– Esteves! Esteves, podes chegar aqui?

Venâncio Esteves olhou na direção de Claudêncio com enfado. Desde que Manco – o muito adequado apelido de Claudêncio – tinha sido promovido a gestor financeiro de todo o grupo internacional onde ambos trabalhavam, que circulava pelo seu exíguo universo como se fosse o rei da selva, o que, muito obviamente, não era. Intimidava os mais fracos, coagia os médio-fortes e desafiava mesmo os mais fortes. Por mais fortes entenda-se tanto os mais musculados – alguns mesmo fabricados em ginásio e alimentados a suplementos de origem suspeita, adquiridos pela internet – como os mais inteligentes. Paragem obrigatória, para um merecido e honesto reparo: não era necessário saber identificar e distinguir as cores para ser mais arguto do que o pobre coitado do Claudêncio Manco. Desprovido ainda de humildade e daquilo que comummente se designa por senso comum ou noção da realidade, Claudêncio era o real tolo.

Claro que esta informação levanta questões várias e todas elas pertinentes, desde logo, como é que com tão diminuta capacidade intelectual tinha acabo de ser promovido a gestor financeiro do que quer que fosse, mais ainda de um relativamente simpático número de empresas com extensões internacionais? Diga-se, sobre essa matéria, que dentro da estratégia de criatividade financeira do grupo, com conexões diversas a mundos empresariais demasiado ‘complexos’ para serem explicados, menos ainda compreendidos, Claudêncio Manco era a única pessoa elegível para o cargo. Sem capacidade interpretativa ou pensamento crítico, não surgem questões. Não havendo questões, não há necessidade de esclarecimentos, logo, basta alguém que saiba assinar o seu nome nos vários documentos que vão surgindo, entre o café matinal e a hora de almoço, que há tarde havia muitos e bons ‘engenheiros’ financeiros para ‘arquitetar’ as estruturas necessárias a balancetes sem mácula, fazendo Venâncio parte dessa obscura elite.

Assim, aquilo que mais encanitava Venâncio não era a promoção nem o recém-adquirido cargo de Manco. Era até espectável, desde o momento em que o anterior ocupante do lugar se viu forçado a emigrar para parte incerta, sendo a Micronésia um dos destinos colocados a circular entredentes. Ele que enchesse o peito de ar, ou hélio, com a sua mesquinha arrogância. Aquilo que exasperava Venâncio Esteves era a desnecessária necessidade, passe a cacofonia, que o idiota tinha de se pavonear junto de toda a gente, sem se questionar por que razão tinha sido abençoado com aquela promoção relâmpago, ao cabo apenas de uma semana, tendo entrado para um lugar que estava pouco acima de paquete. Claudêncio, naquela ingenuidade própria dos descerebrados, aceitava que tudo se devia ao seu carisma, às suas competências sociais, à capacidade de entreter uma audiência e, claro, aos seus contactos privilegiados, os quais, pomposamente, designava de apêndices sociais. O que ele não via, e que jamais conseguiria compreender, é que a audiência ficava presa e animada com a sua total inadequação ao universo, leis da física incluídas, que a todo o instante o revelava como uma peça extra do puzzle, sem lugar ou pertença. Ele era a limalha que se espeta bem sob a pele, a cor refletora que magoa a vista, o arrepelo, a aberração, o momento de distração inesperado, mas nem por isso de bom gosto, que nos faz parar e obriga a observar, incrédulos, quase repugnados. Ele era tudo isso e tudo aqueloutro que se torna indizível e provoca aquela vergonha alheia, ou alheira, que no caso de Claudêncio são gordurosos sinónimos.

Venâncio lá se arrastou até ao gabinete do ‘chefe’, apenas para perceber que a urgência do chamamento se devia ao desejo de Claudêncio em partilhar um vídeo com gatinhos, os quais adorava mais do que a vida, mas um pouco menos do que o seu novo cargo.

– Olha para isto Venâncio. Não é demais, pá?! Veja bem a inteligência do animal! Como é que ele percebeu onde tinham escondido a comida?! Ele há coisas sem explicação, hã?!

– Tão verdade! Ele há coisas que não se explicam. E por falar em coisas do outro mundo, vou precisar que assines os documentos daquela transação mineira na África do Sul.

– Certo, mas hoje não consigo. Tenho de passar em revista as redes sociais, umas capas de jornais económicos, sabes como gosto de estar informado, e tenho um daqueles almoços ajantarados com uns contactos do big boss. Pode ser amanhã?

– Claro. Deixo-te os documentos ainda hoje na tua secretária e amanhã de manhã, antes dos vídeos de gatinhos, é só assinares onde encontrares cruzes. Recordo-te apenas que cruzes são Xis e não Tês, ok?

Venâncio já se dirigia para a porta, esgotado que estava o tempo diário que conseguia dispensar a coisas ‘fofas’, e porque um dos seus maiores receios era que se transformasse numa forçada e involuntária personagem de uma versão ainda mais parva e sem piada do ‘The Office’. Mas Claudência, afinal, estava com mais tempo do que o próprio admitia e pediu-lhe que se sentasse.

