Há já dois anos que vivia nas nuvens. Não apenas na cloud, para onde se havia mudado bastante antes disso, por conta de um computador roubado com informação fiscal sensível e até com fotos e alguns vídeos bastante comprometedores – por vezes excedia-se em vaidades com o corpo e as redes sociais assim o exigiam, como bem se sabe –, mas verdadeiramente nas nuvens. No céu. No firmamento celeste dos felizes e contentes. No éden dos enamorados. No paraíso dos amantes correspondidos. Correspondidos era um bom termo, já que tudo ainda não tinha saído do papel virtual, aquele espaço de diálogo que intermedia os relacionamentos online. Num aniversário de má memória, em que se sentia particularmente só e vazio, tinha oferecido a si mesmo a oportunidade de procurar, de forma alternativa, uma parceira num site de encontros. Evitou aqueles que lhe pareceram mais indicados a (a)casos sexuais, a lembrar os anúncios de outrora, de “menina solteira, cheia de atributos à procura de senhor mais velho para relacionamento sério”, e que, nas entrelinhas, se interpretava como “garota em busca de quem pague as contas”. Era um pouco conservador, admitia, e facilmente interpretava, preconceituosamente, quem sabe, casos de solidão próximos do seu, com pistoleiras em busca de dinheiro e não de aventura, menos ainda de amor.

Ciente de que os tempos mudam, com ele as vontades, incluindo a sua, e que hoje tudo se compra no grande shopping da www, e, não isento de algum cinismo, sua segunda pele, decidiu criar um perfil muito janota e sério, em dois sites que lhe pareceram prometedores, senão de amor, pelos menos de uma possível paixão. Com redobradas cautelas, lá se deu a conhecer ao mundo dos amantes cibernéticos. Passou igualmente a colocar mais esmero nas fotos e posts que ia semeando nos seus vários perfis sociais. Com isso pretendia dar um ar jovial, de bem com a vida – como agora por aí se diz –, equilibrado e uniforme à pessoa que se apresentava pela primeira vez ao universo feminino nas plataformas de encontros para adultos esclarecidos (pelo menos, assim o desejava). Muito emproado, decorou o seu cantinho virtual com um leque variado, mas harmonioso, de fotos que iam do incontornável ginásio ao fato e gravata, passando por destinos de férias, mais ou menos percetíveis, mas sem grande alarido. Não queria passar a imagem de um pobretanas, mas menos ainda de um saloio endinheirado ou, pior do que isso, que se fazia passar por ter dinheiro. Pior do que ostentar-se o dinheiro que se tem, é dar mostras daquele que se não tem. Isso, então, José Galo simplesmente abominava. Viu e reviu aquele novo pedaço de mundo que levava o seu nome e deu-se por satisfeito. Nem demasiado formal, nem excessivamente banal. Acima de tudo, entendeu que tinha uma certa sofisticação. Um passado bem abreviado, com alguns pontos altos discretamente sublinhados, e outros tantos ocultos, que a inveja é poderosa e o prevenido Galo não era de vaidades nem de ostentações parolas. Usou de sinceridade sem se expor demasiado e achou que quanto ao que desejava encontrar ali, também era objetivo e elegante.

 

Antes de oficializar a coisa, pensou bastante naquilo em que se estava a meter. Um perfil num site destes era como estar em exposição numa gaiola, qual preza indefesa que se presta a ser observada por todo o tipo de predadores. Chegado a esta imagem nada atraente e quase retrocedeu na sua intenção internauta. Quem de facto era tudo aquilo que ele era, podia suscitar dúvidas às possíveis futuras pretendentes. Afinal, o que leva um homem jovem, bem-sucedido, com um simpático pé-de-meia, uma casa gira e uma vida desafogada a procurar namoradas online e não na vida real? E porque não teria já namorada oficial? Seria tolo? Seria casado e não o queria revelar? Não seriam dele as fotos e toda a informação que ali partilhava? Ao ocorrerem-lhe tantas dúvidas sobre aquilo que poderiam concluir do seu perfil, imaginem-se todas as que lhe suscitavam os perfis das mulheres com quem se comunicaria! Quem lhe garantia que tudo aquilo que visse, lê-se e ouvisse era a verdade? Sentiu-se ridículo. Não queria mais aquilo, até ao dia em que voltou a querer e, num impulso, já lá estava, exposto, na sua gaiola, à mercê do amor, da mera paixão, da desilusão ou apenas de raposas famintas.

