Licínio Lenhador andava macambúzio. Todos o conheciam por Licas – sendo que por todos se devem contabilizar o vizinho do terceiro frente e o barbeiro da rua, que, de resto, se não fosse esse diminutivo, lhe arranjaria pronta alcunha, pois tinha quase 200 anos e todos lhe pareciam ainda gaiatos. Nem o Cajó do café Brisa Silvestre, um conhecimento de longa data, ia nesses atrevimentos, já que Licínio não era uma criatura popular, por vezes, mesmo, nem muito humana –, mas como dizíamos lá atrás, Licínio andava pesaroso. Trazia no peito sentimentos obscuros e tristonhos e na mente preocupações que raramente experimentava, pelo que, tudo somado, sentia-se inquieto. Tinha de se deixar de tudo aquilo. Afinal, que culpa tinha ele tido? Como poderia ter adivinhado tal desfecho? As coisas são como são e cada um tem o seu caminho a seguir. O dela tinha sido aquele e ele tinha era de se conformar e atalhar novo rumo, que o que passou está decidido, enquanto tudo há para fazer com o futuro. Só aquela meia dúzia de frases de incentivo e automotivacionais e já Licínio se sentia melhor. Mais gente. Mais apto e capaz. Inclusivamente para mandar abaixo aquela sandes de torresmos, que a nova empregada do Cajó acabava de lhe servir com a mini da tarde.

– Homem perturbado, aquele ali do canto, pai. Que pavor! Tem mesmo olhos de psicopata. Não volto a ir à mesa dele, estou já a avisar. Por isso é que nunca te venho ajudar. Já viste esta fauna?

– Lá vens tu, Suzete, com as tuas histórias e desculpas para não colaborares mais no café. Qual psicopata qual quê! Aquilo são olheiras, que o pobre mal tem dormido. Já vai na terceira viuvez. Tu consegues imaginar tal coisa? Está consumido pelo desgosto.

– Pai, aquilo parece-me mais fome do que desgosto. Olha para ele, com aquele bolo alimentar todo exposto, que nem esgoto a céu aberto, deve ser assim que consome as mulheres. Arhhh. Acho que vou vomitar.

– Vai, vai e já que vais estar com a mão na massa, salvo seja, aproveita para desinfetar a casa de banho. Quando voltares era bom mostrares outra atitude, ouviste?

Cajó murmura para dentro. Não entendia como, de duas pessoas tão simples e humildes, como ele e a sua Zélia, tinha brotado tal espavento. Bolo alimentar! As coisas que aquela miúda dizia! Então, um pobre homem cansado da vida e estourado do trabalho tem de ter etiqueta à mesa do café de sempre, onde finalmente se senta para repor alguma energia e sanidade mental? Aquilo eram coisas de telenovela. Bolo alimentar! Já não se chama comida? Pobre homem e rái’s-partam-a-miúda, que nunca mais vem, para ir deitando um olho ao fogareiro, que estava quase na hora das entremeadas e as brasas ainda não estavam no ponto.

Suzete voltou, banho tomado, roupa gira e escudada por uma nuvem perfumada. Não ia ficar, avisou. Um festival de cinema documental. Amigos à espera. De forma telegráfica, pouco mais disse do que isso. Saiu mesmo em passo de corrida, que o fumo do fogareiro podia lançar irremediável feitiço ao seu charme e anular a frescura do seu cabelo. Pelo menos, foi algo do género que Cajó reteve, sem tempo de reação, nem palavras que conseguissem acompanhar o que lhe ia no cérebro. Ao mesmo tempo, Suzete divertia-o. Toda aquela sofisticação e pelo na venta eram dela e só dela. Nascidos e criados no seu jeito independente, no seu modo espevitado. Desde sempre segura e confiante. Inteligente e afoita como poucas. Não havia muito quem lhe fizesse frente. Tinha sempre resposta pronta e acertada. Muito racional, a miúda. No fundo, um pai só se pode orgulhar de um feito desses. Quantos pais não instigam os filhos a superarem-se, e alimentam a sua autoestima com dinheiro para saberes extracurriculares, aventuras no estrangeiro, outros mundos, e conhecimentos nos melhores colégios, com custos que nem ele poderia calcular, para conseguirem nem um quarto da inteligência, diligência, raciocínio crítico, rapidez de pensamento e competências da sua Suzete? Era uma força da Natureza e de uma frescura desconcertante. Ao pai levava-o com ligeireza, contrariando quase tudo o que ele inicialmente planeava. Cajó sabia-o, mas também sabia reconhecer que as ideias dela e os seus argumentos eram racionais e lógicos e derrotavam por KO os habituais ‘faz o que eu te digo porque sim’, ou ‘porque eu disse’.

