que se esvaía, pelos mesmos canais por onde se escoava quando a bateria batia no zero de carga e nem um cabo à vista. Era… Era fome. Leão reconsiderou e pensou que aquilo que tinha era fome. Estava a ressacar. Necessitava, como pão para as migas, de dizer mal, de odiar gratuitamente e de ofender alguém. Não importava quem. Destilar veneno estava para si como respirar para o resto da população viva, que a morta prescinde alegremente desse esforço constante.
Leão remexeu nos bolsos do casaco, das calças. Voltou a procurar. Mãos espalmadas sobre cada um dos lados do peito, não fora ter colocado o telefone em algum lugar menos usual. O tato não lhe devolveu a tranquilidade do retângulo rijo numa qualquer parte do corpo, nem a satisfação do seu toque amigo. Tirou a mochila das costas, já em claro sofrimento, acrescido agora de pânico. Onde teria o telemóvel? Quando o tinha utilizado pela última vez? Falara com alguém hoje? Consultara, seguramente, as suas redes, todas elas, sociais e antissociais. Essa era uma garantia que não necessitava de recurso à memória, de tão banal e automática. Era o primeiro gesto matinal. Alcançar o telemóvel, depositado sempre no chão, para melhor lhe chegar sem recurso aos óculos, que eram os segundos na lista das buscas matutinas. Depois disso… Não se recordava.
Tinha uma bolsa no vidro do chuveiro, que lhe possibilitava, sem grande esforço, continuar a olhar o que se passava na claustrofobia do virtual sem comprometer a lavagem corporal. Um invento engenhoso e à prova de água, nem por isso barato, mas sem o qual não viveria. Tê-lo-ia, portanto, deixado aí? Não. Desceu com ele no elevador. Recordava-se de ter avacalhado uma conversa sobre direitos humanos e coisas de pobrezinhos. Só os fracos defendem os fracos, na medida em que sabem perfeitamente que, fazendo-o, se estão a defender a si próprios, passando ainda a imagem de gente do bem, benevolente e amiga do próximo. Do próximo! Do próximo trolha, isso sim. Os fortes estão demasiado ocupados a defender o seu território e a fazer novas marcações com urina, dinheiro e outras excrescências pelo terreno, o seu e o dos outros, com o propósito não apenas da manutenção da sua área como do alargamento da mesma. Tudo muito bem aspergido com claros e inequívocos sinais de posse e de ‘no trespassing – violators will be shot, survivers will be shot again’.
Como odiava condescendências. Já tinha a mochila quase toda despejada sobre a mesa do café e nada de encontrar o telefone. Se ao menos alguém lhe pudesse telefonar. Olhou em redor, só para tirar as teimas, e confirmou o óbvio: não conhecia vivalma ali. Podia solicitar o favor a alguém. Bastavam uns quantos toques, para confirmar se o telefone estava por perto. Estaria sem carga? Já irritado, e com dolorosos sinais de abstinência – mãos trémulas, suores frios, irritabilidade palpável, tique no olho esquerdo… –, agarrou no tablet, seu inestimável plano B. Supriria por ali a sua primeira dose de sadismo e logo voltaria ao assunto telemóvel. Tinha de ser rápido pois começava a perder a compostura. Uma coisa é ser agarrado, outra é deixar de ser funcional e isso, sim, incomodava-o. Um alfa não pode vacilar nem deixar passar a mais ínfima réstia de fraqueza. Os inimigos, e mais ainda os amigos, por estarem mais perto, sentem o inconfundível cheiro da vacilação, da dúvida, do receio e do medo. Titubear é já morrer. Tardar a agir é abrir a porta a invasores, também eles cheios de urina para espalhar por território disponível. Tinha de ser rápido. Não perder um instante. Tinha urgentemente de dizer mal, de rebaixar numa qualquer rede social uns quantos vermes para aliviar aquela tensão crescente. Sem tempo a perder, já tinha decidido voltar a atacar a primeira vítima do dia, a tal coisa dos direitos e liberdades de um qualquer papalvo apanhado nas tramas de um enredo policial, que pedia agora ajuda à populaça, a influencers e ao raio que o parta. Havia até um crowdfunding em curso, para lhe pagar um bom advogado, que o pobre homem necessitava de pagar uma caução. Depois, com mais calma e foco, logo procuraria algo mais apetitoso, com que apaziguar a fome de matança virtual.
