Não sabia muito bem porque se entregava àquele enfadonho ritual todos os sábados de manhã. Cabelo, unhas, pés, uma massagem de quando em vez… Nunca apreciara aquela familiaridade de toque, aquele tutear de mãos seguras e determinadas sobre a sua pele e odiava quando o corpo cedia, lânguido, a um certo bem-estar, a uma certa lassidão, a um certo prazer que em tudo contrariava a sua mente, a sua forma de ver tudo aquilo. Uma futilidade sem tamanho. Um desperdício de energia e tempo. Por isso mesmo, tudo fazia para contrariar o assomo de qualquer molécula de prazer, qualquer átomo de satisfação quando lhe massajavam o couro cabeludo fazendo os seus olhos fecharem-se involuntariamente de fraqueza. Abria-os num rompante, como alguém que consegue erguer-se do coma e garantir que está viva ainda. Hoje, porém, estava com dificuldade em ser bem-sucedida. Em esgrimir contra aquela sensação boa que lhe subia pelo corpo. Os pés eram mesmo o seu calcanhar de Aquiles e aquela massagem estava a ganhar-lhe aos pontos. O formigueiro já chegava às mãos, onde outra obreira lhe pressionava as palmas das mãos com dedos seguros que prescreviam círculos perfeitos. Não no sentido da perfeição geométrica, mas no de perfeição absoluta. Era tão relaxante. E se, por uma vez, se deixasse ir? Que mal viria ao mundo? Mesmo que se, por breves segundos, adormecesse, que mal faria? A beleza, todos sabiam, não dependia de nada daquilo a que se entregava. Manicura, pedicura cabeleireiro, madeixas, extensões, máscaras hidratantes ou de argila… Podiam apenas tornar mais graciosa, mais estilosa, mais moderna ou vintage, mais romântica ou roqueira a aparência de uma pessoa. Moldar-lhe o visual, como mãos húmidas de oleiro sobre o barro fresco, mas nada faziam quanto às propriedades do barro em si, nada acrescentavam à beleza plástica do material. Nos humanos, essa beleza tinha apenas uma fonte de juventude: o amor enquanto garante de beleza.
O amor puro, desinteressado, aquele que não se justifica ou se compreende. Aquele que inexplicavelmente sentimos por alguém, que nos une a outra pessoa sem razões ou porquês. Uma premissa de felicidade que assenta no belo, no novo. Fixa no tempo a beleza, a juventude do objeto do afeto. Perceber que não se ama quando se começam a perceber imperfeições, traços grotescos, sinais de envelhecimento. É o lápis de Goya a deter-se naquele esboço, naquele rosto, naquele corpo, outrora de desejo. É o prenúncio do fim. Tem como óbvia vantagem a vã necessidade da mentira numa relação amorosa. Não há como negar os traços do desamor.
Não falamos de um amorzinho, uma enfatuação, uma paixoneta. Não. Falamos desse outro amor. Uma coisa absoluta. Brutal. O amor enquanto força bruta e autónoma que contraria vontades, se preciso for, e impõe desejos. Aquele tipo de sentimento que torna dois seres numa espécie de meteoritos que, viajando em sentidos contrários, se limitam a seguir o seu caminho ininterrupto, fixos numa mesma órbita em permanente rota de colisão. Colidirem é apenas uma questão de tempo. Uma inevitabilidade. Um desastre, portanto, pensava a sorrir. Sorria perante a ideia de colocar acidente na lista de sinónimos de amor ou por causa da lassidão que já se apoderava do seu cérebro? Que formigueiro agradável. Tinha de resistir. Ou não? Daria a si própria mais dez minutos daquele enlevo, depois levantar-se-ia e iria à sua vida. Na verdade, não precisava de nada daquilo, mantinha apenas hábitos de sempre. Hábitos que criara antes de encontrar o amor e, com ele, a verdadeira beleza. Graças a ele, ao amor, ou graças a ela, pois era outra mulher quem