By Gabriel T Toro

– Preciso de ter uma conversa séria contigo.

– Tem mesmo de ser agora? Tenho um processo de fusão em mãos que se está a revelar mais complexo do que imaginava…

– Fusão? Isto são lá horas de chá, homem! Tem mesmo de ser agora, sim. Puxa essa cadeira e senta-te, vá!

O que se seguiu foi patético, mas Venâncio lá conseguiu manter o maxilar cerrado, não obstante a força insistente para abrir a boca de incredulidade.

– Olha, sinto que ficaste magoado por não teres sido tu a conseguir esta minha brutal promoção, mas compreende que, um dia, quando eu chegar a dono disto tudo, serás o próximo na linha. Disso me assegurarei. És um excelente profissional, e pessoa de confiança. Só ouço falar bem de ti e dos teus feitos, mas cada um deve reconhecer o seu lugar na ‘cadeira’ alimentar e a ti, faltam-te alguns kilts, como bem deves saber.

– Não quererás dizer skills?

– Quero dizer exatamente o que digo. Não me interrompas para não quebrar o raciocínio.

– Desculpa, Claudêncio. Quebrar-te o raciocínio é coisa que não ousaria.

– Ótimo! Como estava a dizer… Como dizia… Vês, agora perdi-me.

– Íamos nos… kilts.

– Ah, isso. Obrigada. Pois. Tu não os tens, ou não os tens todos, mas vou ensinar-te tudo o que sei.

– Não sei se estarei à altura, Claudêncio.

– Vais estar. Quando eu terminar, serás o rei desta selva.

– Sabes que mais? Já me sinto mais poderoso só desta pequena conversa. Continuamos amanhã?

– Eu não te disse, Esteves? Eu opero milagres. Não é à toa que me chamam Leão.

– Não, o que te chamamos é peão. Mais concretamente peão de brega, mas leão também te assenta bem, sim.

– O quê?

– Amanhã continuamos. Não vais querer que eu fique com o teu lugar já amanhã, certo?

– Ahahaha. Tens piada.

– Não. Tenho razão.

– És demais! Sim, vai lá para a tua camomila e amanhã continuamos o sofá.

– Sofá?

– Também não sabes inglês? Couch quer dizer sofá e é também a pessoa em quem se pode confiar para melhorar competências. Como é um lugar confortável…

– Percebo, sempre achei que seria coach, mas, de facto, línguas não são a minha praia. Eu sou mais números.

Venâncio Esteves sentia-se esgotado. Aquilo era demasiado cansativo e tóxico para o seu cérebro analítico. Tinha de sair dali, já. Virou costas ao idiota-mor e saiu estugando o passo. Necessitava de ar fresco urgentemente. Ou isso ou um cigarro, ou os dois em simultâneo. Eventualmente, também uma infusão. Fazendo uso do pulmão, no pátio interior, para onde dava a esplanada da cafetaria da empresa, Venâncio dá conta de uma cena lamentável. Claudêncio pavoneando-se entre um grupo de funcionárias jovens, algumas estagiárias, onde não faltavam toques menos próprios nos ombros e cinturas das miúdas – sim, não passavam de miúdas. Com tolerância zero para este tipo de insinuações sexuais, ainda que breves, Venâncio Esteves considerou que estava na hora de procurar novo totó para o necessário cargo de Claudêncio.

Logo na manhã seguinte, entusiasmado no seu papel de mentor de Venâncio Esteves, Claudêncio Manco chama-o para mais uma das suas preciosas lições de saber e estar, com vista à futura promoção de Esteves, logo que ele próprio subisse ao Olímpo dos decisores, o que, pelas suas contas, poderia demorar entre dois e vinte meses. Isto muito por alto, que os seus cálculos ocorriam-lhe naturalmente, vindos não da aritmética estatística, mas da sua pura intuição. Tinha nascido para aquilo, o que é que haveria de fazer? Aceitar a sua genialidade, pois claro. Abraçava-a todos os dias como uma prodigiosa inevitabilidade. Venâncio estava particularmente bem-disposto, nem sabia muito bem porquê, pelo que sentia total disponibilidade para ser um discente aplicado e bem-comportado. Era sexta-feira, mais valia que aproveitasse o espetáculo. Enquanto indicava ao seu, agora, predileto, subordinado a cadeira onde se deveria sentar, com um mero gesto teatral, Manco dava já início à conversa.

– Para veres como penso em ti e sou bom chefe, preparei-te uma ‘fusãozinha’ de tília e tudo! O que me dizes a isto? Prova! Tenho ótima mão para a cozinha, não apenas para as finanças, o que é que pensas!? Prova, prova!

Muito para lá do incrédulo, mas não chegado ainda ao divertido, Venâncio, um homem de café e rigor, percebeu que não havia bom-humor matinal que o fizesse suportar aquele número. Entusiasmado como um colegial que experimenta a sua primeira transgressão, Manco parecia ligado à corrente.