Despejado o saco de impropérios e ódio xenófobo por aquele indivíduo anónimo, numa página pomposamente designada de ‘Ajude-nos a Ajudar’ – segundo Leão, apenas um esquema para sacar dinheiro a totós –, já se sentia com alguma energia para prosseguir. Mais um pouco de enxofre libertado e já teria forças e ânimo para sorrir. Percorre mais alguns posts e vai distribuindo azedume, aqui e ali. Umas vezes assumindo a sua identidade, outras recorrendo a perfis que tinha para o efeito, e a que o seu cargo de CEO obrigava, para que não achassem que era um narcisista psicopata e não lhe retirassem o prémio no final do ano, nem aquele belo quinhão dos lucros da empresa. Hipocrisias, pensava. Porque não podia um homem exprimir-se aberta e livremente, quando é precisamente isso que pedem a toda a hora a toda a gente?
Sejam frontais!
Digam o que pensam!
Corram atrás do sonho!
Não receiem revelar o eu mais profundo!
Usem de verdade…
Balelas. Ser frontal e direto era exatamente aquilo que fazia nas redes sociais e era vê-los, aos fracos e pobrezinhos, a rezingar e escoicear por todo o lado, muito melindrados com pareceres contrários aos seus. Como Leão gostava de irritar essa cambada. Dava-lhe ânimo e regozijo. Nem toda a gente tem sensibilidade para saber fazer tinir as cordas certas. Para tocar no ponto-chave, naquele que verdadeiramente corrói por dentro. Mas Leão sabia exatamente como atacar e vilipendiar, e que bem que isso lhe sabia. Sentia já as cores a voltarem-lhe ao rosto e reposta a devida temperatura corporal. Era a remissão. Era a ressaca a recuar para aquele lugar de onde jamais deveria sair.
Cheio de fôlego, não abrandou ainda. Precisava de garantir alimento para as próximas horas de trabalho, nas quais mais dificilmente – mas não totalmente – poderia alimentar o vício. Nem de propósito. Encontrou um relambório, com mais de mil comentários, e ainda a somar, em que ora se atacava, ora se defendia a liberdade de uma doidivanas qualquer se mostrar em trajes menores, mas que não admitia ser criticada por se expor como muito bem entendia. Afinal, não era bem isso. As fotos tinham sido publicadas por um ex-amante em modo revenge porn, e ela garantia que não cederia a chantagens nem se vergaria a vinganças miseráveis. Que ele estava tão nu quanto ela, além de que tinha bem mais a perder do que ela se a sua identidade fosse conhecida… (Já se faziam apostas tentando adivinhar quem era quem.) Que só a criticavam por ser mulher, que o corpo era seu, que as críticas se deviam ao bafiento patriarcado… Era o que mais faltava. A liberdade tem sempre dois sentidos. Quem se expõe tem de admitir o escrutínio e aceitar arrasos de índole vária. Ela que não se exibisse em público e guardasse as fotos numa cloud encriptada a sete chaves ou num lindo álbum de família offline, impresso em casa.
By Jason Peterson
Uma vez na rede, todos somos tubarões. O melhor de tudo é que por lá andava Honório Cavalo, um arqui-inimigo destas andanças. Eram a frente e o verso das histórias mais picantes ou, como por aí se repete até à náusea, daquelas que mais incendiavam as redes sociais. Dois miúdos grandes ao despique. Leão sempre ao ataque, numa posição que mais do que revelar uma linha de pensamento, se assumia apenas como contrária à tendência geral dos comentários. Porque a Leão interessava o antagonismo, o sofrimento alheio, a ostensiva indiferença por sentimentos que não os seus, o desprezo puro, além de que obedecia ao vício compulsivo de odiar estranhos no conforto do seu poiso, naquela vasta savana virtual onde era o rei dos predadores. Cavalo, adoravelmente, era uma voz de consensos, uma voz compreensiva, apaziguadora, sem julgamentos. Era abnegado, uma espécie de Robin Hood dos desgraçadinhos apanhados em falso nas malhas do universo online. Mais do que defender opiniões, defendia os visados dos ‘menos escrupulosos’. Era como um vigilante, sempre ao lado das minorias, dos desfavorecidos ou daqueles que minguavam a cada reparo desagradável, sem se conseguirem defender nem força para fugir ou reerguer-se. Teria conhecimentos ao nível de um hacker, para assegurar a defesa de tanta gente? Seria uma equipa de bons samaritanos das redes? Seriam velhotes reformados na sua luta diária contra o enfado? A lógica diria que não, mas não se deveriam descartar quaisquer hipóteses.