amava de verdade, mantinha a juventude, a frescura e aquela outra beleza que não se compra em centros de estética ou marquesas de cirurgião plástico. Teresa, o seu amor, fornecia-lhe os mais eficazes tónicos de juventude, os melhores antirrugas do universo. Tudo porque se limitava a amá-la incondicionalmente. Teriam já passado os dez minutos de concessão? Não importava, apetecia-lhe recuperar as energias que pareciam desertar do seu corpo, reunir todas as tropas em fuga e preparar-se mental e fisicamente para o jantar dessa noite. Todos os últimos sábados de cada mês se reunia o grupo de amigos de sempre em sua casa. Sua e de Teresa, claro! Uns aperitivos, o habitual resumo das vidas de cada um, as tricas da Manecas, verdadeiro Borda d’Água das vidas privadas de todos os seres vivos que com ela se cruzavam desde 1999, mais coisa menos coisa, os lamentos do Eduardo, que elegera a dura profissão de vítima, os desamores constantes de Isabel – razão pela qual aparentava ser a mais velha do grupo, já que a falta de amor crónica desenhava com o lápis de Goya as mais tenebrosas feições em qualquer rosto, por mais perfeito que tivesse sido um dia, os disparates do Zé e do Matias e suas costumeiras desavenças de amantes inseguros e ainda a insuportável felicidade de Carmo e do ‘seu’ Marccelo, italiano de uma beleza estúpida, capaz de fazer corar de embaraço qualquer deus grego. Era o primado de Roma sobre Atenas. O melhor seria mesmo tentar dormir um pouco durante a tarde, já que os serões se estendiam, sem grandes sacrifícios ou aborrecimentos, até de madrugada e, ao contrário do que por aí se apregoa, os 40 não são, de forma alguma, os novos 20. Os 40 são os 40, ponto final, já que os 20 continuam a ser os 20. As teorias pós-modernas que se inventam para mascarar a verdade. Esta é só uma: envelhecer não tem piada. Sim, o amor impede a feiura, retarda o envelhecimento físico e mental, mas nada faz para impedir o passar dos anos e ninguém é eterno, por mais belo que seja. Até Marccelo morrerá um dia.
– Só se eu deixar – dizia Carmo a brincar, enquanto, como era seu hábito, se atirava para o pescoço do marido.
Olhou-se ao espelho. Gostou do que viu. Apenas não percebia porque lhe tinham pintado o cabelo com uma cor diferente da habitual. Não que desgostasse, parecia até mais nova, mas não estava acostumada ao cabelo tão claro. Sempre fizera gala dos seus cabelos cor de chocolate e agora, aquelas madeixas douradas…
– Oh, não gosta? São as que lhe mostrámos no catálogo…
Não se recordava de ter visto cores de cabelo quanto mais de ter anuído com o que quer que fosse. Não devia ter-se deixado cair no poço dos prazeres ‘massagísticos’. Era no que dava. O embaraço e constrangimento da jovem cabeleireira, ou antes colour stylist – sim, no salão onde ia, cada um tinha a sua função: havia quem apenas cortasse, quem apenas pintasse unhas, quem apenas massajasse, quem apenas fizesse pedicura, quem apenas pintasse, quem apenas tirasse cafés… Era uma míni sociedade do ócio. Cada um no seu lugar da hierarquia. Lá fora não era muito diferente. No topo os mais amados/ricos, seguidos dos mais ricos, em terceiro apenas os mais amados e por aí abaixo até chegar aos mais pobres e mal-amados, já se vê.
Percebeu que tinha de dizer algo em relação à cor do cabelo sob pena de a jovem designer da cor poder rebentar de tão corada que estava.
– Não se preocupe. Estranhei, é certo, mas olhando bem, acho até que me favorece.
As faces da miúda voltaram a recuperar uma cor aceitável, mas percebeu que o embaraço estava para ficar. Tanto pior. Não tinha tempo para paninhos quentes.