Era cínico, sabia-o bem, mas isso podia até jogar a seu favor, pois munia-o de cautelas extra, de cuidados acrescidos. De qualquer forma – e este era o triste contraponto –, não conseguia encontrar na sua vida social, profissional nem em nenhum outro dos círculos nos quais se movimentava, ou nos locais que frequentava, mulheres que o fascinassem. Tinha tido inúmeras namoradas e casos, mas mais para os ter do que por verdadeiramente os desejar. Sentia-se como as raparigas das aldeias de antigamente que, coagidas pela urgência de se casarem em idade fértil, acabavam por se casar com o primeiro homem que não lhes fosse completamente repulsivo. Ora, isso não é razão para votos e juras de falsas eternidades e balofos sentimentos. Se não se ama logo, jamais lá se chega apenas por força do convívio, pelo contrário, nada é mais avassalador e esmagador do que a convivência diária com alguém que apenas se suporta ou tolera. A rotina até o amor verdadeiro desgasta, quando mais um laço com menor resistência!

By Bastien Oswald

Apenas paixão e desejo sexual começam e acabam no mesmo sítio, pois não se passa o dia na cama e logo que se sai dela começam os desentendimentos e o tédio. Talvez fosse demasiado convencido, e achasse que ninguém era perfeito para si, ou vivesse na ilusão de que ‘a tal’ existia algures e apenas ainda não se tivessem cruzado, por força dos caprichos da sorte ou da cegueira de ambos para se reconhecerem na rua. Quem sabe esta nova rua, esta nova sala de conversações, não lhe permitisse uma mais aprimorada seleção, um afunilamento de compatibilidades e tudo estivesse, de facto, à distância de um clique? E por tudo, José Galo designava mesmo tudo: amor, paixão, sexo, amizade, entendimento, apoio, respeito, casamento, filhos… O pacote todo, viagens, aventura e velhice incluídas.

Foi o melhor que fez. Claro que percebia agora porque é que nunca se tinha cruzado com a sua ‘tal’, pois que ela vivia na Argentina. Sim, optou por um site internacional, que Portugal pareceu-lhe demasiado estreito para os horizontes que Galo trazia no peito. O que poderia ele dizer sobre ela? Era complicado. Acima de tudo, era-lhe difícil. Ela excedia em tudo, tudo mesmo, aquilo com que alguma vez tinha sonhado. Era linda. Mas linda daquele género que jamais se imagina conseguir. Um verdadeiro portento, com um toque exótico, quase étnico. Cabelo preto como nunca tinha visto – ela garante-lhe que as fotos não têm filtro e os vídeos comprovam-no –, uns olhos escuros e profundos, mas vivos e brilhantes. Um elegante sorriso nostálgico e um riso desarmante.

By Ian Lozeva

Sobre o corpo, José Galo, achava por bem não falar, por entender ser isso vulgar e impróprio de quem ama de verdade e ele amava de verdade aquela mulher extraordinária, a qual, não muito tempo depois de ter criado o seu perfil, com ele se atreveu a meter conversa. Falaram de tudo. Durante dias a fio, noites que se colavam com madrugadas, meses que viraram… precisamente dois anos. Claro que ele já tinha ido à Argentina, mas desencontraram-se, por motivos de força maior. A mãe dela morreu num acidente de aviação na Guatemala e ela teve de partir de escantilhão logo que recebeu a notícia, e por essa altura já Galo sobrevoava o Atlântico. Ainda tentou ir ao encontro dela, que os amantes são presença de todos os dias, mais obrigatória quando um deles sofre, mas ela pediu-lhe delicada e encarecidamente que não fosse, que ainda não tinha avisado a família que namorava online e suspeitava que iriam reprovar, pois era de uma família muito conservadora. Também não se sentia confortável, nem o deseja. Não queria que o seu primeiro encontro decorresse naquelas funestas circunstâncias. Choraram juntos, mas afastados. Galo ainda cirandou por Buenos Aires, mas o seu coração não lhe permitiu divertir-se, sabendo que a sua Raposa – como lhe chamava, por conta do seu olhar atento e observador – se encontrava a passar por tamanha tristeza.

