A estratégia era boa. Muito boa. A mensagem forte, acessível e bem-humorada. Pelo que conhecia do cliente e por tudo aquilo que lhes tinha sido passado no briefing – aliás, nos vários briefings, que a empresa era poderosa e exigente –, Ismael Coelho sabia que o seu projeto seria o vencedor. Pelo menos a sua ideia, ainda que pudessem querer alterar pormenores. O conceito era imbatível. Há coisas que se sentem, que conseguimos olhar de fora, mesmo quando nascem cá dentro, e que conseguimos avaliar com sentido analítico. Era o caso. Não duvidava, por um segundo, que o seu projeto não fosse o vencedor. Não era uma questão de ego desfasado, desproporcionado, sobredimensionado. Era, de facto, uma ideia genial. Nem sabe como chegou a ela, acha mesmo que foi a ideia quem o procurou. Era tão perfeita e adequada a metáfora que apresentava para a valorização da marca e aproximação ao público-alvo, que Ismael, honesta e modestamente, esperava que a ideia não tivesse também procurado a mente de qualquer outro colega. Num mundo vorazmente competitivo, em que o trabalho de equipa era valorizado, mas onde os egos adoravam sobrepor-se aos demais, numa constante luta de cadeiras, posições e promoções, temia que de tão perfeita e, agora que a tinha em mente, de tão óbvia, ela não tivesse ocorrido a outro elemento da equipa.

O pior é que lhe tinha ocorrido no primeiro dia de trabalho naquela campanha, quando tinham dado um prazo de uma semana para que cada um pensasse individual e isoladamente num conceito para toda a campanha publicitária daquele que poderia vir a ser o maior cliente da agência. Sabia que Duarte Gato, o Deus da empresa, o sacrossanto mentor de toda a equipa, venerado e adorado, por conta de algumas campanhas geniais – cuja genialidade e sucesso, a bem da verdade, há demasiado tempo não conseguia equiparar –, não queria que lhe chovessem precipitados palpites para cima da mesa. Quando dava um prazo para que se pensasse num assunto, numa campanha, num cliente, num problema, só se disponibilizava a debater o assunto após o prazo dado.

– Uma boa ideia pode morrer por falta de tempo e dedicação e uma má ideia, se bem trabalhada e melhor executada, pode tornar-se numa visão excelente.

Mais ou menos por estas palavras, esta era uma teoria que repetia à equipa vezes sem fim, pelo que nem os mais ousados ou incautos se atreviam a antecipar prazos na ânsia de cair nas boas graças do chefe dos chefes. Assim, e ainda que a espera o corroesse por dentro, tal a certeza de êxito que lhe lotava o pensamento, Ismael Coelho aguardava. Em sofrimento, mas aguardava.

By Rodney Smith

Aguardava e guardava só para si a sua visão. O pensamento de que tinha acertado em cheio na melhor ideia possível para a solução daquele desafio, a mais acertada, adequada e ainda a mais brilhante, levava-o a querer revelar ao mundo aquilo de que tinha sido capaz, como quando aprendemos a andar de bicicleta. Mas Ismael sabia que apenas poderia pedalar em frente de quem soubesse guardar segredo e respeitar a autoria intelectual da campanha. Havia confiança na equipa, tal como havia desconfiança, invejas, ciúmes, ambições e a vontade desbragada de subir na carreira e de vencimento. Nada de ingenuidades tolas, como todas elas são. Há que saber guardar o melhor para o fim, um traço de caráter inato a muitas pessoas, e sinal de maturidade em muitas outras. Preferia morrer nesse instante sem que vivalma viesse a elogiar postumamente o seu feito, do que revelá-lo de bandeja a um qualquer colega-concorrente, como, na verdade, todos eram naquela primeira fase de cada projeto.

