Era Outono. Era de dia. À tarde. Foi, portanto, numa tarde de outono, ainda na presença de luz diurna. A hora exata escapa-lhe. Não memorizou esse dado. Não acha sequer que o tenha esquecido. Parece-lhe mesmo que não chegou a anotá-lo, mentalmente ou de qualquer outro modo. Ficou tão aflita e atordoada que só teve atenção para o fenómeno. Para o trágico acontecimento. Lamenta essa falha. Quem sabe não seria importante?! Quem sabe…

Reconhecia de cor o som de cada sítio que tinha visitado. Lisboa soava ao arrolhar de pombos e a elétricos, a gaivotas e a mar. Praga soava a sinos de igreja. O Alentejo soava a calor, a Suíça a chocalhos de vaca e chocolate quente quando desliza pela garganta… Tudo lhe soava a algo específico e bem particular. Algo que estava habituada a registar, mesmo quando não se deslocava com o equipamento técnico, mesmo quando não buscava sons, mesmo quando nada de nada… Quando temos o ouvido tão treinado e obediente à captação de sons para bandas sonoras, fundos e efeitos auditivos toda a perceção do mundo chega pelos ouvidos. Tudo é som. Qualquer som é informação. Toda a informação é audível. A vida de Izzy era feita de ruídos, barulhos, murmúrios, frequências, equalizações, engenharias de som, efeitos audíveis, vozes. O seu corpo era uma orelha gigante, disforme e exímia.

O primeiro momento foi de pânico. Perdia faculdades auditivas. Isso era tão grave para si como o palato para um chef, a intuição para uma mãe, a visão para um pintor… Um mundo de algodão, abafado de ruídos, isento de sons. Sem música, gritos, entoações que escondem significados, sem ironias ou palavras homófonas, sem palavras na verdade, apenas as que cabem na ponta de uma caneta ou cursor. Sem falas ou mal-entendidos. Sem meias-palavras ou silêncios constrangedores. Nada de diálogos ou gritarias. Apenas bocas abertas e ouvidos vazios. Ouvidos às escuras. Mortos para as vibrações, as entoações, as modelações, as notas. Uma vida vazia de sinos de igreja, de gargalhadas, cascatas pela metade, relógios sem tic-tac… Uma vida sem despertadores ou poluição sonora, sem pregões, choros ou risos e até sem mudanças de vozes, sem ritmo ou falta dele. Pior de tudo: uma vida sem batimentos de coração ou palpitações. Sem confissões e palavras de amor. Sem sussurros. Cidades sem pautas musicais. Sem gargalhadas. Sem surpresas nem dramas. Sem profundidade. Apenas superfícies sem ricochete. Sem feedback. Sem feed. Silêncio.

A sua vida desfazia-se nesse pensamento. Com ele, a sua paixão: dar vida sonora a filmes e por arrasto, a toda a sua vida. Morreria para sempre para si o ‘ouvi dizer’, e mesmo ‘escuta’ ou ‘ouve lá’ enferrujariam nos arrumos da sua expressão oral. Ainda que os pudesse proferir, jamais fariam sentido para si. Tudo passaria a ser: ‘Olha’ e ‘Olha lá’. Tudo passaria a ser SILÊNCIO! Os pratos partir-se-iam discretamente, o trânsito infernal chegaria com pezinhos de lã. As tempestades não mais se fariam anunciar pelo som longínquo dos trovões e passariam a ser apenas inesperados relâmpagos. O som deixara de correr. Já não ultrapassaria a velocidade da luz. Adeus Mach 1, 2 e todas as outras.

Sentiu lágrimas a gritarem por sair. Disparate. Naquela tarde de outono, as suas lágrimas estavam proibidas de gritar. Cairiam sem esforço, nem exaltações ruidosas. Apenas água salgada, rumo ao desespero e ao silêncio. Já não havia gritos no seu mundo. Elas pediam apenas, em silêncio, brotando sem incomodar e caindo límpidas e assustadas em superfícies absorventes, que se acolchoava agora de silêncio puro.

