De frente para o espelho, Raquel, uma dócil serva dos seus tempos e da sua geração, apreciava o seu corpo tonificado. Agradava-lhe em particular o recorte robusto, mas não em excesso, das pernas. Bem torneadas, ligeiramente musculadas e muito femininas, com os três arcos necessários a umas pernas bonitas, segundo os critérios de avaliação familiares, repetidos a todas as netas pela avó Marcela. Um arco formado na zona dos tornozelos, o segundo imediatamente abaixo dos joelhos e o terceiro entre as coxas, um pouco antes da parte mais larga das pernas. Tudo lá. Tudo no sítio. Os arcos, os músculos, a força e a delicadeza. Tudo embrulhado em exemplares altos e elegantes. A bem da verdade, agora escrutinava o assunto, o terceiro arco, o das coxas, parecia mais sumido do que da última vez que reparara. Havia algum trabalho de ginásio a ser feito naquela zona. Isso incomodou-a ligeiramente, o mais certo era estar a abusar dos músculos.
Passou de imediato para o seu maior orgulho. O rabo. Sim, o rabo ou, para os mais púdicos, os glúteos. Demasiado gigante, segundo as invejosas, mas era, não duvidava, a parte mais sexy do seu corpo. Associado a uma cintura de vespa, o seu rabo era bem pronunciado e saliente, de uma forma expressiva e incontornável, mesmo para quem não é de reparar nessas coisas. As Kardashians que se cuidassem, já que a Ana Malhoa tinha sido há muito por si destronada, pois que o seu Instagram somava seguidores como contas num infinito rosário de fãs. Algo estava a fazer bem, ela e o seu personal trainer, caso contrário não seria uma quase celebridade no universo virtual, o único que de facto interessa, a bem da verdade, mais ainda com as pandemias e as quarentenas e os vírus e tudo o mais. Tudo se passa online. O off line é agora o fim da linha, ou dead line, como gostava de frisar. Frisava isso e o cabelo também, por vezes, para sublinhar o frizz que já lá estava, no cabelo, pois claro. Já ninguém quer fazer ‘presenças’ – não há dinheiro capaz de minimizar riscos e estes, os riscos, já ninguém os arrisca – nem contactar diretamente com quem quer que seja, nem ir nem voltar de onde quer que seja. Estamos na era do TeleTudo: teletrabalho, teleconferência, videochamada, chats, encontros e reuniões via skype, Zoom e afins, consultas em salas virtuais, sexo à distância, em verdadeiros orgasmómetros cibernéticos, escritórios trasladados para a cloud… O mundo tal como o conhecêramos tinha desaparecido e outro mundo se preparava para entrar em cena. Enquanto isso, enquanto esse TeleMundo não se instalava definitiva e confortavelmente, ensaiavam-se possibilidades, ultimavam-se suposições e ajeitavam-se os corações, que isto exige adaptação, mesmo que não haja aceitação imediata.