By Henry Cartier-Bresson

O brainstorming, o trabalho de grupo, a voluntariosa e apaixonada participação de todos só era incentivada por Duarte após eleita a ideia com mais possibilidades, ou que mais o entusiasmasse. Só nessa fase todos eram chamados à frente, para que cada um desse um contributo capaz de aprimorar o conceito, retirando ou acrescentando coisas que fizessem a diferença. Um método muito próprio, que acabava por fomentar a rivalidade entre parceiros, mas que, em simultâneo, espicaçava o engenho de cada um, no desejo de brilharem em frente à equipa e, principalmente, aos olhos de Duarte, um líder que era tão respeitado quanto temido. Eram míticas as suas cóleras bíblicas, capazes de baixar sobre a terra granizo, tormentas e pragas de gafanhotos. Quem já havia presenciado uma das suas fúrias, confirmava que tudo isso já tinha sido testemunhado. Uma carta que nunca se sabia quando poderia sair do baralho e queimar uma aposta, ou mesmo uma vida. Os despedimentos não eram raros.

By Ric F Martinez

By Tommy Ingberg

Essa pressão acutilava as mentes, espicaçava temperamentos e mantinha a criatividade no acutilante e sempre bem amolado fio da navalha. Mantinha ainda a equipa em sentido e com espírito de militância, a fim de agradar ao grande chefe. Para salvaguardar o seu trabalho e evitar que fosse, malévola ou inadvertidamente, descoberto por quem quer que fosse dentro ou fora da empresa – pois, também havia o receio de espionagem empresarial, mais ainda num meio tão competitivo como o da publicidade, onde os grandes clientes eram apenas as gigantes multinacionais e os seu lobbies a quem todos queriam deitar a mão –, Ismael Coelho não tinha rasto dele num único equipamento da empresa. Tudo trabalhado nos seus tablet e telemóveis pessoais e armazenados numa pen que transportava religiosamente consigo, mantendo uma cópia em casa. Nem arriscou a cloud, que havia bons cérebros informáticos por aí, incluindo na agência, ela própria paranóica com questões de segurança informática, departamento onde, volta não volta, iam alegremente rolando cabeças, por esta ou aquela razão, com ou sem razão.

No meio de tanta virtualidade, tantas aplicações para armazenamento seguro e secreto de informação, tanto acesso restrito, fechado, trancado e encriptado, cujo acesso implicava senhas, passwords, perguntas de segurança, códigos complexos, números e teclas especiais, caixa baixa e caixa alta, tanto serviço a jurar segurança máxima de inexorável acesso e inelutáveis esquemas secretos, Ismael Coelho achou mais seguro e prudente ficar-se por uma simples pen. A ela só ele e apenas ele tinha acesso. Sempre consigo. No bolso, presa à carteira dos documentos. Discreta e insuspeita. Ninguém usa pens para arquivo de coisas importantes. Todos se fiam nos poderes informáticos, na magia dos bancos de dados… Se era para jogar pelo seguro, uma pen era o mais acertado. Melhor ainda, decidiu esboçar já o layout e algumas pranchas de imagens no seu Moleskine. Isso, sim, era segurança. De tão arcaico, o papel, salvo na tragédia de um incêndio ou inundação, era o mais seguro dos suportes. Quem jamais pensaria em procurar um projeto secreto nas páginas de um caderno de notas? Escrito e desenhado à mão? Quem ainda usa caneta? Aliás, quem ainda tinha blocos de notas físicos além de Ismael? Só os mais preocupados com um certo tipo de estética e imagem saudosistas, montada sobre referências nostálgicas e construída com recurso a objetos com um certo peso afetivo, hipster, com pretensões de criativo e rétro. Colocando as coisas nestes termos e adjetivos, Ismael pensou que bem que cabia na descrição. Era indiferente, o importante é que tinha a sua campanha pensada, projetada e esboçada em papel e numa pen. Invioláveis. Inacessíveis. O melhor é que de tão insuspeitos, podia tranquilamente exibir ambos os objetos sem levantar desconfianças ou suscitar curiosidade. Claro que não o fazia. Uma pen em casa, de onde não saía, outra no bolso, sempre consigo, e ainda o bloco ‘analógico’, feito de folhas de papel, presas a uma lombada, cobertas com uma capa. Demasiado antiquado para se lhe dar importância.