Como o silêncio pode ser ruidoso, barulhento e incomodativo. Insuportável! Aflitivo e angustiante. A inimaginável nota final numa carreira internacional de sonoplastia, engenharia de som, acuidade auditiva, genialidade acústica. Uma vida a dar vida a filmes. A ouvir pelos outros. A fazê-lo por antecipação. Som após som. Ruído atrás de ruído. A trazer suspense aos thrillers, romance aos amantes, a nivelar o terror, a dar grau e intensidade ao humor, a mediar sensações e a suscitar emoções.

Haveria tempo sem som? Quer dizer, não se dando conta do tic-tac, passaria o tempo na mesma? Numa visão holística e agregadora, dependendo tudo de tudo, de que forma a falta de som interferiria no passar do tempo? Seria um acelerador ou um retardador?  E a relação espacial? O que seria agora feito dela? Experimentariamos os espaços de forma diferente, agora que não tinhamos sons a chicotear o ar e os obstáculos? Necessitariamos de mais ou menos espaço? O que seria…

Apressou-se a cheirar. Dando-se o caso de ser uma questão física, poderia estar a ter um apagão no cérebro, que lhe tolhesse vários outros sentidos e sensações. Pegou na caneca de chá escaldante e queimou-se. Gritou. Estremeceu. Ouviu o seu grito. Teria mesmo, ou tê-lo-ia apenas percebido por ter nascido na sua mente? Por ter sido parido pela sua garganta? Ouviria apenas para dentro? Por dentro? Gritou de novo, tentando escutar por fora. Não era um som. Era apenas dor. Se realmente emitiu algum ruído – seguramente que sim – não o ouviu, apenas pressentiu, apenas o intuiu por anos de experiência a associar a correlacionar aquilo que a sua garganta emitia com aquilo que o ouvido daí aguardava, sem surpresas quando a audição funciona. Entrou em pânico. Gritou novamente, ignorando o espanto e os olhares interrogadores – mais do que isso, assustados – dos estranhos que a rodeavam. Uma lágrima desbravava, louca e célere, o relevo da sua face revolvida pelo medo. Ouvia. Tinha ouvido, sem margem para dúvidas, o seu grito. Não era uma perceção interna. Não era uma mera impressão. Era um som. Uma emanação sonora, enviada pela sua garganta e recebida pelo seu ouvido. Emissor e recetor em sintonia. Na dúvida, falou alto. Ouviu-se. O bater do coração não abrandou, mas as pulsações aceleradas resultavam agora, não do pânico, mas da felicidade. Ouvia?!

Tentou um nível superior de concentração e acalmia interiores. Respirou fundo. Tentou exalar receios num sopro de ar que previa expulsar o que quer que fosse que a estava a perturbar. Estava a ressacar de ruídos. Necessitava deles. Olhou em redor. A cidade parecia igual o de sempre. Tinha gente, trânsito, movimento. Aviões cruzavam os céus. Das bocas de metro saía gente apressada e gente sem pressa. Nas esplanadas a louça era depositava nas mesas, nos balções. Máquinas de expresso, incansáveis no seu afã, filtravam água sobre o café moído com estrondo previamente. Tudo parecia igual ao de sempre. Nada de distopias catastróficas do género Vanilla Sky. Não devia ter-se recordado do filme. A sua distopia era igualmente interior. Tinha a ver com a sua paisagem interna. Tudo parecia normal, apenas tudo era uma anormalidade. Via a vida a acontecer como normalmente, como todos os dias, mas hoje… Hoje não ouvia nada disso. Não havia passos, buzinas, pássaros, folhas esmagadas sob os passos. Aliás, havia, mas num mundo alcatifado, que virava a sua cabeça do avesso. Não tinha percebido, mas sabia, sem o saber ainda, que se dirigia ao hospital. Que pedia socorro a si mesma, sem coragem ainda para revelar o que se passava a quem quer que seja. Imaginava o rosto calmo de um médico dizer-lhe que se tratava apenas de burnout. Que comprimidos descomprimiriam tudo aquilo e que, em breve, o mundo voltaria a soar, a ressoar com a monotonia e brutalidade de sempre. Voltaria a haver uma pauta de sons.

