Demorou a perceber. Demorou, primeiro, a aperceber-se. A dar conta do fenómeno. A tomar consciência do facto, pois disso se tratava, de um facto. Durante imenso tempo, esteve cego. Não via. Não viu. Não deu conta. Tudo era um pouco novo e de tal forma bizarro que simplesmente não lhe ocorreu. Quem poderia imaginar tal coisa?! Demorou, depois, outro tanto, senão mesmo mais tempo a perceber. A compreender que era mesmo verdade. A conseguir dizê-lo para si próprio e até, mais tarde, em voz alta. Ninguém ouviu. Ninguém quis ouvir. Como ouvi-lo, se também eles não viam? Como ouvir a sua voz se não conseguiam ver o seu rosto? Como poderiam os outros ouvir um som sem corpo? Como alcançar essa presença sonora, se era um corpo invisível? Sim, o seu corpo era desprovido de massa. De forma. De vida, aos olhos dos outros. Não era substância. Não era substantivo. Era um não corpo. Era invisível.
No início, achou, com alguma gravidade, que iria enlouquecer. Enlouqueceu um pouco, a bem da verdade, se é que esta tem algum valor para um homem invisível. A verdade, e muitos outros valores, de extrema preciosidade para o comum dos mortais, tem valor zero para o homem invisível. Porque o homem invisível vive na mentira. Não naquela mentira que se ancora em aspetos morais ou éticos. Vive na mais pura das mentiras ou, bem melhor (ou pior), vive na mentira pura. A mentira que nega a sua própria existência. O homem transparente, sem massa corporal, sem visibilidade, é uma negação de si mesmo. E não apenas aos olhos cegos dos outros, incapazes de o ver, mas aos seus próprios olhos. Pior do que tudo, à sua própria autoconsciência. Como acreditar na sua existência se não existe na relação com o outro? No diálogo dos outros e com os outros? Compreendeu que dependemos apenas e tão somente dos outros para podermos, com propriedade, acharmos e dizermos que existimos. Serve de alguma coisa existirmos apenas para nós próprios? O homem invisível vive apenas no seu cérebro. É tão-somente uma projeção mental de si próprio. Uma espécie de ‘autofabulação’. O sonho de uma mente. Um projeto. Uma ideia. Um vago nada.
Quando todos os seus receios, medos e loucuras deixaram assentar a poeira da inconcebibilidade, quando absorveram a terrível verdade de que se tinha tornado transparente para o mundo, chorou. Lembra-se bem. Chorou livre e abertamente. Gritou. Esperneou. Babou. Esbracejou. Pontapeou. Vociferou. Maldissesse. Quis morrer. Morreu um pouco. Na verdade, morreu bastante. Mas não morreu tudo. Finalmente, após a primeira fase de negação… Não era bem negação, era mais uma estúpida incredulidade, num grau que enlouquece. Que dá vontade de morrer de vez. Nesse momento, de aceitação, por assim dizer – na medida exata em que alguém consegue aceitar que se tornou invisível –, naquele nanossegundo em que se conformou com a sua inexistência, sentiu uma estranha liberdade. Sim, liberdade. Real. Pura. Total. Estava livre de tudo. Livre, ponto. O homem invisível é o homem impossível. Logo, livre. Solto. Desagarrado. Sem amarras ou grilhões. Percebeu a bênção. Aceitou o seu dom. Agradeceu a Deus. Era um dos eleitos, seguramente. Podia deambular, acreditar no que quisesse, dedicar-se a qualquer coisa e ao seu contrário. Podia mentir… Não, mentir não podia. Apenas se mente na relação com o outro. Apenas na dinâmica da dualidade a mentira faz sentido. A mentira não existe em si própria e mentir a si próprio não seria muito inteligente. Só se tinha a si mesmo, mais valia que se respeitasse o suficiente. Tomou essa como única regra necessária. Não auto-mentir. Sim, chamou-lhe assim mesmo.