É assim. É a vida. É o que é. Bola para a frente, ou para trás, que o râguebi também deveria ter uma palavra a dizer, mas eles não jogam com uma bola, é certo, que aquilo é mais um melão estranho, e tanto o futebol como o râguebi ou, para o efeito, qualquer outro desporto de equipa ou nem por isso, está suspenso até cura em contrário. O que não se consegue fazer à distância tem de ser feito por nós mesmos e esse era um universo de descoberta que tinha tanto de estimulante e aventura como de enfado e irritação. Raquel tinha aprendido que podia e tinha mesmo de arranjar as unhas, quer dizer arranjar as suas próprias unhas, tal como pintar o seu próprio cabelo e esticá-lo, se quisesse fazer maré rasa do seu ondulado, e cozinhar aquilo que comia, sempre que o catering não permitia entregas a horas, e fazer as bainhas da roupa que chegava agora pelo correio, como quase tudo o resto… Um mundo estranho. Tão estranho que mais fácil seria aumentar o rabo através de aplicações e defini-lo com recurso a filtros e outros malabarismos informáticos, que o que não falta neste novo TeleMundo são ferramentas para enganar os olhos e todos os outros sentidos, incluindo o da vida. Mas quanto a isso, o pensamento de Raquel mantinha-se fiel ao analógico. Nada como ‘the real thing’, defendia. Ainda havia encontros pessoais, do tipo old school, de que hipsters e saudosistas eram ainda adeptos e onde se incluíam discos em vinil, livros em papel e comida ‘caseira’ por oposição à que é feita na rua. Até o seu ginásio era agora uma realidade em streaming. Ainda assim, Raquel queria ver e palpar um rabo a sério, grande, desproporcionado e muito na moda, enquanto a moda não envelhece e outra lhe tome o lugar, e que lugar tinha para ocupar. O novo trend que se esmerasse em novidades, pois naquele corpo havia espaço de sobra para grandes mudanças. Tinha-se moldado para ser uma atraente gazela para os motores de busca e tudo no seu corpo correspondia a critérios de SEO e obedecia às mais recentes exigências do marketing digital. Tudo era de ponta, ainda que geometricamente redondo e volumoso.
Curiosamente, o seu peito não era um dos seus melhores atributos. Nem no que respeita ao tamanho, nem em termos de feitio, forma ou modelo. Uma copa insignificante, um formato banal… Enfim, sem comparação possível com o seu rabo. Talvez devesse tornar tudo mais proporcional, mais harmonioso em termos de volumetria e tamanho, mas, esteticamente a ideia desagradava-lhe, além de que entendia ser um elan extra o facto de ter apenas um elemento chamariz, um único punctum em destaque, em evidente realce. Receava ainda problemas de coluna, pois que seios para fazerem frente ao seu rabo, por assim dizer, salvo seja, implicariam muitos litros de artificialidade. Sim, para já, até ver o que para aí vinha, fixaria a atenção e o foco centrados no rabo, mantendo as pestanas postiças, já que as unhas eram agora um assunto do âmbito doméstico. Felizmente, as luvas estavam absolutamente in, bem como as máscaras, o que permitia intervalos mais espaçados nas doses de botox e afins.
Havia muitos aspetos positivos neste TeleMundo, alguns deles muito acarinhados por Raquel. Tinha miraculosamente extinguido o hálito do chefe, as mãos atrevidas do diretor-geral, as intrigas irritantes da Marianinha, cusca de serviço e espia da direção em part-time, as invejas das colegas de rabo pequeno ou mesmo inexistente, o cheiro a suor no ginásio, as horas infindas no trânsito, a poluição tinha drasticamente diminuído, no ar e na água, todos pareciam agora mais civilizados e saudosos uns dos outros, a mãe já não lhe cobrava visitas, as quais tinham sido substituídas por um banco de minutos de conversação semanal… A lista era tão grande que Raquel abandonou a sua relação de prós e contras logo no início da primeira quarentena, sem sequer ter chegado aos contras. Assim que percebeu a quantidade de benefícios, relativizou logo as contrariedades e largou aquela folha de Excel. Era tempo perdido e de exercício físico desperdiçado.
Nisto, Raquel lembrou-se de que estava na hora do seu terceiro post diário no Instagram. Ensaiava já uma pose sensual, que outras não existem, claro está, quando se lembrou de que tinha feito um belo arquivo delas no fim de semana passado, em longas e exaustivas sessões de troca de roupa e de maquilhagem. Um stock precioso para dias de menor inspiração. Verificaria primeiro se alguma dessas não serviria para hoje, antes de nova sessão de selfies. Da cozinha chegava-lhe o cheiro de um delicioso bolo – assim esperava, já que era a primeira vez que punha em prática aquela receita. O cheiro nem por isso era muito agradável, mas Raquel confiava piamente na influencer que tinha publicado a receita e no seu robot de cozinha, a quem entregara tudo com recomendações e tudo. Talvez fosse o cheiro normal. Talvez não. Era um bocado tóxico e enjoativo. O pior é que vinha acompanhado de demasiado fumo. Fumo?! Correu para a cozinha. Caramba, algo tinha corrido mal. Curiosamente, nada se passava na cozinha, onde a Bimby ainda cantarolava enquanto ultimava o preparado. Vinha por baixo da porta da rua. Pensou rapidamente em tudo aquilo de que necessitaria para sair de casa. Chave de casa, telemóvel, computador e um casaco. Mas qual? Um qualquer, desde que fosse bem com os ténis, que aquela não era hora de passar modelitos.