Percebeu o desespero que sentia, por estar a desejar a última coisa que alguém pode desejar sobe a sua saúde: que seja de origem mental, que resulte de esgotamento… Sentiu-se perdida. Não havia ainda espaço no seu cérebro, menos ainda no seu coração, para este tipo de avaliações racionais. Para análises clínicas, para autoconhecimento sobre o fim do mundo que experimentava. Era altura de ‘panicar’, de se afligir forte e feio, de chorar e de pedir socorro. Muito socorro. Não suportava todos aqueles pezinhos de lã que não ressoavam no passeio, nem aquele asfalto de seda por onde pneus rolavam sem atrito, sem ruído, sem expressão sonora da sua velocidade. Não compreendia nem aceitava uma cidade sem o choro de um miúdo que acabava de esfolar os joelhos ao tropeçar no lancil. Sem a voz apaziguadora da mãe. Sem o som do arrolhar dos seus beijos no cabelo do petiz. Um elétrico passou, simplesmente como quem não passa, porque um elétrico que passa sem som não é um elétrico, ou ela não era uma pessoa. Pendeu mais para a segunda hipótese. Era uma não pessoa, com uma não audição. Pior, com uma audição seletiva que se recusava a ouvir os outros e o barulho das coisas.

Sentiu-se injusta. Pensou nos surdos. Nos mudos. Nos surdos-mudos. Lembrou-se dos invisuais… Nisto, sentiu uma taquicardia. Uma arritmia. Um sopro no coração. Um susto brutal. Puro pavor. Cerrou os olhos. Não havia lugar para solidariedades, não era hora de empatias outras que não consigo mesma. Estaria também a ficar cega? Ainda de olhos fechados, com tanta força que doíam. Com tanta intensidade que tudo era cor-de-laranja. Com tanta ansiedade que não conseguia descerrá-los. Aquilo que a acometia, a perda de audição. Não, não era de audição. Ela ouvia-se, apenas não ouvia os outros e as coisas, apenas estava surda para o mundo. A sua surdez era seletiva. Isto fê-la abrir os olhos um supetão. Teria perdido a visão periférica? Não. Via em toda a amplitude. Via, sim. Mas tudo num tom empastado. Tudo em sépia. Faltavam-lhe camadas. Os seus sentidos estavam a escamar-se. Faltavam-lhe sons. Faltavam-lhe cores. Não precisou de provar para perceber que lhe faltavam sabores e sensações. Podia viver sem o salgado ou o doce, o frio e o quente – não era o caso, pois este último tinha-o sentido na pele –, o olfato e mesmo algumas cores. Porém, a sua vida toda, toda a sua mais-valia profissional, toda a sua sensibilidade artística se ancorava no som. No ruído. No fundo, na avaliação e manejamento de ruídos. Por mais assustadores, estridentes, inaudíveis, dispensáveis ou sub-reptícios, todos alimentavam a sua ação, a sua criação, a sua obra.

Era, agora, uma sonoplasta sem audição. Sem capacidade de identificar o que se passava em seu redor. Porém… Sim, poderia dar-se o caso de… E se não fosse ela? Teria de averiguar se… Era demasiado remoto. Uma hipótese numa infinidade de probabilidades contrárias, mas… Quem sabe se… Tinha de sair dali imediatamente. Correu, esbaforida. Ensurdecida com os sons do seu próprio coração, do seu esforço e cansaço. Correu quilómetros, embalada pela felicidade de ouvir o seu corpo, nada mais do que isso, mas a ela ouvia-se, pelo que produzia todo o tipo de sons, resfolegante, como um alazão em campo aberto. Tinha de provar a sua louca teoria. A sua salvação. Seria? A ser verdade… Era demasiado louco e improvável. Provaria, todavia, a sua tese, a sua vontade de contrariar uma insuficiência física para a qual não estava preparada. Era a sua vontade contra o universo.