Claro que teve igualmente de aceitar todas as contingências da liberdade pura. A solidão é pesada. Não ter com quem falar facilmente enlouquece, pelo que adotou a prática diária de falar consigo mesmo. Era quase uma religião, ou adição. Fazia parte da sua disciplina quotidiana, tal como uma ida ao ginásio. Começava com um sonoro “Bom dia” e terminava religiosamente com um “Até amanhã. Dorme bem!” Claro que não dormia muito bem. O homem invisível não paga renda, é certo, como cobrar mensalidades ao homem invisível? O homem transparente não paga qualquer tipo de renda ou imposto porque quem é transparente não pode ter casa, carro, posses, documentos… É um não-ser. Inicialmente, ainda fazia, maquinalmente, o caminho de casa. Daquela que tinha sido sua. Outro homem lá entrava, mas reconhecia a mulher. Tinha sido sua, um dia. Quer dizer, mais do que um dia… Ria consigo próprio. “Já brincas com as palavras, pá?” Sim, ele dizia “pá” e já ninguém o corrigia. Pá, pá pá, gritava por vezes. Deixou de fazer aquele caminho. O de casa, quer dizer. Passou a fazer outros. Fez todos. Andava como uma sombra furtiva por toda a cidade. Nessas longas e deslumbrantes deambulações, deu por si a estudar com rigores científicos a matéria humana, tão mesquinha e patética nas suas rotinas. Conseguia antever os passos de algumas pessoas que se dedicava a seguir. Bastavam dois dias e os restantes repetiam-se com a exatidão de um relógio suíço, ou apenas um bom relógio. Mesmo os reformados eram de uma previsibilidade estúpida. O dia todo pela frente e acabavam a repetir praticamente os mesmos passos. Todos os dias, o ano todo.
Foi com uma felicidade há muito esquecida que percebeu outra coisa: os animais viam-no. Ou seria que apenas o sentiam? O homem invisível não deixa de ser uma presença, um espectro, pelo que, um animal com sentidos mais apurados e menos constrangimentos culturais, seria capaz de dar por si. Achou, porém, que seria algo mais do que isso, pois a intensidade com que era olhado, olhos nos olhos, desmentia a mera suposição da sua presença. Implicava alguma objetividade, alguma consistência física. Adotou, sem reservas todos os cães e gatos que o queriam acompanhar, o que acabou por ser útil nas noites mais frias de inverno. As cidades são frias em todos os aspetos, mas as cidades no inverno provocam dor. Aqueciam-se mutuamente. As sensações físicas, bem como as necessidades fisiológicas, eram, na maioria das vezes e por cúmulo de razões, as únicas certezas cósmicas da sua existência. Eram o seu “penso, logo existo”, traduzido em aspetos mais comezinhos, é certo, mas igualmente eficazes. Como ter sede, frio ou vontade de urinar se não existisse? Isso aliviava-o, nos dias mais depressivos e solitários, em que até os cães decidiam não o acompanhar, por esta ou aquela razão, ou mesmo nenhuma.
O pior era quando tinha fome. Chegou a sentar-se, nas esplanadas de restaurantes, ao lado de pessoas que tomavam as suas refeições, nas quais ia petiscando. Pareciam nem notar. Era cómico. Tinha alguns pruridos em fazê-lo, mas já lhe bastava ser invisível, não se podia permitir morrer. À noite, havia o lixo, dos restaurantes, dos contentores… Percebeu, com algum escândalo inicial – que rapidamente se desvaneceu –, que deixava de ser exigente. Que se desleixava. Não se importava. Tudo tinha o mesmo sabor. Tudo sabia a fome saciada. Um sabor único. O melhor de todos. Parecia que todos os seus sentidos se tinham tornado, à sua maneira, invisíveis também. Reduzidos aos mínimos olímpicos. Ao ter ou não ter. Era tão simples, afinal. Deixou, ele também, de complicar. De exigir. Nem podia. Como fazê-lo se as pessoas olhavam através de si? Como lhe teria acontecido tal coisa? Por vezes, ainda parava a matutar nessa louca contingência, a mais estúpida das vicissitudes, ser invisível. Seria uma bênção de Deus, de verdade? Um castigo diabólico? Chegou a pensar que teria enlouquecido. Num mundo de loucos, num país de deprimidos seria mesmo banal e não algo extraordinário. Mas achar que podia estar louco não era, só por si, matéria intelectual suficiente para negar a própria hipótese da loucura? Quantos loucos existem que percebem e aceitam que estão loucos? Que são loucos? Não. Não era loucura. A ciência ainda não conseguiria explicar o seu caso, mas, com tantos avanços, quem sabe, um dia destes?
