O Inventor estava cansado. Cansado e aborrecido também. E satisfeito. Orgulhoso, até, dos seus feitos. Dos seus inventos. Era criativo. Incansável. Temerário. Na sua mente de inventor apenas uma singular pergunta. A de sempre. A única. O quê? O como acabaria por se resolver por si mesmo desde que decidisse o que inventar. O que criar. E tanto no que refere ao número, como ao género ou mesmo ao estilo, nada tinha de que se envergonhar. Tinha inventado tudo aquilo de que se tinha lembrado e mesmo algumas coisas que já havia esquecido, ou deveria esquecer e outras em que nem sequer tinha pensado. Eram felizes acidentes de percurso. Adorava os animais. Todos eles. Do mais ínfimo ao maior. A água, as cascatas e o seu ritmo cadencial. Tinha predileção pelas aves e pelos sonhos. A lista de inventos era já infindável pois que tudo tinha concebido e criado. Tudo tinha inventado. Tudo. Tudo mesmo?
Estava particularmente satisfeito com as cores. Inventá-las tinha mudado para sempre o seu universo. Antes delas, as árvores, as suas prediletas, eram o seu maior orgulho. Por serem vida. Por serem belas e por serem generosas. Seres divinos, nobres, elevados, de uma outra dimensão, na qual guardava ainda outros inventos seus. A água, principalmente na forma de chuva, era outro desses casos – tal como o ocaso. Tinha pensado na água num dia como este, em que apesar de morto de cansaço se sentia brutalmente entediado.
Mas as cores… Depois delas tudo tinha mudado. Acrescentar cor aos seus inventos foi como quando se lembrou de criar sorrisos para as bocas. Tudo mudou com o sorriso e a cor. As árvores, por exemplo, de belas passaram a extraordinárias. Quantas tonalidades de verde, quantas possibilidades de formas, de folhas… Era mestre na criação de folhas. Era o rei do origami e do kirigami. Desenhava, dobrava, recortava. No final, já nem esboços ou planos fazia. Ia apenas criando, diretamente na matéria. Absolutamente de cor e salteado. Estava a ficar afoito. Confiante. Desafiante. Provocador até. Quando inventou o verde, a sua primeira cor, foi logo às árvores que o entregou. Claro que, uma vez nas tintas, o resto aconteceu de forma ininterrupta, quase fora da sua vontade. O azul irrompeu quase sem se dar conta e todas as restantes cores, uma a uma, surgiram num gracioso bailado que ia coreografando. A todas elas patenteou, mesmo as que nasceram de erros e misturas inadvertidas de outras cores. O azul foi para o mar e para o céu e logo ali nasceu o cinzento, o cobalto, o índigo, o branco e o turquesa, devido aos reflexos espelhados da água. O mais interessante foi que, como já tinha muita coisa inventada, quase tudo, na verdade, voltou atrás para pintar e isso foi muito divertido. O que foi uma sorte, pois já tinha inventado a diversão, caso contrário, pintar poderia ser apenas trabalho. Trabalho árduo. A invenção da cor foi tão bem-sucedida que, no final, as coisas já decidiam por si as suas próprias cores. As laranjas elegeram a sua cor, razão pela qual, depois delas, tudo o que adotava o mesmo tom acabava por ser da cor da laranja. O mesmo com as rosas e o rosa.
Como também já tinha criado, primeiro as frases, depois as palavras, e depois as letras com as quais tudo podia fixar na memória, tudo podia ser nomeado, dito e falado sem reservas. Depois criou-lhes regras que impunham a forma como se alinhavavam e interligavam entre si. Leis a obedecer, para evitar insubordinações. Chamou-lhes gramática e semântica. Com as palavras vieram as discussões, mas ele era adepto de uma boa argumentação, pelo que todos os dias inventava novas palavras que melhor e melhor exprimissem coisas, pensamentos e, mais difícil de tudo, sentimentos. Inventar as letras tinha sido muito divertido e gratificante. As consoantes, muito sérias e assertivas, e as vogais, em menor número mas maior reboliço.