– Serás o meu protegido. De hoje em diante, almoçarás sempre comigo, para aprenderes também alguma etiqueta. Tenho-te observado, não me leves a mal – tudo isto é para o teu bem –, mas percebe-se que não tiveste ‘terço de ouro’. Podemos sempre trazer-te um de Fátima, terra natal dos melhores do mundo, um dia que lá vamos de rastos, como ninjas acólicos, mas até lá, há que ir aprendendo. Aprendendo sempre, compreendes? Sempre, sempre. Uma pessoa que não aprende é como a galinha da vizinha, sempre mais gorda e desinteressante. Um dia acorda e tem verdete entre os dentes…

Enquanto ia debitando coisas que pareciam ditadas por um mentecapto, Claudêncio fazia-as acompanhar de eloquentes e dramáticas gesticulações, sem, na verdade, nunca se desviar do computador, em cujo monitor Esteves acabou por perceber haver uma folha A4 colada. Não quis acreditar à primeira, mas não havia nem melhor explicação nem qualquer outra alternativa, o tonto tinha tudo aquilo escrito numa folha, para garantir que dizia, de verdade, tudo aquilo que dizia. Uma cábula cheia de fórmulas erradas, associações idiotas, aforismos estapafúrdios. Não era possível que fosse tão idiota assim. Esteves estava quase a acreditar que o tipo só podia ser mais esperto e ter algum interesse oculto em fazer-se passar por básico. Talvez devesse ter mais cuidado com aquele gajo. Apenas idiota, talvez fosse uma avaliação demasiado idiota da sua parte. Cautela e caldos de galinha… Porra! Aquilo era contagioso. Tinha de sair dali, principalmente quando percebeu que Manco se preparava para trocar os sapatos por uns chinelos de quarto e o blazer por um roupão. Não se tinha enganado, o tipo era um imbecil. Apenas nunca tinha visto um daquela dimensão e natureza.

– Sou um homem requintado e com absoluta necessidade de conforto. Amanhã, tu e apenas tu, também podes trazer o teu roupão para o escritório, Esteves. Já assinei uma nota nesse sentido. Lá mais para a frente, dependendo do teu desempenho, quem sabe não poderás também ter aqui uns chinelos bem quentinhos. Não vivo sem os meus, além de que aliviam as dores no meu joanete… Queres ver? Tem crescido imenso!

Enojado com tudo aquilo e sem tempo para tanto disparate, Esteves decidiu que abreviaria desde já o assunto e evitaria todo o mestrado que Manco planeava para si. O que poderia ter piada e servir para o guião de um filme ou série de categoria duvidosas, era demasiado penoso para Venâncio, ao ponto de não querer conhecer a sinopse, nem saber quais as cenas seguintes.

– Sabes, Manco. Acho que não preciso dos teus ensinamentos, nem aulas privadas, nem roupões de malha polar, menos ainda de ‘fusões de camomila’.

– Tília, pá. Estás a ver?! Precisas de toda uma educação, pois se nem as plantas consegues distinguir.

– Esquece isso. A verdade é que algo cá dentro me diz que sou mais inteligente do que tu. Tão mais inteligente que entendo como esse teu cargo não passa de ratoeira para idiotas como tu.

– Queres medir forças comigo, Esteves, é isso? Traz a balança e logo veremos? Vou já informando que devo andar perto dos 100 quilos, já tu… Não pensei que a tua inveja e rancor chegassem a tanto. Achei que éramos ‘calmas’ gémeas. Tu no género calma hiperativa e eu num estilo calma mais pacífica. Mas se queres ir por aí, vamos lá. Vamos ver quem é o mais forte, sendo que sou obviamente eu, caso contrário, estarias tu a ocupar este mega-gabinete com roupeiro e wc inclusos, não crês?

– Um cargo não é o decalque de uma reconhecida superioridade intelectual, moral ou técnica. Na verdade, na quase totalidade, reflete exatamente o contrário, sendo o teu um caso exemplar.

Antes de sair do gabinete do muito surpreendido Claudêncio Manco, que mesmo com chinelos coxeava um pouco devido ao maldito joanete, Esteves solicitou:

– Já agora, antes de esgrimirmos competências, preciso que me assines esta folha em branco para enviar para Estocolmo, tal como me solicitaram.

– Sim, claro!

Ao concelho de administração, Claudêncio Manco jurou que quase nunca assinava folhas escritas, eram sempre completamente brancas, pelo que o documento com a sua assinatura em que dizia gostar de assediar estagiárias durante a hora de almoço, e que tinha ido parar à imprensa, só podia ser falso.

 

Moral da história:

Nunca assine papelada que tenha de seguir para Estocolmo, ou qualquer outra cidade sueca. Outra coisa, avisámos no título que isto era desinteressante.

By Achraf Baznani

Partilhar