– Fred, amigo, é hoje que vou encontrar a mulher da minha vida. Escreve o que te digo. Só saio daqui casado.

Fred riu e continuou a encher os copos com a mistela mais explosiva que já lhe tinha passado pela garganta e a dizer que sim a tudo.

– Só não vás casar-te à minha tenda. Não te esqueças que vim com a Carol.

No meio da multidão, suada e em êxtase, entoando e gritando ao som infernal dos muitos decibéis que vibravam no ar quente daquela noite de verão, por entre as flashadas de luz dos holofotes espalhados pelo recinto e mesmo com o movimento trepidante do corpo que pulava, os seus olhos encontraram-se. Vá-se lá saber como. E voltaram a encontrar-se muitas mais vezes, sempre que o escuro o permitia e as luzes o facilitavam. Foram-se aproximando, dançando já em sintonia, ou quase, que o ritmo era o de cada um. Primeiro veio o beijo. Terno e quente, longo e cúmplice, como seria o de dois amantes há muito separados e agora reencontrados. Juntos de novo. Foi essa a sensação. Ainda não eram e já eram há muito tempo. Veio ainda novo beijo, para reconfirmar tudo isso. Seguiu-se um longo abraço de reconhecimento ainda. Já não pulavam, nem gritavam, nem dançavam. Apenas se olhavam. Havia que validar tudo o que achavam ter sentido. Tudo o que viviam naquele instante. Tudo o que parecia já tão certo. Tão verdade. Só depois gritaram os seus nomes.

– As-drú-bal!!!!

– A-ni-ce-ta!!!!

Riram. Era o derradeiro selo de confirmação. Como era possível que, no meio de um festival de música infernal, em plena mata costeira, entre ritmos psicadélicos, se conseguissem juntar um Asdrúbal e uma Aniceta? Seria “o destino”, diria ela mais tarde. “A puta da loucura”, no entender dele. Logo no primeiro dia de festival. Havia mais três pela frente. Passaram juntos essa primeira noite, que ela recorda com enlevos nupciais, mas da qual ele não tem a menor memória. Demasiado álcool, demasiados fumos, demasiado barulho e excitação, demasiado tudo, na verdade. Exceto na sua cabeça onde quase todos os eventos subsequentes ao mágico encontro foram engolidos por um buraco negro revestido a amnésia e alucinogénios.

 

Para Asdrúbal, o segundo dia foi estranho. Mal a reconhecia. Demorou até algum tempo a perceber o que fazia ela na sua tenda com tamanho à-vontade. Seria a namorada do Fred? Estremeceu. O que fazia ela ali, ao seu lado? Onde estava o Fred? Quando ela se destapou estava nua. Não devia ser a namorada do Fred. Teve um pequeno flash e tranquilizou-se. Era a miúda da noite passada e, que bom, continuava a achá-la engraçada e… diferente. A companhia ideal para passar aqueles dias, sem necessidade de procurar uma nova aventura todas as noites. Um achado, portanto. Aquilo estava a correr bem.

Aniceta, demorava a carburar pela manhã. Sem nada dizer, levantou-se, cobriu-se com um pano colorido que na noite anterior trazia na cabeça e saiu da tenda. Voltou pouco depois, de cabelo molhado, o pano era já um vestido – não sabia bem como ela tinha feito aquilo, mas era engenhoso – e desatou, então a falar sem cessar. Mais valia que não o tivesse feito.

– Querido, bom dia. Que noite fantástica, não achas? Estou louca para dizer aos meus pais. Eles andam por aí, também. Nem vão acreditar que encontrei o amor num festival onde nem queria vir, não fosse a insistência deles. Teimaram que eu andava depressiva e cabisbaixa por causa do meu último namorado. Para pôr fim à intensidade dos meus sentimentos acharam que tinha de sair e divertir-me e… Bom, aqui estou e eles estavam cheios de razão. Tens mesmo de os conhecer. Vão adorar-te, com esse ar certinho e todo bem posto. Vestes polos? Que amor! Acho uma ternura. Amo-te já. Tanto!!!

