Vedeta conferiu a agenda no tablet. Estava relativamente livre, à exceção de uma reunião, marcada há já algumas semanas, com três colegas com quem planeava uma parceria bastante interessante. O conceito era simples: criar um modelo de interajuda, com base numa plataforma de parceria e de divulgação do trabalho coletivo online, que permitisse que todos beneficiassem. Pretendia-se que o proveito do esforço coletivo multiplicasse a visibilidade do trabalho de cada um individualmente e aumentasse os lucros de todos os envolvidos. Não apenas isso como, em caso de temporário desinvestimento do público numa das áreas de ação, ou de esporádica baixa de rendimento num dos setores de atividade que o grupo reunia entre si, ninguém deixasse de ter algum tipo de rendimento.
Vedeta Leão, gestor de projetos e CEO em diversas empresas que se revelaram desde o seu início em portentosos sucessos, via a honestidade da ideia com bons olhos. O conceito de interajuda não era aquele que guiava os seus negócios, nem de perto nem de longe, e o trabalho em equipa não o atraía minimamente, mas perdido no seu íntimo, num qualquer recanto escuso e escuro do seu ser brilhou uma pequena luz, acesa num momento de fraqueza e de amor pelo próximo. Porque não contribuir com todo o seu conhecimento, influência e poder num projeto mais ou menos familiar, em que poderia auxiliar e levar ao sucesso parceiros de menor monta, mas cheios de vontade de mostrar o seu valor e capacidade de trabalho? Além de que só tinha a ganhar. Desde logo em promoção, na ascensão de uma imagem de preocupação pelo desperdício zero, por uma economia circular, sustentável e eco-responsável e ainda na moldagem de um perfil empresarial imbuído do espírito de solidariedade social, benevolência e mecenato.
Nos dias que correm, todos se sensibilizam com o Leão que auxilia o rebanho, que ilumina o caminho, que partilha parte do seu bolo, baluarte quixotesco de uma filosofia há muito em ruínas, em que os homens se interajudam em prol de um mundo melhor, mais justo e equitativo. Sentiu uma ligeira tontura. Quase uma lágrima. Mediu a tensão. Já tinha passado. Estava tudo bem. Deu como certo que a passageira indisposição se devera ao acumular de palavras estranhas ao seu vocabulário, assim, de rajada, num tão curto espaço de tempo e relacionadas com um único assunto. Tudo o que é demais não presta, sentenciou. Tomou uns sais-de-fruto. Demorou ainda um pouco, mas passou.
Na posse de toda a boa disposição possível, lá partiu para o encontro a quatro. Verónique Vache, um excelso fruto da parisiense Sorbonne, especializada em linguística, ex-modelo fotográfico e influencer na área da eco-sustentabilidade era uma das possíveis parceiras. Inteligente, civilizada, cosmopolita, vibrante e… gira! Muito gira, mesmo. Só isso já era inspirador. A sua companhia e um T-bone no Gustavo e o dia já prometia.
Umberto Cabrezi, outro dos comensais, era um tipo fascinante. Totalmente empenhado, transpirava paixão e entusiasmo pelo que fazia: recuperava e projetava no futuro uma empresa têxtil decadente, empregando apenas matérias-primas naturais e usando o saber ancestral das gentes locais, nas gélidas e rudes paisagens serranas do perdido interior. Vedeta Leão, um urbano-dependente achava piada a tudo isso, como um imperador olhando uma bonita missanga colorida. Divertia-o a simplicidade e aceitava a beleza da pequena conta, mas preferia de longe as suas pedras preciosas, cujos reflexos de luz brincavam no cristal dos copos por onde bebia néctares raros e exclusivos. Não podia brincar aos pobrezinhos durante muito tempo, não apenas porque se enfadava mortalmente com tanta simplicidade, como por causa de questões da pressão arterial, que disparava em ambientes simplórios e demasiado artesanais. Sentia logo ressaca do toque sintético da artificialidade ou da sofisticada caxemira. Ok, o burel e a serapilheira também eram fascinantes e muito em voga, mas quem lhe tirava uma boa lã de alpaca, camisas de seda pura ou os seus lençóis de algodão egípcio de um milhar de fios, mexia com o seu aconchego.