Pensou viajar. Conhecer outros mundos. No seu caso, seria fácil e muito barato. Grátis, para não fugir à verdade que tinha prometido a si próprio. Dirigiu-se ao aeroporto… Não. Viajaria de comboio. Sempre adorara comboios. Além de que, assim, poderia conhecer apenas os sítios de que gostasse, ou onde algum impulso o mandasse ficar. Isso. Percorreria o mundo pelas linhas de comboio. Levaria Fuligem, o único cão que se mantinha fiel à sua presença. Como amava aquele pulguento. Bastou chegar à estação, sentir o cheiro do ferro, do óleo nos carris, das gentes… para que o seu coração acelerasse de felicidade. Que projeto aliciante. Não percebia porque não o tinha encetado antes. Com tanto tempo para pensar e se decidir… A transparência estupidifica, pensou. Era noite cerrada. A estação estava vazia. A plataforma deserta de locomotivas. Mais valia que dormisse um pouco. Ajeitou-se, com Ferrugem no colo. Adormeceu. Acordou com o apito de um comboio. Esperava que estivesse a chegar e não de partida. Caso contrário, já não confiava nas pernas para correr pela plataforma. A invisibilidade atrofia os músculos. Um dado importante que deveria anotar, para mais tarde, quando a ciência acompanhasse o seu caso, pudesse informar os estudiosos. Seria uma informação vital e, quem sabe, não pudesse, o seu caso, entenda-se, ajudar a solucionar questões como o teletransporte e outras ficções da mesma família?! Ferrugem não estava no casaco que tinha estendido para que dormisse mais confortável. Estava a dois metros de distância. Olhava-o nos olhos, o que sempre o reconfortava. Era a sua dose diária de existência. Era a sua única relação com o outro. Ferrugem aproveitava uma nesga de sol que, entretanto, já despontava. Preparava-se para sacudir o casaco, onde tinham caído umas caricas ou moedas, ou o que raio seria aquilo, quando o inesperado aconteceu. Um adolescente com ar de velho – devia ser toxicodependente, porque também as drogas se vestiam de solidão e de velhice, aprendera tudo isso a observar os humanos visíveis –, olhou-o nos olhos. Tinha um olhar brilhante, vidrado e, não queria acreditar, falava com ele. Assim parecia. O feitiço estava a desfazer-se. Estava a tornar-se visível. Voltava a ser gente. Uma espécie de felicidade impedia que a voz lhe saísse. O que dizia o raio do miúdo, pá?! Tinha de lhe responder…
– Ouve lá, ó mendigo, se não queres esse dinheiro dá-mo. Não deites fora…
Demorou a perceber. Não seria para si. Era invisível… Olhou em redor. Além de Ferrugem, não havia vivalma. Apenas ele com a sua transparência, Ferrugem com as suas pulgas e aquele fedelho com os seus olhos brilhantes. Mendigo? A que se referia? Ele não precisava de dinheiro, era invisível… Um fantasma. Ninguém o via. Mendigo? Como assim? Um pedinte? O miúdo estaria louco ou pedrado? Ia dar voz às suas palavras, mas só lhe saíram lágrimas. Muitas.
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