Ao entrar em casa, percebeu a ausência de Teresa pelo entusiasmo do Sr. Anselmo, o S. Bernardo que, a avaliar pelo amor que tanto ela quanto Teresa lhe dedicavam, jamais envelheceria. Já passava da sua hora de ir à rua e ficou claro que ainda não tinha ido. Desceram até ao jardim fronteiriço. Sr. Anselmo sabia bem o que fazer e tratou de ir à sua vida. Sentou-se no bordo de um canteiro enquanto aguardava o regresso do Sr. Anselmo. Pachorrento como era, não constituía perigo algum, mesmo se provocado, além de que era uma figura querida das redondezas, recebendo cumprimentos frequentes de quem com ele se cruzava. Estava meio perdida nos seus pensamentos e percorria-a aquela sensação agradável de antecipação de algo bom. O jantar era sempre um acontecimento que aguardava com expectativa e entusiasmo, pelo prazer que tirava da companhia de todos aqueles amigos, não obstante a trabalheira de louças, copos… Sem razão aparente, olhou na direção oposta daquela em que, sem ver ou ouvir, se detivera até então, perdida que estava no seu mundo de pensamentos, no momento exato em que Teresa chegava. Trazia a gabardina que lhe tinha oferecido no último Natal e que tanto gostava de lhe ver. Como a amava.
Percebeu a surpresa no rosto da amante quando esta a descobriu ali, no jardim. Sr. Anselmo já fazia as honras da casa, naquele seu jeito gigante de marrar contra a nossa barriga – sim, era grande, muito grande – quando percebeu que Teresa tinha vindo no carro da Margarida, sua assistente, quem, em tempos, antes de se conhecerem melhor, chegou a pensar que seria sua namorada. Felizmente não era. Talvez por isso sempre teve algumas reservas em relação a Margarida. Nunca gostara verdadeiramente dela e seguramente a culpa seria mais sua do que de Margarida, que se mostrava sempre muito prestável, sempre muito presente. Momentos havia em que decidia que se esforçaria por afastar quaisquer reservas em relação a ela, mas bastava a sua presença para que adiasse ad infinitum qualquer plano sincero nesse sentido. Porque teria Margarida vindo trazê-la a casa? As compras que Teresa tinha para fazer, por causa do jantar, não eram de monta, pois gostavam de organizar tudo com antecedência, mas, ainda assim, retirava uma série de sacos de dentro do porta-bagagens. Margarida acenou-lhe de longe. Respondeu com um gesto desajeitado. Apenas um braço no ar. Levantou-se, para ir ajudar Teresa com os sacos, mas nisto o Sr. Anselmo fez finalmente aquilo que era esperado que fizesse e teve de ir a correr, com o saco higiénico em riste.
– Não te preocupes que eu dou conta do recado – ouviu Teresa dizer-lhe.
Teresa seguiu no primeiro elevador. Ela teria de esperar por outro, afinal, Sr. Anselmo ocupava, sem exageros, o espaço de três passageiros gordos. Tanto melhor. Era o ideal para evitar vizinhos mais chatos, se bem que sempre gostara de escandalizar os mais obtusos e escalenos, dando ostensivamente a mão a Teresa, para que não restassem dúvidas quanto ao grau de parentesco que as unia. Sim, não eram primas, nem irmãs, nem amigas. Eram mulher e mulher. Era sempre um momento refrescante para si e, em seu entender, higiénico para os outros.
– Serve para lhes limpar preconceitos e outras maleitas – gostava de dizer aos amigos. Eles divertiam-se consigo. Sabia disso. Era, sem surpresas, uma mente desempoeirada, filha de intelectuais de esquerda genuínos. Gente progressista e boémia de alma e coração que sempre soube e aceitou a sua orientação sexual. Antes mesmo dela própria ter disso clara consciência. Cresceu dentro da sua natureza com a naturalidade de quem percebe que é canhota ou ruiva. Apenas mais um traço, um mero adjetivo da sua substância humana. Sem dramas ou afetações.
Teresa já desmoronara todos os sacos e iniciava a preparação da refeição. Um soufflé daqueles que têm de ser feitos com carinho, caso contrário… Lá se iam os seus planos para a nano sesta que ainda a entusiasmava. Prepararam-se taças de salada, travessas de aperitivos, fatiou-se presunto, encheram-se espetadas com cubos de queijo e uvas descaroçadas… Quando finalmente se sentaram com um gin tónico na mão, toca a campainha. Os primeiros convidados já chegavam. Engano. Vinham todos juntos.