Aborrecia-o mais Gabriela Ovelha, marketer, demasiado focada nos seus projetos, nos seus métodos e por demais orgulhosa das suas ideias para conceder espaço de antena a outras vozes. Podia enviar-lhe coordenadas erradas do restaurante, avisá-la já mais para o final da refeição e aturá-la, por fim, apenas durante o café. Soava-lhe bem, mas percebeu, pelas mensagens no WhatsApp que o grupo já se organizava e que estariam os três um pouco antes da hora marcada no bar do restaurante, para acertarem ponteiros antes da chegada de Leão. Too bad, pensou. Bom, uma ativista com voz nas redes sociais, um projeto natura 100% nacional, que ia ao encontro de todos os trends do momento, e uma marketer com alma de designer de interiores que pretendia criar um espaço moderno, inclusivo, multidisciplinar e multifuncional, de criatividade e de produção, de mostra e de venda, onde artesãos residentes e convidados pudessem realizar as suas obras, expor trabalhos, ideias, conceitos, arte, visões, objetos…
Leão, no papel de lobista ou mecenas, trataria de financiar e dourar o conceito, para que se tornasse atraente, financeiramente viável e, obviamente, lucrativo para todas as partes. Particularmente para si, argamassa que tudo colaria e a quem se deveria a credibilidade do projeto. Só já pensava nos T-bone do Gustavo. Já tinha reservado previamente, para si, um de carne maturada malpassado. Inicialmente não entendia o contrassenso, mas depois de ter provado, aderiu à moda com devorador apetite. Só de pensar nisso, aguentaria Ovelha, não se deixaria enervar com as vibrações de Cabrezi e simplesmente se deleitaria com a beleza de Véronique. Ah, la belle Véronique! Aquela parceria podia prometer mais do que imaginara inicialmente. Mas, por ordem de prioridades, que viesse o belo do T-bone.
Véronique Vache, com o seu inimitável estilo blasé-chic, um meio desfeito rabo-de-cavalo absolutamente sedutor, que desnudava o seu elegante pescoço, salpicado de madeixas cor de avelã desprezadas pela fita com que apanhara o cabelo, um casacão de malha sobre um sedutor vestido de seda de bom corte e uns inesperados ténis coloridos, mais de corrida do que de passeio, tinha, de facto, uma presença inequivocamente atraente sem qualquer tónica sexy. Era fresca, inesperada e lançava sobre o universo um olhar original, absolutamente inédito, desformatado, como se ocupasse um qualquer patamar com vista privilegiada sobre o mundo em seu redor. Chegava a ser intimidante abordar qualquer que fosse o tema na sua presença, pois ela conseguia desmanchar qualquer argumento, por mais enraizado na lógica que estivesse, com aquela sua maneira inédita de pensar os assuntos. Qualquer coisa, para Véronique, podia ser qualquer outra coisa. Não se sentia particularmente diferente dos restantes humanos, mas sentia uma espécie de segurança absoluta na sua intuição, na sua forma de ser e de estar perante os outros e a vida, ainda que percebesse a sua originalidade, o desconcerto que percebia lançar sobre os outros, mas aceitando tudo isso como um superpoder, ainda que com a mesma naturalidade de quem possui uma cor de olhos destoante, uma gargalhada contagiante, uma verruga ou qualquer outro traço distintivo. A sua cordialidade, afetividade e empatia, a par da sua inegável inteligência e clarividência, desmanchavam todo o tipo de anticorpos, comuns quando alguém se apresenta como influencer, ou como modelo, mais ainda quando se percebia o seu estilo de vida: cultivava os seus próprios legumes, cozinhava a sua própria comida, desenhava e costurava todo o seu guarda-roupa, aspirava a uma vida totalmente sustentável e de desperdício zero e tinha como mote, nada comprar que não conseguisse fazer.
Véronique mantinha com Umberto Cabrezi uma longa amizade, nascida dos tempos em que o italiano era um dos fotógrafos de moda mais cobiçados da indústria, uma das mais poluentes do planeta e cujos princípios ambos tentavam reverter. Véronique através da produção caseira e Cabrezi por via de métodos e procedimentos amigos do ambiente, sem corantes, apenas lã pura, os saberes de ontem e a energia e tecnologia de hoje. Falou-se, nos tempos de glória do fotógrafo, que ele e Véronique teriam mantido uma relação muito além do profissional, mas poderão ter sido apenas boatos galvanizados por alguma imprensa.