Tudo verificado, ligou para o 112 e saiu a correr de casa, com Jerónimo, o gato, acondicionado na transportadora. Na escada, já reinava a maior confusão. Não se podiam utilizar as escadas, completamente inundadas de um fumo negro que impedia a respiração e que vinha dos andares de baixo, ou seja, que galgava os andares com voracidade. Entre o pânico de entrarem no elevador, interdito nestas circunstâncias, como recomendam e determinam as normas de segurança, e a real impossibilidade de descerem as escadas, Raquel e os vizinhos não hesitaram em irromper pelos elevadores como quem se lança numa jangada em hora de naufrágio em alto mar. Imagens como as das torres gémeas a ruírem e do Titanic a ir ao fundo inundaram a mente de Raquel. Por falar em Titanic, Raquel não compreendia como é que o rapaz da história não se tinha salvado. Aquele pedaço de madeira não dava para dois? Depois, recordou-se do seu rabo e percebeu que há saídas de emergência que só contemplam um indivíduo e, pela primeira vez em anos, fez as pazes com o desfecho do filme.
Com os elevadores cheios e em que cada viagem de sobe e desce representava riscos acrescidos para todos os inquilinos que iam ficando retidos por excesso de lotação, a loucura começava a reinar em todos os patamares. Um vizinho, que não obstante o pânico, se babava ininterruptamente enquanto olhava para as mamas de Raquel, oferecia-lhe ajuda. A Raquel apetecia-lhe recusar, pois parecia mais um bote furado do que um salva-vidas para onde lhe apetecia saltar. Compreendia, no entanto, que a clausura e a falta de contactos analógicos, cara a cara, colocava os humanos na situação da caverna de Platão e que eram enormes a surpresa e a maravilha quando se encontravam longe das sombras virtuais e apreciavam pela primeira vez a realidade em 3D, em todo o seu esplendor e com as suas cores reais. Pobrezinhos dos infoincluídos, onde também ela se situava. A mão do homem era forte e firme e o rugido da sua voz comandava ordens práticas. Quem sabe, um dos últimos portos seguros naquele patamar de fim de mundo. O homem avançou como uma locomotiva para dentro do primeiro elevador que se atreveu a abrir portas naquele piso. O homem acelerou intrépido até ao cubículo, que nem um leão incomodado com a qualidade da rede em dia de final da Champions ou de uma atuação live da banda do momento. Numa mão levava a caixa onde seguia o aterrorizado Jerónimo – também ele pela primeira vez em anos no exterior do apartamento – na outra a mão de Raquel. Raquel voou com o impulso do homem-baba (sim, já lhe chamava assim, que tal como o seu rabo, também a sua mente era arejada e ampla). Numa labiríntica rede de camaras e antecâmaras e um sem-fim de compartimentos para inúmeras atividades em simultâneo, a mente de Raquel ia absorvendo o maior número de informação possível, tal como os seus pulmões de fumo irrespirável.