Nisto, atira-se ao pescoço de Asdrúbal, atordoado e manifestamente assustado, e dá continuidade às manobras sexuais da noite anterior, de que ele não tinha memória. Mas avivou-a, e bem, e percebeu que valia a pena acalmar o pânico que ia no seu peito ao ouvi-la falar, pelo muito que sentia noutras zonas do seu corpo. Mais uma exotérica, pensou. Tanto melhor, no final irá perceber que os astros não estavam, de todo, nem alinhados nem a seu favor e que o melhor seria cada um partir para o seu próximo concerto.

 

Como ela insistia em ir procurar os pais, que estariam no parque das autocaravanas, para que se conhecessem e se desse desde logo início a uma grande e feliz família festivaleira, Asdrúbal começava já a recear pela sua vida, ou pela sua sanidade mental. Tinha de a despachar. Alinhavou os chakras e pensou que o melhor seria mantê-la, para já. O sexo era divinal e ela até era divertida, naquele seu jeito alucinado e freak. Uma verdadeira personagem. Pelo menos não se queixaria da areia nos pés, da falta de higiene dos sanitários, nem exigia que ele pagasse um hotel para que pudessem ter sexo. Bem diferente das miúdas a que estava habituado, sempre a precisarem de mais uma muda de roupa lavada, e idas à aldeia mais próxima para irem a uma casa de banho decente, e mais um jantar num restaurante da moda e mais não sei o quê, e tudo isto em pleno festival. Eram cansativas e desesperantes. Com esta, tudo isso estava aniquilado. Era todo um novo mundo que merecia ser desbravado. A vida e o sexo, afinal, podiam ser bem mais simples. Mantê-la-ia. Isso estava certo. Não podia, todavia, entrar na história de conhecer “os sogros”, como ela dizia. Asdrúbal não sabia se era assustador ou apenas divertido e exótico. Quanto a isso, a saída era fácil.

– Quero-te só para mim. Não estou preparado para ficar sem ti, enquanto os procuras, nem para te partilhar, quando os encontrares. Deixa-me saborear-te. Acabo de te conhecer. Não quero já ter de conhecer os teus pais.

Aniceta olha-o surpreendida, mas logo os seus olhos brilham e riem e com ternura diz-lhe.

– Que romântico!

Dá um salto sobre o pescoço de Asdrúbal, enlaçando as pernas em torno da cintura dele e cola a sua boca à dele. Aquilo prometia, bem mais do que alguma vez desejara, pensava Asdrúbal. Sempre a faturar e sem dramas. Tudo muito estilo livre e descomprometido. Aniceta, porém, não estava convencida. Tinha mesmo de o apresentar aos pais. Era o amor da sua vida, nunca se sentira tão bem junto de alguém, pelo que não havia tempo a perder, nem dúvidas a esclarecer. Sabia bem o que lhe ia no peito, e os búzios já lhe tinham confirmado tudo o que necessitava de confirmação. Asdrúbal começa a denotar traços de insanidade naquele tipo de comportamento. Ele também estava entusiasmado, até, talvez, um pouco apaixonado, ou apenas sexualmente excitado – por vezes não é fácil distinguir a fronteira de um e outro estado –, mas quem é que no seu perfeito juízo fala em noite de núpcias, sogros e futuro a dois com uma pessoa que há apenas 12 horas nem conhecia? Aniceta era completamente desequilibrada. Era uma alma só, carente e obsessiva. Tinha rapidamente de acabar com aquilo.

– Aniceta, acho que não estamos na mesma sintonia de onda. Tu falas como se fosses minha mulher e eu olho-te como uma estranha com quem me apetece ter sexo.

Asdrúbal teve de interromper o seu discurso de ponto final na relação que nem chegara a ser relação, pois o pranto – não era choro, era mesmo pranto descontrolado e insano – de Aniceta começava a chamar as atenções e mais parecia que tinha sido sovada. Que loucura!, pensava Asdrúbal. Abraçou-a como pôde e tentou acalmar aquela tempestade emocional.