Vieram depois as rimas e não tardou a inventar a poesia, amiga de tantas aventuras. A poesia enchia-lhe, de facto, todas as medidas. As de largura, altura e, principalmente, as de profundidade. Por ela se esmerava na criação de letras. Mas também disso se fartou. Fartou-se de inventar letras ao cabo de umas vinte e pouco. Achou que eram mais do que suficientes, até porque há coisas inomináveis e outras que mais vale ficarem por dizer. Foi por essa altura que se lembrou que seria bom inventar um pouco de silêncio, não obstante já ter feito o vento, o que contrariava um pouco a vontade do silêncio. Mas tudo se entendia. Por vezes, como agora, aborrecia-se. Entediava-se. Para essas alturas, tinha criado a lembrança, para ir ocupando a mente. Nem sempre ajudava. Tal como agora, recordava feitos menos bem conseguidos. A maior desilusão eram os homens. Primeiramente sentira-se tão orgulhoso deles. Tinha neles depositado tanta e tanta esperança. Era tamanho o seu potencial. Mas revelaram-se uma genuína desilusão. Aborreciam-se mais ainda do que ele e tinham apreço pela destruição. Tinham até começado a matar as suas invenções, tirando certo prazer nesse ato. Eram uma espécie porca. Poluta. Tudo sujava. Tudo conspurcava. Tudo consumia. Tudo estragava. Tudo destruía. Não tinha préstimo. E nunca se sentiam felizes. Há muito que tinha posto à venda a patente dos humanos, mas sem sucesso. Ninguém se mostrava interessado.
Num momento de especial inspiração, recordava-o amiúde – tinha até vergonha de o admitir, pois achava-se, talvez despropositada e desapropriadamente, um ser modesto – tinha criado as artes. Que coisa maravilhosa. As artes. As belas, as performativas, e todas as outras. A beleza tinha sido difícil de conseguir, mas valera bem a pena, e a pluma, já agora. O feio não tardou a ocorrer-lhe, mas ainda assim, pela beleza, valera o esforço. Então e a fé? Poucas coisas se comparam com a fé. A confiança cega que se deposita em algo, em alguém, numa ideia que fosse. Era, a seu ver, a tal ponto estimulante e tinha tamanha força que decidiu, desde logo, partilhá-la com todos os seres vivos. As plantas acreditavam que conseguiam florir e conseguiam-no de facto. O mais emocionante foi perceber o que as aves conseguiram com ela: voar. Nada se compara ao ato de fé, à crença cega de uma ave que, ainda que na berma de um penhasco ou no alto de uma árvore, no aconchego do ninho avança para ao abismo pela primeira vez, opta pelo vazio, munida apenas da fé cega de que voará. E voa mesmo. E voa sempre. Quando deixa de o fazer, morre. Simplesmente morre.
Já o Homem, voltou a baralhar tudo e tal como um tolo com algo que não compreende nas mãos, não soube utilizá-la. Ora menosprezava-a, ora abusava dela, sem perceber o que fazer com ela. Incapazes! A verdade é que… É verdade. A verdade também tinha sido um grande salto no escuro. Tinha pensado nela nem se lembra bem porquê ou em que circunstância. Acredita mesmo que se preparava para inventar qualquer outra coisa quando se deparou com a verdade e percebeu o seu valor intrínseco. Deu a descoberta como terminada e estava nascida a verdade. Com ela, o Homem, por seu turno, inventou logo a mentira. O Inventor achou que bem mereciam ficar também com ela e deixou-lha em exclusivo. Ninguém mais brinca com a mentira. Apenas os homens. Vá-se lá entendê-los.
Mas tudo isso foi antes. Agora, o inventor estava aborrecido. Entediado. Quase triste. Lembrou-se então de… Era uma ideia genial. Precisava de algo monumental. Portentoso. Tão gigantesco quanto o espaço e as retas infinitas da matemática, mas que se colocasse longe da empertigada álgebra. Uma unidade que permitisse acrescentar mais e mais pontos numa sequência. Uma entidade também ela infinita. Algo que soubesse colocar um fim às coisas. Para se poder dar valor ao que era bom e para que se pudesse terminar com algo mau. Algo que reunisse em si a inspiração de um novo parágrafo, de uma nova ideia ou possibilidade e a assertiva determinação de um ponto final. Algo tão empolgante quanto o verde ou uma nascente. Precisava de Tempo. Iria inventá-lo, custasse o que custasse. Estava excitado. A ideia era deveras entusiasmante. Não sabia como começar. Como fazer. Entendeu, o Inventor, ser preferível começar aos poucos, pelos elementos mais pequenos. Como deveriam ser?