– Soubemos que a ementa incluía soufflé e não quisemos ser causadores de desgostos culinários – justificou Marcello num português irritantemente correto. Era um homem perfeito, pensava.
Zé e Manecas, os mais exuberantes e proativos logo tomaram conta da cozinha, avisando que era o seu contributo para aliviar as anfitriãs.
– Já basta a trabalheira do jantar e da limpeza depois de sairmos. Enquanto cá estivermos, não se preocupem com coisa alguma.
Não era bem assim, era mais do que certo que a Manecas acabaria por beber mais do que o desejado e poderia acabar a dormir no sofá da sala e, estatisticamente, era sempre elevada a probabilidade do Matias amuar com algum comentário do Zé, ou que, no rescaldo de uma desavença anterior, ansiassem por chegar a casa o quanto antes para fazerem as pazes em privado.
Aquela, todavia, parecia uma noite atípica. Zé e Matias vinham no maior ‘I love you’, Manecas não comentara o abate do lápis de Goya sobre a vida de um qualquer conhecido e Marccelo partilhava o charme que quase exclusivamente dedicava à mulher, Carmo, e até Isabel se esforçava por ser jovial e fazer piadas. Tanto melhor. O bom ambiente só podia fazer o soufflé crescer ainda mais um pouco.
Curiosamente, a maior estranheza sentia-a nela própria. Qualquer coisa impercetível. Invisível ainda mas que já se anuncia, que já vem a caminho. Ter visto Margarida, esta ter dado boleia a Teresa, o stress de Teresa durante a preparação de todo o jantar, o seu olhar estarrecido a olhar para a sua nova cor de cabelo… Uma dessas coisas, ou todas em simultâneo causavam-lhe uma espécie de estranheza, de ansiedade. Serviu-se de mais vinho e voltou a entrar num jogo de charadas para o qual o grupo se atirava, sem agendamento, em noites de boas vibrações. Todos pareciam felizes no entanto ela sentia-se como quando adivinhamos uma gripe. Não é ainda febre, nem nariz entupido, nem dor de garganta, apenas uma certa moinha, quase apenas uma sensação e uma certeza insana de que, em breve, virá a febre, a dor de garganta, o nariz entupido.
Era a sua vez de, recorrendo apenas a mímica, tentar que a sua equipa adivinhasse o nome de um filme. Tinha-lhe calhado “O Pecado Mora ao Lado” e apenas ainda tinha conseguido deixar claro qual era a última palavra. A fim de ganhar balanço, baixa-se para o copo que tinha pousado numa mesa de apoio quando Isabel dá um grito, um barulho abafado da família daqueles de quando se descobre um bicho no meio dos lençóis. Olharam para Isabel tentando perceber o que se passava, mas ela dizia apenas que se tinha engasgado, o que não batia certo com o olhar assustado que ainda denunciava algo mais. Continuou com o seu número de mímica e, para maior efeito dramático, e numa tentativa derradeira de tentar que chegassem à palavra pecado, agarra em Matias numa espécie de encenação de uma cena de traição quando este lhe diz que tem vinho no buço. Ou vinho ou bâton.
– Como assim? Vinho ou bâton?
Aproveitou a deixa para um breve intervalo. Quando regressou da casa de banho, o grupo estava em silêncio e a sua presença apenas o adensou.
– Já vi – disse apenas.
Na verdade, tinha-o visto antes de o saber. Percebeu as madeixas claras e o olhar assustado da miúda, no cabeleireiro, o grito de Isabel, e o nome Margarida bailava-lhe na tristeza.
– O quê, bella? – Marccelo tentava ser gentil, mas era óbvio que todos tinham tido tempo para comentar e que de facto o tinham feito. Teresa sustinha as lágrimas.
– Os cabelos brancos e o início de um código de barras no meu buço. Não é vinho, Matias. É uma ruga. Um traço de Goya.
Teresa soltou as lágrimas. Ela, uma gargalhada.
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