Gabriela Ovelha foi a última dos três empreendedores a juntar-se ao já bastante animado duo. Tinham combinado encontrar-se uma hora antes, a fim de organizarem ideias e reverem o plano argumentativo com o qual pretendiam convencer Vedeta Leão, de seu nome próprio Jacinto, a tornar real o seu espaço de criação alternativo, no qual pretendiam valorizar o artesanal, o manufaturado, o 100% nacional e onde novas ideias se juntariam a formas de fazer do passado sob o conceito comum de produzir sem poluir, fazer sem destruir, desenhar o futuro sem desdenhar da relação saudável com o planeta e do bem estar das populações locais. Quando Leão chegou, o grupo já tagarelava animadamente frente a copos de Martini vazios. Ainda se bebia Martini? Parecia que sim. Leão votava sempre num bom vinho, mesmo enquanto aperitivo, mas respeitava os apetites de todos.
Com os olhos em Véronique, divertido com o português do italiano e até entusiasmado com a campanha de lançamento e toda a estratégia de marketing da obsessiva Ovelha, mas, acima de tudo, deliciado com o seu ensanguentado T-bone – Gustavo nunca falhava no ponto certo –, Leão sentia-se feliz e satisfeito. Sempre preferira a satisfação à felicidade, por ser mais palpável e realista. Naquele momento, porém, percebia perfeitamente a coexistência de ambas no seu espírito. Nada como uma boa refeição para alegrar a alma. Nem precisavam de o convencer. O perfume a campo que lhe chegava do cabelo de Véronique – e que percebeu que se devia a produtos caseiros que ela própria fabricava, como revelaria mais à frente – e um bolo de alfarroba sugerido pelo chef, já tinham fechado o negócio muito antes de o expressarem por palavras.
Vache, Cabrezi e Ovelha passaram o ano seguinte imersos em trabalho, multiplicando-se em tarefas, afazeres e todo o tipo de atividades e contactos para tornar a sua plataforma na mais diversificada e rica, enquanto representante dos novos valores nacionais, de artistas a designers, de arquitetos a tecelões, de ceramistas a joalheiros… Todos os que erguessem com esmero, orgulho e originalidade a bandeira do handmade e passionmade, do made in Portugal e artesanal eram chamados a intervir. Mas o chamamento trouxe mais do que se esperava, em quantidade e qualidade, pelo que o projeto foi ganhando uma dimensão, peso e volume inimagináveis inicialmente. Leão já só ouvia sons de máquina registadora, uma relíquia vintage que soava a dinheiro a entrar. Entrava diretamente na sua conta, já que todos os interessados, segundo determinou, deveriam participar com uma pequena quotização monetária, que passou depois a uma não tão pequena verba e culminou numa taxa exclusiva de admissão que já elegia mais em função da capacidade financeira para ingressar no projeto do que pela mais-valia artística ou qualidade do trabalho.
Quando Vache, Ovelha e Cabrezi, que geriam outras áreas do projeto, se aperceberam do esquema de Leão, era já tarde demais. Eles seriam sempre os donos do conceito – ou assim acreditavam –, mas o dono do negócio era Leão, bem como dos lucros, do mérito social e cultural, dos louros e do próprio espaço fabril, o qual esventraram e por onde circulavam os novos artesãos e onde o cheiro a madeira, tintas, ferro, lãs, tecidos, criatividade e até alguma mediocridade e mau gosto se misturavam no ar. Aquela outra parte referente à divisão de lucros esclarecia-se facilmente: Leão – Tudo, Sócios – Zero. Consolava-os a experiência ganha e a paixão partilhada. O resto era mesmo zero. A bem da verdade, por essa altura, Leão já nem necessitava dos préstimos de nenhum dos ‘sócios’, mas custava-lhe deixar de ver Véronique…
Moral da história:
Martinis e T-bone não combinam e partilhar boas ideias não é uma boa ideia. Atentem nisso!
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