De qualquer forma, ainda que assim não fosse, Leão e Cavalo eram tão assíduos nestas lides que Leão não tinha a menor dúvida de que Cavalo seria um alias virtual, um perfil falso que se insurgia a favor dos oprimidos, ou qualquer outro título démodé. Suspeitava mesmo que se procuravam para esgrimir argumentos e azedume, por vezes mais um contra o outro do que contra os visados dos posts onde se entretinham a dedilhar. Enquanto Leão debitava metáforas bovinas sobre a mulher das fotos – “o gado vacum gosta de se pavonear na montra do talho, para fazer salivar o transeunte incauto, mas depois acusa o golpe do talhante” e outros mimos tão ou mais estúpidos e mentecaptos –, lá estava Cavalo a atirar para o tempo das cavernas homens e mulheres que ofendiam a jeitosa – “quem deixa a baba na montra nunca tem dentes para o bife” – e a esfregar-lhes na cara misoginias e coisas afins. Era chegada a hora, deliciou-se Leão, de redirecionar as armas para Cavalo, até porque este começava a baixar um pouco o nível, denunciando irritabilidade e aproximando-se do ponto em que Leão se sentia mais compelido a atacar.
“Caro Cavalo, não se abespinhe tanto, penso que já defendeu o suficiente para conseguir o telefone da garota. Vá lá, não perca tempo comigo e mande-lhe uma mp. Eu cá ficarei à espera, enquanto chafurda no esterco com a fulana. Mas acautele-se, uma mulher que mostra tudo menos a cara é porque é barata ahahaha. Não fique preso na argola do nariz”
Leão aguardou o embate. Porém, nada. Um chorrilho de prós e contras acerca dos extremados pareceres sobre castração, igualdade de género, sedução e mais não sei o quê, mas nada de Cavalo. Olha, fechou-se em copas, pensou Leão.
“Recolheu ao estábulo, foi?”
Nada. Nem público, nem privado. Silêncio.
Leão deu-se por satisfeito. Arrumou o tablet na mochila e preparava-se para pagar a conta e seguir para o trabalho quando, felicidade das felicidades, dá de caras com o telemóvel. Tinha-o deixado dentro do livro que andava a ler, à laia de marcador de página, e nunca mais se tinha lembrado disso. O dia, que tinha começado miseravelmente, recompunha-se a olhos vistos. Ao chegar à empresa, notou um clima taciturno, meio sinistro até. As pessoas evitavam olhá-lo de frente e fugiam à sua passagem para não terem de o enfrentar. O poder tem destas coisas, intimida. Isso agradava-lhe mais do que tudo o resto. Detetou, porém, instintivamente que havia ali algo mais. Não precisou de averiguar. Não necessitou de fazer perguntas. Logo que passou pelo primeiro monitor teve a sensação de que alguma coisa não estava bem e que tinha a ver com aquele screen saver. Na verdade, com todos os screen savers de todos os computadores daquela empresa com mais de 500 funcionários. Um hacker tinha bloqueado todas as contas e uma mesma imagem ocupava todos os ecrãs, os quais nem sequer se conseguiam desligar, tal era o feitiço cibernauta.
Mais tarde, Leão saberia que a mesma imagem ocupava os monitores de todos os computadores de todas as empresas, pessoas, serviços, lojas, hipermercados, minimercados… com que alguma vez se tinha cruzado na vida. Um poder daqueles era de se admirar, mas Leão não tinha distanciamento para avaliar a situação dessa perspetiva. A imagem nos computadores de todo o seu mundo mostrava Leão na sua cama, na sua própria casa, num momento de embaraçosa vulnerabilidade sexual com uma mulher, que colocava em causa a sua masculinidade. Não eram precisas legendas. Num outro quadrado mais pequeno, a foto de uma mulher ao colo de um homem. Percebeu que era a versão integral da foto que tinha passado a manhã a comentar. Agora com o rosto da mulher. Aproximou-se mais, atónito. Sim, era a sua mulher. Nesse instante, os computadores começaram a emitir um som inequívoco: um prolongado relinchar.
Moral da história
Os hackers são, hoje, as entidades mais boazinhas do universo virtual, porque nada se compara a um hater profissional.
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