Claro que, lá no fundo do seu ser, Galo passou em revista todas as circunstâncias e todos os detalhes que pudessem indiciar algo de errado ou que fosse suscetível de levantar fundamentadas dúvidas. Que sinais lhe poderiam ter escapado? Já a tinha visto, ela era real. Já tinha visto a casa onde vivia, nas videochamadas através das quais, ainda que raramente, matavam saudades. Já tinha até conhecido o irmão dela, cardiologista de profissão, também ele muito bem-apessoado e formal, com ar de bem-sucedido playboy, e única pessoa a quem ela tinha confessado este romance à distância. Ela estava sempre disponível para ele. Nunca falhava um telefonema, uma mensagem, uma resposta e sempre que não atendia, ligava de volta na primeira oportunidade. Nada levantava dúvidas no cérebro racional e cético de Galo. Tudo batia certo e nada fazia comichão ao seu instinto nem ao seu natural cinismo.

Agora, a completarem dois anos de uma tórrida relação séria – há poucas coisas mais sérias no amor do que duas pessoas que se amam e se mantêm juntas e em fidelidade, sem nunca se terem encontrado fisicamente –, uma relação que vive e sobrevive do mais puro sentimento, sem sentidos à mistura, ainda que o tato começasse a ser tido em falta por Galo, que era latino e, por vezes, já se impacientava com a impossibilidade de abraçar a sua Raposa e lhe afagar e cheirar o longo cabelo preto azeviche, pois que ambos iniciavam o recorrente tema de um encontro, a fim de se conhecerem fisicamente e perceberem se em termos de feromonas tudo batia igualmente certo entre eles. Raposa faz-lhe a grande surpresa de anunciar que já tinha passagem marcada para Lisboa. Que não aguentava mais não poder estar com ele. Galo exulta. Manda limpar a casa, com esmero, de alto a baixo, compra plantas e flores e, no dia exato, mas várias horas antes, que a excitação não lhe permitia outra coisa, lá estava no aeroporto. O voo chegou a horas, mas Raposa não. Nem a horas, nem naquele voo. Sobressaltou-se. Uma mensagem de Raposa esclarece tudo, mas no pior tom. Foi assaltada durante a noite. Não se conseguia mexer. Tinha vergonha de chamar a polícia e o irmão estava no Peru, num simpósio. O que os assaltantes não levaram destruíram e ainda tinha sido violada. Chorava e desculpava-se. Galo não sabia o que dizer nem como reconfortá-la. Ela recusava atender as suas videochamadas, não suportava que Galo a visse no estado em que estava. Não tinha passaporte e, à força, tinham-lhe roubado todo o dinheiro, através de transferência bancária. Só não lhe tinham levado o telemóvel. Nem sabia como.

By Wolfhorn

Galo percebeu tudo. Era uma jogada. Devia ser nesse momento que começariam a chegar os pedidos de ajuda. De dinheiro para o hospital, operações e tratamentos, e para o passaporte, e para redecorar a casa, e para ir ter com o irmão ao Peru… Qual irmão?! Aquele homem jovem e sedutor seria o seu amante, ou gigolo, ou marido, o que sabia ele, senão apenas que eram “muito chegados” e que já o tinha visto em casa de Raposa uma data de vezes? Cardiologista, pois sim. Devia cuidar-lhe do coração, é certo, mas não devia estar habilitado a passar receitas. Ah, Raposa. Tu não sabes, mas meteste-te com um Galo. Subestimaste esta ave de capoeira, mas não te esqueças que tem asas e que tudo vê lá de cima, do seu poleiro. Antecipando chegadas, jogadas e esquemas. Julgam que somos parvos, que o nosso pescoço não prevê a chegada do cutelo? Nada pior do que não contar com a inteligência dos outros, assumindo a nossa como superior e inultrapassável. Erro crasso. Numa manobra de mestre, Galo subverteu a situação e, por conta da sua inesperada e acabada de inventar bancarrota, como explicou a Raposa, solicitou, com pudor e muita vergonha, se Raposa não lhe poderia pagar a passagem para a Argentina, que, apesar de na penúria, Galo fazia toda a questão de estar a seu lado naquele momento, pois nem toda a sua compreensão e imaginação poderiam ficar perto de tudo aquilo pelo qual ele sabia que ela estaria a passar. Do outro lado, silêncio.

