O encontro há muito que vinha sendo preparado. Ainda que mantido em silêncio, não era propriamente um segredo, apenas algo que necessitava de amadurecimento e maior número de correligionários para que, quando anunciado publicamente, surtisse na comunicação social o efeito desejado: estrondoso.
O mais aguerrido era o Sindicato dos Doentes Terminais. Com menos a perder do que todos os outros sindicatos do país, tinha sido o primeiro a apoiar a proposta da Associação de Doentes Infetocontagiosos. Uma ideia que, inicialmente, muitos apelidaram de insana, mas que logo foi apoiada também pelo Agrupamento de Doenças Mentais e Seus Derivados, pelo que, deixou de parecer tão louca assim. O propósito era claro e visava a defesa dos direitos e soberanos interesses dos doentes, de todos os tipos de doentes, de todo o país. Uma resposta pronta e musculada, à altura dos caprichos daqueles que nada tinham a perder e cujas mimadas reivindicações apenas serviam egoísticos interesses monetários. Uma retaliação que deixaria de rastos e humilhava toda a classe médica e de enfermagem, com as suas greves cirurgicamente marcadas para encurralar governantes em ano de eleições e pacientes em desespero. Queriam marcar pontos, quando apenas goleavam na morgue. O braço de ferro que os cegava tinha resultados nefastos não na Assembleia da República, mas na vida de doentes e seus familiares.
Essa indignação, todavia, já estava ultrapassada. Desde que hipocondríacos, constipados, verdadeiros doentes e moribundos se unissem, ninguém, jamais deteria o seu poder. Combateriam a greve com a greve. Os resultados adivinhavam-se catastróficos. Sem pacientes para tratar, sem doenças para curar, sem receitas para acalmar dores físicas e todas as outras, os grevistas de bata nem necessitariam de regressar ao posto de trabalho, extinto, entretanto, por falta de acamados. Quem esfregava já as mãos de radiosa felicidade eram as funerárias e até entre coveiros já havia pronúncios de um certo burburinho. O melhor seria começarem a contratar de imediato mais pessoal. Em breve, necessitariam de mais mão de obra. Talvez algum nefrologista, chefe de enfermagem ou técnico de imagiologia estivesse, entretanto, disponível. Todos seriam bem recebidos, mesmo sem um CV brilhante, que as coisas só acontecem a quem cá anda e quem nunca matou um paciente sem querer que levante o braço. Pois, ninguém se atreve, não é? Não julguemos, portanto. O pessoal dos cemitérios era compreensivo e benevolente, pelo que, reiteravam: todos seriam bem-vindos.
O caso não agradava – e isto será dizer pouco, muito pouco mesmo – aos condutores de ambulâncias nem ao Sindicato dos Traumatizados, único que se recusava a embarcar na Greve Geral de Doentes do Planeta.
– É inaceitável a mera ideia de quererem que embarquemos nessa missão suicida. Como pretendem que vítimas de acidentes graves ou menos graves, ossos partidos, fraturas expostas e tudo o mais, bizarrias sexuais incluídas, que surgem numa urgência hospitalar possam aceitar a ideia de participarem numa greve quando as suas vidas dependem de cuidados urgentes e imediatos?
– Caro colega – apaziguava o Sindicato dos Furunculosos –, não veja apenas a árvore, tente contemplar a floresta. O chamado, no estrangeiro, The big picture. O plano geral e não de pormenor. O sacrifício que fazemos é em nome de um bem maior.
– Maior? Bem maior? Para quem? Para uns míseros sobreviventes?
– Concordo com o colega dos furunculosos. Em nome dos obesos mórbidos…
– Ó, pá, se o estado já é mórbido, qual é a gravidade? Vamos tentar ser objetivos e pragmáticos…
Foram horas, dias e semanas de debates. O que jogou fortemente a favor dos adeptos da Greve Geral de Doentes do Planeta, uma vez que, no decurso de todo esse longo período de discussão, se mantinha a greve dos outros, a dos senhores de bata branca, que continuava a atropelar a cura e sobrevivência de inúmeros pacientes de todas as áreas, por todo o País. Assim, morrer por morrer, então que fosse por uma luta válida, por uma causa digna, em nome de um propósito individual. Sem rendição.
De fora, naquele seu constante papel de lobby de pressão, lá estavam os megagrupos farmacêuticos e os seus agentes no terreno, as farmácias, fazendo contas de multiplicar, muito, muito por alto, junto das máquinas registadoras e de lápis atrás da orelha. Médicos e pacientes que não se entendessem. Quanto mais afastados, maior o lucro destes monstros da saúde, principalmente se, a meio caminho, conseguissem pressionar os legisladores deste mundo a deixar os farmacêuticos passar receitas, dessa forma, até se podiam extinguir médicos e pessoal de enfermagem. Ficariam apenas os assistentes, para tratar das arrastadeiras, coordenar a logística e quantidade de compressas e coisas do género.
Curandeiros, endireitas e cartomantes já tinham listas de espera de anos e eram os novos VIP, com programas de televisão e revistas coloridas, de cores várias, a disputarem entrevistas e meras fotos desfocadas para os seus conteúdos. Deitavam búzios em direto, extraíam o diabo e a diabetes em direto, excomungavam a azia e Berzebu e rivalizavam já com as ‘panaceicas’ missas dominicais dos mais crentes. Até os profissionais dos paninhos quentes passaram a ser requisitados por isto e por nada. Pequenos nichos de negócios clínicos transformavam-se, de hora para hora, em novas e prósperas indústrias. Tirar o quebranto, fazer mezinhas e benzeduras de toda a natureza tinha virado moda. Já ninguém vivia sem um amuleto e a China era já o maior exportador de figas e ferraduras, enquanto o cultivo de trevos com qualquer número de folhas fazia renascer a new age agrícola.
Foram dias de sobressalto, algumas mortes e inúmeros duelos num eterno streaming de ódios e disparates, com audiências nunca alcançadas. Os telespetadores eram os novos acamados, prostrados pela dor e infortúnio. Alguns, com a carga de adrenalina da nova luta, de moribundos passaram a ativistas e a febre que os consumia tinha efeitos positivos em alguns casos clínicos. Case studies em constante avaliação que entravam diretos para o top 10 de compêndios médicos, assinados por académicos entusiastas.
Os de bata branca, contrariados pelo parecer do Tribunal Constitucional, andavam inquietos e já anunciavam greve também aos serviços de obstetrícia. Deu-se o regresso das parteiras e com ele rejubilaram os adeptos da slow life e dos costumes de antanho. Enquanto ninguém se parecia entender no setor público, o privado e as seguradoras iam amealhando novos pacientes e verdadeiras fortunas, já que nem todos os doentes partilhavam da mesma costela revolucionária nem do mesmo nível económico. Agudizaram-se distâncias sociais e a crise entre estratos económicos adensou-se.
Nisto, o impensável aconteceu, como noticiaram telejornais do mundo inteiro: os animais iniciaram uma greve de abstinência sexual e não havia como alimentar o planeta da vital proteína. Foi o colapso da fast food, da comida mais ou menos lenta também e ainda de todos os novos chefs. Acabaram-se, por um lado, com as questões da lactose e outros de origem alimentar e, por outro, sentiram-se vingados todos os vegetarianos e turma vegan. A fim de se quotizarem, e porque o crowdfunding era então já demasiado last season, os animais de quinta tiveram uma outra ideia genial: fizeram uma ‘vaquinha’ e rumaram para parte incerta, que é sempre a melhor parte.
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