By Alan Shapiro

– Vamos com calma, pode ser?

– Sim, com calma, mas vamos, certo?

– Ok.

Apenas ok. Pareceu a Asdrúbal que era menos comprometedor e definitivo do que certo, ou um sim.

Para se convencer de que fizera o melhor que havia a fazer perante as macabras circunstâncias, Asdrúbal pensa na oportunidade de um pouco mais de sexo, enquanto ela acredita que foram talhados no céu dos romances de cordel, o que na mente de Asdrúbal será cerdade até que ele suma da sua vida. Calculista, decidiu que passariam o dia juntos, longe de pais ou outros familiares ou amigos – para dar credibilidade à teoria da necessidade de exclusividade – e nessa mesma noite, no meio da multidão, perder-se-ia dela para nunca mais se encontrarem. Ainda bem que ele e o Fred tinham chegado em dias diferentes e em carros separados. Nem precisava de o encontrar. Logo lhe explicaria a situação. Tinha de se concentrar no plano de evaporação da sua pessoa.

Absolutamente sóbrio e focado, Asdrúbal começa a ver a sua vida a andar para trás, quando Aniceta insiste que ele a coloque sobre os seus ombros, para ver a banda. Ninguém a demovia dos seus propósitos e quando contrariada, ele já tinha percebido que ela fazia birra como aquelas crianças estuporadas que se atiram para o chão em alarmante berraria, para chegar direto aos ouvidos da Assistência Social, sem passar por negociações fofinhas. Logo que a coloca no chão, e ainda o terceiro tema não ganhava tração na letra e já Asdrúbal tinha dado às de Vila Diogo. Abandonou-a literal e sorrateiramente. Virou costas àquele pesadelo, para nunca mais voltar. Tirando partido da enchente, perdeu-se na multidão, movimentando-se como uma cobra de água, apelando aos seus instintos mais primitivos. Afinal, era uma questão de sobrevivência. Fugir ou morrer. A escolha era simples. Viveria. Sem ela, pois claro! Ele seria a Kate e não DiCaprio naquela pequena tábua flutuante nas gélidas águas pós-naufrágio. E se preciso fosse, pisar-lhe-ia os delicados dedos com que ela se agarrava à improvisada jangada emocional.

Aniceta estava nas nuvens dos acordes do seu tema preferido. Estava no paraíso dos festivaleiros, de mão dada com o amor e no corpo bailava-lhe o frenesim do prazer absoluto. Apertou ainda mais a mão que encerrava a sua e posicionou-se para o beijo apaixonado e sedutor que a situação exigia. Não reconheceu aquela boca, nem aquele era o beijo do homem da sua vida. Abriu os olhos com toda a força e focou-se como conseguiu no rosto que tinha à sua frente. Gritou. Não era Asdrúbal. Há quanto tempo estava de mãos dadas com um estranho? Quem era aquele homem? Porque estavam de mãos entrelaçadas? Não compreendeu logo o que se passava. Estaria a ver mal? Só agora estaria a ver bem e o feitiço tinha passado? Asdrúbal, afinal não era Asdrúbal? Ou era aquele novo Asdrúbal o Asdrúbal de sempre?

– Quem és tu?

– Que desatino, miúda. Estamos só a curtir. Qual é a tua?

Não era Asdrúbal. Definitivamente, aquele estafermo não era o amor da sua vida. Onde estaria Asdrúbal? Como foi confundir uma mão estranha e perder-se nela daquela maneira?

Aniceta julga estar a enlouquecer. Decide nesse preciso momento que algo de muito grave aconteceu a Asdrúbal. Raptado, desmaiado, sovado…? Começa a sua insana busca pelo seu homem, pelo seu eterno amor. Desata a olhar em redor, a virar rostos à bruta, a perguntar se tinham visto o seu amor. Ninguém ouvia. Ninguém entendia. Ninguém queria saber. Sentia-se a cair no poço fundo que afogava já os seus pés, a sua cintura… Faltava-lhe o ar, mas estava determinada. Quando se encontra o amor eterno, ele merece que se passe tudo a pente fino. Fá-lo-ia. Não hesitou um segundo. Asdrúbal era seu. Encontrá-lo-ia. Morto ou vivo.