Foi, por isso, com estupefação, pânico e sinais óbvios de taquicardia que Ismael descobriu no computador de Augusta Doninha o SEU projeto. Todo. Escarrapachado. Ideia, projeto, plano de execução e até os seus imberbes desenhos, que artes plásticas não eram o seu forte, nem sequer magro. Estava tudo lá. Num milésimo de milésimo de nanossegundo ainda lhe ocorreu como era ingrata a coincidência, para logo perceber que lhe tinham passado a perna e em grande. Aquilo era ‘mata leão’. Um golpe pensado, programado. Um assalto. Uma vil usurpação da sua genialidade. Era tão frustrante a sensação de injustiça que se lhe tivessem roubado um rim, a meio de uma noite de copos e tivesse dado corpo ao mito urbano de que há pessoas que acordam em banheiras de gelo após remoção de órgãos, Ismael não se tinha sentido tão furioso nem tão revoltado. Sentia ódio puro. Aquela cabra! Como? Quando? Principalmente como? Como? Instintivamente levou as mãos ao bolso mais pequeno dos jeans e a pen lá estava. Com uma fina correia que seguia para a carteira dos documentos como corrente de relógio de bolso. O seu Moleskine fechado na gaveta da sua secretária. A chave, também ela no bolso. Tudo trancado, tudo do tipo analógico, tudo a salvo. Mentira! Mentira! Nada estava a salvo. Como é que ela fora capaz?!

Sem tempo sequer para respirar fundo e pensar no que iria fazer, como fazê-lo, ou o que dizer e de que forma, Ismael já lá estava, agarrado ao pescoço da víbora, evitando a sua língua bifurcada, o seu veneno letal, que esguichava já da sua boca. Nem o confronto direto e brutal de Coelho fez Doninha recuar. Que a ideia tinha sido dela, que ele estava louco. Que tudo tinha nascido na sua mente. Que o conceito era demasiado original para ter nascido também na mente dele. Que ele estava com inveja. Ele que lhe provasse, com a data dos ficheiros quando e onde tinha os esboços daquela que dizia ser a sua ideia. Enquanto ela falava, Ismael entendia o piso escorregadio em que se movimentava e que todas as cautelas seriam poucas para evitar que o mesmo se transformasse num amplo lodaçal com poços de areias movediças. Tinha de ser célere a pensar e ainda mais a agir. Arrependia-se agora de ter apenas toda a informação naqueles dois arcaicos suportes. Pareceria, de longe, mais culpado ele, de um possível roubo do projeto de Doninha, que tinha tudo arquivado em ficheiros no computador da agência, do que ele, que tudo escondia em dispositivos que levantavam todo o tipo de suspeitas. Quem rouba, usa uma discreta pen, quem copia, toma notas num papel… Queria morrer. Não. Ismael queria que ela morresse. Tinham-lhe roubado aquele que, possivelmente, seria o melhor dos seus projetos até à data. Usurpavam a sua identidade intelectual e comprometiam o seu futuro a agência. Aliás, na área, já que coisas deste género circulam por todo o setor antes mesmo de se ter dado o último murro na mesa. Possivelmente, já haveria vídeos a correr com aquele diferendo. Como acabara por ser tão imprudente, quando tudo fez para se prevenir disto mesmo? A pior raiva não era a eu senti contra aquela miserável sem escrúpulos, mas sim a que projetava sobre si próprio. Ter-se deixado enrola e roubar daquela maneira infantil. Como acreditou estar protegido quando, afinal, tudo deixa rasto, virtual ou outro. Provavelmente trabalhar diretamente na pen, deixa algum tipo de memória ou sombra no computador, e isso pode ser recuperado ou consultado…