Reuniu alguns instrumentos, que retirou da sua caixa de ferramentas. Concentrou-se. Sem se dar conta, ou dela se dando, não tinha muita certeza, e já tinha inventado o segundo. O primeiro segundo do planeta. Era pequenino, mas determinado. Uma vez feito, o segundo já tinha passado. Tinha morrido quase no mesmo instante. Achou que tinha falhado. Era uma experiência fracassada. Um nado-morto. Seria? Então e se…? Havia que dar presente e, acima de tudo, futuro ao segundo. Com a ajuda do esquadro, desenhou novo elemento e inventou o milésimo de segundo. Desta vez, porém, inventou vários em simultâneo e ordenou que dessem as mãos com força. Bem colados uns aos outros, eles davam mais resistência ao segundo. Logo que o segundo segundo de tempo estava concluído não o largou e começou logo a somar-lhe mais milésimos e mais segundos em sequência ininterrupta e nisto, já tinha um minuto feito. Muniu-o de resiliência e ânimo próprio. Mantendo a mesma lógica de união-sequência de pequenas porções, os minutos acabaram em horas e, neste momento, já tinha dias, noites, um lugar para o sol, outro para a lua, meses e anos, estações e apeadeiros – não, estes iriam para outro lugar do mundo. Sabia o que fazer com a primavera e o verão e que destino dar ao outono e ao inverno. Todos eles projetos que tinha abandonado por não saber o que fazer com eles e aos quais se tinha dedicado devido à sua enorme paixão pelas árvores, que se entretinha a vestir e a despir. Finalmente, tudo se encaixava. Havia um lugar e agora também um tempo para tudo. Os lugares podiam agora ter uma outra natureza que não meramente física. Podiam ganhar estatuto de primeiro e último. Havia agora lugares para se estar e visitar e pelos quais passávamos e lugares que passavam por nós. Era um relógio universal ininterrupto que tudo comandava. Determinaria inclusivamente, por decreto seu, que tudo na vida deveria ocupar um lugar primeiro e um lugar último, ou seja, tudo deveria um dia começar e um dia terminar.
A linha temporal era prodigiosa e os incansáveis segundos, minutos e horas permitiram-lhe inventar outro tanto do que já tinha criado. Com o tempo veio a música, a sucessão de dias e estações, o novo e o velho. Hoje e amanhã. Com este tempo lembrou-se até de inventar o outro, o atmosférico, para dar mais razão de ser ao veste e despe das árvores e de toda a Natureza. Estes dois tempos puseram o mundo a andar, a girar, a emigrar, a esperar e a saber o que esperar. Depois da noite o dia, depois do inverno a primavera… Esse tempo ficou conhecido como o tempo em que o Tempo nasceu. Havia agora um tempo para as maçãs, as peras e os morangos, outro para as cearas. Era lindo! Tinha orquestrado uma das suas mais mirabolantes invenções. Patenteou-a na hora. Sim, agora que havia horas era possível fazer coisas na hora e nas horas e ao minuto. Inventou o cedo e o tarde, o atrasado e a pontualidade, o antes e o depois. Era maravilhoso. Olhando em redor, passando uma vista geral sobre a sua oficina – limpa e arrumada com rigores cirúrgicos, quase a roçar o patológico, contrariamente ao caos reinante no seu laboratório, onde elaborava teses e fazia algumas experiências – percebeu, a um canto, uns restos do produto com que criara o Tempo. Com este material sobejante criou ainda o temporal, pois tinha horror ao desperdício, e matéria-prima de primeira como aquela não podia ser desperdiçada. Além de que arrumava mais um termo no já vasto vocabulário, que ia reunindo em livros a que chamara dicionários e no qual tempo e temporal ficariam perto em termos de índice alfabético, até porque provinham da mesma matéria. Seria ele um génio? Um Deus? Adeus! Pois sim. Deus não se teria lembrado de inventar homens e estes, ainda o tempo era