Quando Asdrúbal, finalmente consegue sair do recinto, aliviado por ter conseguido livrar-se daquela louca que acabava de conhecer e que já agia como se fosse sua mulher há 20 anos, é acometido por uma tal sensação de liberdade que grita de alívio e desata a correr naquele mar de rasgos de luz que o encandeiam e inflacionam a leveza que lhe vai no peito. Não se apercebe. Não entende. Uma luz persiste mais do que as restantes. Não acredita que está a regressar ao miolo do festival. Mas como? Está já tão longe. O som já perdeu tamanha intensidade… Asdrúbal não entende ainda. Asdrúbal é atropelado. Alguém da seguradora sugerirá mais tarde que por uma autocaravana e um eótico casal de hippies, mas isso permanece por apurar.

Na tenda de Asdrúbal, onde regressou, movida pela fé de que, talvez desorientado por se terem perdido, também ele teria voltado à base, Aniceta monta um verdadeiro gabinete de crise. Liga para todos os números para os quais faz sentido ligar num momento dramático como aquele que vivia. Polícia, bombeiros, Proteção Civil, hospital e… morgues. Não se poupou a esforços nem economizou a acionar todos os seus contactos. Os seus insistentes telefonemas acabam por levar a que a polícia se interesse pelo assunto. Acabam por localizar Asdrúbal num hospital a 30 quilómetros do parque florestal onde decorre o festival de música. Aniceta acorre ao local, conduzindo que nem uma louca a caravana dos pais, envolvidos já na dramática busca do amante perdido e agora reencontrado. No hospital, Aniceta anuncia-se como a desolada noiva de Asdrúbal e os pais, como os destroçados sogros da vítima. Por estarem num país estrangeiro e atendendo ao melindroso estado de Asdrúbal, são as únicas visitas autorizadas do paciente.

By Antonio Mora

Asdrúbal, com inúmeras fraturas, incluindo cranianas, está completamente imobilizado com talas e parafernália ortopédica, e mesmo depois de operado ao maxilar, não consegue falar. Entre gesso, tubos que entram e tubos que saem do seu corpo, ligaduras, dores e o agradável efeito da morfina, Asdrúbal vegeta um esgar ao ver Aniceta. Do seu único olho destapado, saem lágrimas de terror. Os médicos congratulam-se com a reação. Reconheceu-a e emocionou-se. Tudo bons sinais.

Preso no seu corpo, perdido na sua mente e sem conseguir comunicar com o exterior, Asdrúbal assiste ao mais macabro dos acontecimentos da sua vida. Tenta gritar, mas todos os esforços são em vão e aumentam mais a pressão que sente no crânio. Aumentam a dose de morfina. A cada novo impulso dramático, a equipa médica rejubila. A presença de Aniceta está a promover melhoras incríveis. Dizem a Asdrúbal que bem pode cantar de galo, pois encontrou naquela mulher uma verdadeira pérola. Não duvidam de que ajudou a salvar-lhe a vida vegetativa em que parecia estar a mergulhar. Como contrariá-los? Como esclarecer o que quer que fosse?

Asdrúbal não sabe como, nem quando, nem porquê. Mas sabe com quem. Em menos de um abrir e fechar de olhos, Asdrúbal e Aniceta casam-se na capela do hospital, tendo como testemunhas a equipa médica e de enfermagem, Fred – que lhe sussurrou estar impressionado com a veracidade do seu presságio – e dois estranhos gadelhudos que Asdrúbal não percebe se são dois homens ou duas mulheres. Mas essa era a menor das suas alucinações e o mais débil dos seus medos.

Moral da história:

Sempre que Esopo coloca um galo a falar com uma pérola, apetece-nos logo um bom festival de música fora de portas. Foi o que aconteceu.

By Moreno Monti e Matteo Tranchellini

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