– Temos de saber estar errados, senão estaremos errados duas vezes.

Esta era a frase que mais vezes assomava o cérebro de Cajó, dando-lhe justificações para a sua brandura e razões para as suas cedências, perante as vontades de Suzete. A bem da verdade, só o que ela resolvia de contabilidade, informática, marketing, publicidade, redes sociais, festas temáticas que enchiam o café à noite, e vendas online das criações pasteleiras da mãe, já lhe poupavam fortunas num sem fim de serviços que se podia dar ao luxo de dispensar. Ela que fosse viver a vida dela, que havia tempo para ter chatices. Por outro lado, que mal lhe fazia mais uma hora ali no café? Só e apenas isso já o aliviava com o fluxo de clientes de final do dia, os martinis e aperitivos, tapas e entremeadas…

Licínio chamava-o.

– Então, temos empregada nova?

– Como?

– A miúda, que acaba de sair. É a nova empregada?

– Ah. Não. Antes fosse, mas não há maneira da catraia gostar disto. Computadores e telemóveis. Ponha-lhe um nas mãos e faz tudo acontecer, mas aqui nem uma bica decente sabe tirar.

– É familiar?

Cajó começava a responder coisas que não correspondiam ao que desejava partilhar com Licínio. O seu tom de voz foi baixando como se assim, sendo pouco ou nada audível, a verdade não fosse assimilada pelo seu interlocutor. Mas Licínio estava apenas pesaroso, não surdo.

– É minha filha, sim. Quer mais alguma coisa? Um café?

– Sim. Um café, por favor.

By Kyle Wagner

‘Por favor’?! Também este se estava a passar por fino? Então que era feito do bolo alimentar que ainda há pouco exibia, quem nem esgoto a céu aberto, se bem se recordava? Cajó senti empatia pelo tipo, mas lá longe, enquanto cliente. A essa distância compreendia todas as circunstâncias, idiossincrasias, atitudes e ‘azares’. Estar cá a fazer cálculos afetivos para cima da sua filha já lhe parecia abusivo e despropositado. Nem era pela idade. Nem pelo bolo alimentar, a bem da verdade, se bem que Suzete não deixava de ter razão. Há mínimos olímpicos a respeitar em sociedade, caso contrário, somos apenas animais. Nem pelas olheiras. Era pelos comentários. Afinal, três mulheres que se finam na grossura daqueles braços vigorosos. Lembrou-se das palavras da filha, que as teria consumido…

Disparates. A primeira mulher morreu durante o parto, quando eram ambos demasiados jovens para aquilo não transtornar a cabeça de um homem. A segunda atirou-se da janela quando Licínio nem sequer estava no país. Apenas a morte da terceira estava envolta em mais polémica, ou mistério. Uma overdose – ou de heroína ou aspirina, nunca se apurou bem o nome da substância, mas acabava em ‘ina’ –, tudo muito abafado e a vizinhança a somar viúvas com os dedos. Por isso lhe chamavam o Noves-Fora-Nada, não obstante serem apenas e tão-somente três. Ainda. Este simples ‘ainda’ fê-lo estremecer. Andaria o tipo a pensar já na quarta sucessora de toda aquela desgraça?

Com a bica na mão, olhando Licínio ao longe, num belo contraluz emoldurado pelo largo envidraçado da parede que dava para a esplanada, aquele perfil enterneceu-o. Era um homem sofrido e amargurado a quem o amor parecia estar interdito. Sempre que se cruzava com o amor ele transformava-se em morte. Pobre diabo! E ainda as más-línguas, quando, na verdade, nem recorrendo à mais poética e sensível imaginação se poderia ficar perto de tudo aquilo que lhe devia habitar a alma. Aquele homem, por dentro, era um queijo suíço, um somatório de vazios, fins de linha e becos sem saída, com buracos a ocuparem o lugar onde outrora habitavam a esperança, os desejos, o amor, as possibilidades, a alegria, o futuro. Coitado, coitado!

Aquilo tudo, num filme, sabemos bem o que pareceria. No final, mesmo antes do The End, descobrir-se-ia que era mesmo o estafermo quem matava as mulheres, com telecomandos emocionais e macabros estratagemas psicológicos. Cajó não conseguiu avançar mais na história. Não necessariamente pelo terror que esta lhe causava, mas porque igual horror o consumia ao perceber quão igual a sua maledicência era da das cuscas do bairro, que tanto criticava. Felizmente não teve de voltar a pensar no assunto. Durante quase um ano, Licínio Lenhador não foi visto na vizinhança. Não sabiam bem o que fazia, apenas que, de quando em vez, a profissão o enviava para longe. Parece que havia a possibilidade de intercâmbios de funcionários entre os vários países onde a multinacional em que trabalhava estava representada. Para um triplo viúvo, esse tipo de convites deviam ser mais do que bem-vindos. Longe, sempre se pensa menos, ou pensa-se diferente.