By Moreno Monti e Matteo Tranchellini

O que Galo se divertia. Passados uns dias, recebeu uma mensagem do ‘irmão’ de Raposa. Punha um ponto final à situação. A irmã enfrentava um complicado estado depressivo que se agravara com as tentativas de extorsão de Galo. Extorsão? Alto lá! Só tinha pedido compreensão e um bilhete de avião para que ele pudesse acompanhar Raposa nesta fase tão dura e triste. Não pediu dinheiro vivo, como sabia que ela estava prestes a fazer consigo. Mas não interessava. Queriam ambos o mesmo, pelo que estava tudo bem. Ele também já não se sentia seguro naquela relação e não gostava do cheiro a tramoia de tudo aquilo. Raposa e o ‘irmão’ que passassem à próxima vítima. Só lamentava ter perdido dois anos naquilo. Dois anos nos quais aqueles dois, seguramente, teriam enganado outros papalvos pelo meio, que ele não seria o único. Até porque eram do tipo sofisticado e a sua manutenção, bem como do seu estilo de vida, não devia sair barata.

By Mike Kelley

Para celebrar a sua vitória, astúcia e engenho, Galo ofereceu a si mesmo uma viagem à Tailândia, num paradisíaco resort de luxo. Não podia ir já, mas tratou de tudo para daí a oito meses, que Galo gostava de agendar tudo com esmero e antecedência. Além de que o tempo voa e, nisto, quando deu por si, estava na hora de embarcar. No aeroporto de Madrid – o voo ficava mais barato do que via Londres ou Frankfurt – encheu-se de snacks e revistas, pois tinha quase um dia de viagem pela frente. Instala-se confortavelmente no seu cadeirão de primeira classe, descalça-se, ajeita almofadas e manta, abre um pacote de cajus e uma das muitas revistas que tinha aos seus pés. Apanha um susto. Um dos artigos de abertura da !Hola – ou outra publicação do género – contava a história de conto de fadas de uma das mais cobiçadas herdeiras da América do Sul, filha do Rei das Pampas, nome pelo qual era conhecido o maior produtor de carne argentino, agora viúvo. Em frente a um palacete de sonho, num perfeito relvado, junto de soberbos cavalos e dois Labradores ainda cachorros, a bela herdeira contava como tinha sido vítima de violação, tentativa de extorsão por parte de um namorado português e como acabou por se apaixonar e casar-se com o neurocirurgião norte-americano, amigo do seu único irmão – e grande apoio neste período –, com quem se tinha cruzado mais intensamente devido à errância hospitalar a que uma depressão a conduziu.

O caju que Galo tentava engolir não descia. O ar que devia passar não passava. Roxo e a sufocar, Galo percebeu que o fim se aproximava. Foi acudido por um passageiro, médico de profissão. No desespero de conseguir aspirar um pouco de ar, que o oxigénio já era escasso, e de fazer saltar o caju, Galo agarra-se aos braços do médico, tentando que este percebesse que sufocava. Que um caju lhe obstruía a traqueia. Olham-se nos olhos. Galo estremece. O irmão de Raposa é o homem que o tenta salvar. Será que tenta?

Moral da história:

Ler revistas sociais enquanto se comem frutos secos pode provocar acidentes e até asfixia. É também sempre preferível ser salvo por um médico que viaja em primeira, pois deve ter acesso a mais remédios. Histórias sobre pessoas com apelidos animalescos trazem sempre água no bico. Há mais conclusões possíveis, mas estas são as mais importantes.

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