O homem puxou-a de encontro a si. Entre os dois, nem um vírus caberia. Acontece que a porta não fechava. Ninguém entendia. Muitos temiam que o elevador já estivesse avariado. Ouviam-se gritos. Tosse. Pior. Uma das teorias dava como certo que os cabos do elevador estariam já queimados, que já não conseguiriam sair dali. Aflitos, alguns indivíduos, espécimes bem interessantes, pensava Raquel num dos alvéolos do seu cérebro, entoavam canções que nunca tinha ouvido, como “This is the End of the World as We Know it” ou “This is the Day Your Life Will Surely Change’. Muito adequados os temas, claro, mas, em termos sociológicos, e isso daria um post inteligente, logo que o conseguisse fazer, Raquel entendia que se deveria à falta de convívio entre humanos e a uma ténue, inexistente mesmo, competência social para lidar com o contacto direto, olhos nos olhos, pelo que reagiam como se estivessem sozinhos, recorrendo a universos afetivos capazes de um aporte de conforto numa situação obviamente limite. Alguns dos ocupantes do elevador optaram por sair, entendendo que era preferível aguardar os bombeiros ou mesmo arriscar a escada do que manterem-se parados dentro de um elevador onde as temperaturas já eram assustadoramente alarmantes. Raquel apenas não entendia porque é que as portas não fechavam, já que o mecanismo bem o tentava ininterruptamente como se também ele entendesse a urgência do momento. E estava a funcionar perfeitamente, pois que Raquel bem sentia a pressão, o aperto constante das portas a pressionarem as suas nádegas… As suas nádegas. Percebeu que o seu rabo não cabia nas portas, que mesmo colando o peito pequeno na parede fronteiriça à porta, jamais conseguiria enfiar a sua obra-prima no interior daquele exíguo espaço. Tentou perceber há quanto tempo não saía de casa, pois a última vez, se bem se recordava, tinha utilizado o elevador, ou não? Provavelmente não, já que subir e descer escadas não é mau de todo para os glúteos e eles eram a menina dos olhos de todos os seus esforços há já mais de… quê? Uma década? Não importava agora. Não era altura para complexos cálculos matemáticos e viagens ao passado, ou melhor, para tbt.
O que fazer, então? Sair e morrer intoxicada naquele piso? Arriscar o fogo descendo pelas escadas? Achou que o melhor seria voltar para casa, gato e homem-baba, agora ambos sob a sua proteção, ou feitiço, para o efeito ia dar ao mesmo, e ir para a janela fazer umas stories e aguardar auxílio de fãs e meros seguidores, ou mesmo de haters, que não era momento de sensibilidades. Foi de tal forma bem-sucedido o seu plano, que nenhum dos três, homem-baba, incluído jamais saíram de casa. O seu piso não foi beliscado pelas chamas, o fumo acabou por não passar pela porta blindada e bem calafetada, que uma mulher em casa aprende a fazer um pouco de tudo, e de tudo um pouco. O salvamento aconteceu, o seu rabo ficou seguro e tornou-se no meritório protagonista dos internautas e até dos telejornais, cada vez mais um eco do que se passa nas redes sociai. Os seus seguidores dispararam, bem como o número de rabos gigantes. Afinal, tinha sido ele a salvar Raquel e o seu amor analógico, e Jerónimo, claro. É que se tem entrado tudo no elevador, nádegas incluídas, estariam todos telemortos, que o elevador também não aguentava o peso do rabo de Raquel. Ah, pois. Os filtros podem ser manipulados e tudo volta ao sítio de onde nunca saiu no mundo real, mas os quilos demoram a perder-se e Raquel, que se considerava uma campeã, só gostava de ganhar. No final, todos concordarão, foi o seu rabo que domou a aflitiva situação.
Moral da história:
Só sobrevivem aqueles que melhor se adaptarem. Está na hora de nos ‘ajeitarmos’ neste novo tempo, neste curioso espaço, o melhor que conseguirmos.
o quanto eu amo ler os teus escritos, não está nem escrito rs // é sempre um feliz e-mail quando é a notificação de um texto seu, no qual viajo para longe e às vezes, assisto a realidade de camarote contada de um jeito que vale a pena ser ouvida (lida) !
Franciele, muito obrigada pelo seu comentário. Não imagina como é incentivador. Principalmente quando achamos que escrevemos apenas para nós. Que bom saber que está por aí e que aquilo que escrevo chega até si. Também o meu dia melhorou com as suas palavras.