– És muito ingénuo, pai, mas talvez, desta vez, e muito excecionalmente desta vez, tenhas razão. A realidade é sempre estranha. Tem mais carne e vísceras do que pele e maquilhagem. Vamos conceder-lhe o benefício da incerteza, em nome da tua bondade.

Cajó sorriu para dentro. Era uma boa miúda. A melhor do mundo. Não se tinham saído mal, não senhor! Ia sentir muitas saudades dela e das suas tiradas inteligentes. Mas não estaria assim tão longe. Um doutoramento em Paris, um namorado que Cajó e Zélia ainda não conheciam. Felizmente português. Felizmente também ele apenas de passagem. Em breve o conheceriam. Cajó e Zélia estavam decididos a aceitar os entusiásticos e insistentes convites de Suzete e, dentro de uma semana, em vez do rotineiro e sensaborão Algarve, rumariam para uma prolongada estada em Paris. A vida era simpática. Lá isso!

 

Cajó estranhou o atraso de Suzete, sempre tão pontual, mas estava demasiado excitado com a chegada a Paris e com o luxo do hotel para se preocupar demasiado. Decidiram aguardar a filha, ou um telefonema, no bar do hotel.

– Aproveitamos e comemos qualquer coisa. Uns amuse-bouche. Não tens fome? Estou tonto de fome.

– Carlos Jorge, tu és tonto e estás sempre com fome.

Zélia também estava feliz, que um ‘Carlos Jorge’ remete inequivocamente para os anos de namoro e é coisa para colocar sorrisos no rosto de Cajó.

O telefone de Cajó toca quando já estavam repostos os níveis de açúcar no sangue. Era Suzete.

– Alô, mon bébé!

Não era Suzete. O rosto de Cajó passa a sério, incrédulo e, finalmente, a um esgar doloroso. Era do hospital. Um envenenamento. Uma toxina mortal. Suzete encontrava-se entre a vida e a morte.

À chegada ao hospital cruzam-se com um rosto familiar. Cajó não percebe de onde conhece o homem. Decide não dar atenção ao facto, mas o homem avança para eles. Abre ligeiramente os braços num misto de cumprimento e de incompreensão. Também ele parece apatetado. Zélia dá um pequeno grito e começa a esmurrar o peito do homem, apenas porque não lhe chega à cara. Cajó recebe finalmente do cérebro a informação necessária. Os olhos esbugalhados, a garganta presa e no peito uma dor incomensurável. Julga que vai morrer. O coração dispara e sai-lhe do corpo no mesmo instante em que diz:

– Assassino!

Mais tarde, as vizinhas contarão a história de como Suzete foi envenenada por um crepe – sim como crepe Suzete, que o destino é um folgazão –, que Licas era, de facto, um azarado de primeira. Tão azarado que era difícil acreditar que fosse apenas azarado. Que não era um assassino. Relatarão como o chef do restaurante onde Suzete apanhou uma bactéria mortal foi preso e fechado o restaurante por motivos de salubridade e saúde pública. Ficarão na dúvida, as vizinhas, sobre se Suzete sobreviveu ao envenenamento, na medida em que nunca mais viram vivalma daquela família. Dirão, à boca pequena, grande e de médio tamanho, que o azar também se fabrica e que o pobre Cajó morreu em vão de um ataque cardíaco. Há de haver quem refira um breve caso de Zélia com Licas, que terá sido essa a verdadeira razão para o enfarte do miocárdio de Cajó e quem acredite que vivem todos felizes e que tudo não passou de um golpe para ficarem com o dinheiro do seguro de vida de Cajó, o que seria estranho, já que há também quem jure que Cajó está vivo e a cuidar dos netos na Normandia ao lado de Zélia, Suzete e o, agora, sortudo Licínio. O que mais lamentarão, porém, será o fecho do Brisa Silvestre, onde se tomava a melhor bica do bairro.

Moral da história:

Não sabemos bem o que dizer a este respeito, mas podemos acrescentar alguns clássicos, como ‘Cada um sabe de si’, ou ‘Se Pedro diz mal de Paulo ficamos a saber mais sobre o Luís do que da Isabel’ (é mais ou menos assim). Ah, e que parece que Licínio gostava mesmo da Suzete, ou de Zélia, mas não temos certezas, é só mesmo para baralhar e voltar a dar.

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