Lembrou-se de um episódio que podia explicar como é que aquela mentecapta tinha conseguido ficar na posse do seu melhor projeto, da sua mais brilhante ideia, daquela que poderia ser o passaporte de Ismael para outro patamar, para outro nível naquele jogo de pessoas importantes numa agência de publicidade. Um dia, ao regressar dos Recursos Humanos, Ismael viu Augusta Doninha a sair de uma porta compondo, em aflição, ainda a saia e o cabelo, seguida de perto pelo diretor de IT da agência. O caso foi comentado durante uns dias, mas ninguém mais ligou, até porque Augusta Doninha não era uma ameaça. Em nenhum aspeto. Não era sequer gira, sedutora ou atraente. Era apenas uma pessoa disponível e, percebia-o agora, combativa, que jogava todas as suas armas para singrar. O certo é que podia ter muita gente presa, receosos de que ela falasse, ou… Podia cirurgicamente utilizar todos os seus contactos ‘mais diretos’ para obter informação precioso, como era o caso. Porque raio teria logo ido ao seu projeto? Talvez se falasse bem de Ismael e da sua criatividade nos corredores da agência e ela o tivesse como bitola de qualidade e genialidade. O certo é que estava numa posição difícil. A dela também era constrangedora e embaraçosa, na medida em que, e agora que estava um pouco mais calmo, Ismael compreendia que seria mais fácil aceitarem aquela ideia como sendo sua do que da boçal da Augusta.

By Robert Doisneau

Impunha-se um árbitro. Um juiz isento. Alguém que determinasse de que lado estava a razão. De quem era a ideia. Ambos concordaram, já que, de outra forma, o impasse estava para ficar, com ambos a atestarem a pés juntos a autoria exclusiva do projeto. Doninha confiava na lógica. Qualquer mente analítica perceberia que só agindo de má fé se guarda um projeto da empresa em suportes pessoais, alheios à empresa. Teria ele medo? Medo do quê? Que descobrissem que não é ele quem trabalha, que alguém o faz por ele fora da agência? Talvez ele tivesse por hábito roubar os projetos dos colegas para depois elaborar o seu a partir daí, saindo em vantagem sobre todo. Augusta Doninha estava confiante de que conseguiria imprimis muitas dúvidas na mente do juiz e que havia falhas crassas e grosseiras na defesa e argumentação de Ismael. Este, por seu turno, queria acreditar que a sua história na empresa, ideias anteriores e o reconhecimento da sua inteligência e criatividade, já outras vezes elogiadas, falassem em sua defesa.

By Old Chum

Levaram o caso à presença do único decisor que valia a pena confrontar. Duarte Gato. Ninguém sabe o que se passou naquele gabinete, onde os três ficaram um bom tempo à porta fechada. O que todos garantem é que choveram gafanhotos nesse dia, voltou a peste que era negra, houve gânglios inflamados e odor a morte em todos os pisos da agência. De lá, do gabinete de Duartem saíram vivos, mas derrotados e esmagados dois desempregados de que jamais se voltou a ouvir falar. Foi com um misto de curiosidade, tristeza, esperança e ódio que Ismael, um ano depois, viu a sua campanha – ideia, conceito, plano de execução… tudo, tudo escarrapachado – na televisão, na rádio, nas revistas, nos outdoors e basicamente em todo o lado. Olhou instintivamente para o telemóvel. Seguramente surgiria uma mensagem, um telefonema, uma segunda oportunidade, uma quantia significativa na sua conta bancária. Afinal, era ele o autor daquela campanha. Seria um trabalho da agência se ele lá se mantivesse, mas tendo sido despedido, era ele o autor e a agência mero usurpador, ou ladrão da sua propriedade intelectual. Claro que podiam avançar com a ‘verdade’ de Augusta. Se a agência assumisse que a ideia tinha sido da Augusta, então, seria um projeto da agência, pois que ela tinha tudo no computador da empresa e tudo tinha sido feito em horário laboral. Era legitimamente defensável, ainda que sendo mentira. Mais tarde, num certame internacional, aquando da entrega do prémio para melhor campanha, Ismael vê Duarte subir ao palco e reclamar publicamente a autoria da ideia na totalidade, sem qualquer pudor ou embaraço por assumir como sua uma ideia que não era sua e por uma campanha executada por tanta gente. Era escusado. Usurpador. Apropriar-se assim do alheio.

By Stanley Kubrick

Ismael nunca mais usou pens, nem blocos de notas de papel, nem qualquer outro suporte. Há muito que tudo ficava apenas e em exclusivo na sua cabeça, incluindo um livro que andava a escrever há cerca um ano. Já tinha quase 500 páginas.

Moral da história:

Trabalhar é uma treta, quer se seja genial ou um mero estafermo.

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