imberbe e já eles se dedicavam a gastá-lo, a perdê-lo e até a matá-lo. Matar o tempo era quase um desporto em certos círculos mais ociosos. Era uma gente incorrigível. Esbanjavam tempo em tudo e em nada e decidiam por vezes, e de forma consciente, matar tempo. Outros, não menos loucos, corriam contra o tempo, numa partida injusta e ganha à partida pelo invencível e infinito Tempo. E mesmo quando o Tempo não ganhava uma corrida, ganhava sempre a prova e subiria sempre ao lugar mais alto do pódio. Os mais insanos julgavam ter tempo. Ter tempo para tudo. Ainda que iludidos, deveriam saber que apenas o Tempo tem tempo. Ninguém o domina. Ninguém lhe pode deitar a mão. Não se pode dizer que não eram, também eles criativos, mas porquê tanta negatividade? Porque não se dedicavam a dar vida ao tempo? A dar-lhe mais e mais corda? Doía-lhe no peito esta invenção tão defeituosa. Alegrava-o apenas saber que agora – já havia agora – os homens sabiam que, um dia, também eles morreriam às mãos do Tempo, que tanto gostavam de aniquilar. Certa vez, foi abordado por um homem que se dizia sábio. Sábio ou rico, parece que os homens tendem a confundir estas palavras, bem como tantas outras. Disse-lhe esse homem, num jeito dengoso e manipulador, num tom de voz baixo e manhoso, se o Inventor lhe poderia arranjar tempo. Mais tempo. Precisava dele.
– Tem tempo para mim? Só algum, muito não digo. Apenas o suficiente para resolver uns assuntos, sabe. Preciso mesmo de tempo.
O Inventor não morria de amores por humanos, menos ainda por humanos mal-intencionados e sem escrúpulos, que saltavam hierarquias e tentavam resolver os assuntos na secretaria. A sua secretaria era pequena, muito arrumada e sempre vazia, pelo que não se incomodou de lá encontrar o humano, nesse dia. Ainda brincou um pouco com ele.
– Que tipo de tempo? Tempo frio? Tempo lindo? Bom tempo? Mau tempo? Tempo para pensar?
Mas depois aborreceu-se. Já percebemos que o Inventor tem propensão para o aborrecimento e para a melancolia. Além de que sabia estar a perder tempo com aquele assunto e com aquele homem. A roda do tempo não para perante tolos. Na verdade, o tempo simplesmente não para. Ponto final, parágrafo, início de nova oração e nova ideia. Aconselhou-o a tratar do assunto diretamente com o Tempo.
– Ah, sabe. O Tempo anda sempre a correr. Sempre muito ocupado. Nunca o consigo apanhar. Diz-me a secretária que ele está sempre fora e muito ocupado.
– Não consegue ganhar ao Tempo? Há quanto tempo é que isso acontece? Talvez deva matá-lo mais um pouco. Ao Tempo, quero eu dizer. Não se dedica a isso regularmente?
Furioso, o homem que se achava poderoso entre os seus, percebendo que perdia o seu tempo, voltou-lhe costas. O Inventor, sem se dar conta, tinha acabado de inventar a frustração e a fúria. Era a primeira vez que reconhecia algum préstimo aos homens. Tinha de lhes dar mais atenção, mas não mais tempo. Na verdade, faria precisamente o contrário. Estava absolutamente decidido a isso. Daria antes tempo ao Tempo. Mais ainda. Muito mais. Em boa, ou má hora, vá-se lá saber ao certo, olharam o relógio. Ainda era cedo. Ainda era cedo, pensou o Homem. O Homem que magicava vinganças e sanções e uma qualquer sabotagem ao relógio mundial. Ainda era cedo, pensou o Inventor. Mas nisto voltou a sentir a chegada do tédio e não tardou a que lhe faltasse o tempo para avançar para coisas novas. Coisas outras. Entusiasmantes. Enervantes, como tanto gostava. Tinha de inventar algo mais para ocupar o seu precioso tempo. Ainda era tempo, sabia o Tempo que tinha sempre tempo de sobra. Haveria sempre tempo. Mas nisto, o Tempo passou. O Homem continuou. O Inventor foi-se embora. Estava aborrecido.
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