Chegou ao destino. Entrou no carro. Acelerou em fúria. Em desespero. Saiu da cidade. Os limites estavam bem para trás. Parou na berma. Saiu do carro. Ouviu o campo. O ar a passar, as folhas na sua dança rumo ao chão. O restolhar de vida nos pastos. O olfato a inundar-se se cheiros e sabores de silvestres, de um campo que não era sépia, mas pleno de todos os tons da Natureza. No meio da aflição, não lhe tinha ocorrido antes. Pegou no telefone, tinha de verificar se ouvia vozes, se ela própria era ouvida. Se a comunicação estava comprometida com o mundo humano, com os seus iguais. Ninguém atendia. Um dado que facilmente se aninhava na sua teoria, que encontrava lugar na possibilidade insana que colocara. Nada se passava com os seus sentidos, com a sua audição em particular. A cidade, sim, tinha emudecido. Nada soava nas cidades. Percorreu três delas e sempre o mesmo fenómeno. Seria a única a perceber o que se passa? Na ânsia de se ilibar de problemas físicos, de incapacidades própria, tinha sido consumida pelo egoísmo e subtraíra-se-lhe qualquer indício de curiosidade, de solidariedade. Os outros não tinham importado. Agora importavam.

By Sergio Larraín

Em mente já se posicionava em campo e no tempo. No futuro, já imaginava que teria de recorrer ao seu arquivo, para reconstituir sons citadinos, para dar vida sonora a cidades. Poderia ainda especializar-se em documentários e filmes longe de ambientes urbanos. Voltou a petrificar. Se fosse a única com esta síndrome, com incapacidade de ouvir as cidades e não estas a terem emudecido aos ouvidos de todos, como acompanhar a evolução dos sons das cidades e dos seus habitantes? Nisto, lembrou-se da música. Entrou no carro. O rádio estava ligado, mas sem som. Não era do volume. Simplesmente não saía som dali. Não tinha dado por isso. Se o problema fosse das cidades, talvez isso se explicasse pela incapacidade de estas falarem ao mundo, incluindo através de emanações técnicas e artísticas. Voltou a atormentar-se. Audição seletiva também poderia explicar isso. Recusou, todavia, que o problema voltasse a enraizar-se no seu cérebro, no seu ouvido. Mentalizou-se de que consigo estava tudo bem. A prova dos nove passaria por comprovar a sua experiência com a de outras pessoas. Se não fosse caso único, as notícias estariam cheias de notícias, testemunhos, pareceres, informação, desinformação, palavras de pânico…

 

Pegou no telefone. Tudo em branco. Nem a aplicação do banco funcionava. Nada. Zero. Ecrãs brancos e surdos. As cidades revoltavam-se?! O que é que se estava a passar? Um carro em sentido contrário. Colocou-se no meio da estrada. Tinha de parar aquele carro, que felizmente ouvia e bem. A viatura vinha desabrida. Parecia que não iria abrandar. Teve receio e retirou-se para a berma. O carro abrandou. Iria saber se estava a ensurdecer, ou, pior do que isso, a enlouquecer, ou se todos testemunhavam a mesma experiência e vivenciavam por essa altura do mesmo pânico que a acometia.

– Por favor! Consegue ouvir-me? Pode…

Olhares aterrorizados olhavam-na do interior do carro, que antes mesmo de parar a marcha voltou a acelerar com um barulho ensurdecedor. Será que também as pessoas tinham perdido a voz? Incluindo ela?

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