Faria tudo por ela. Absolutamente tudo. Quer dizer, tudo dentro do tudo que nos é dado a conhecer. Certamente que um tudo maior haverá para lá do nosso pequeno tudo. Pensar nisso apoquentou-o. Tudo tem de ser tudo. A vida, se previso for, a felicidade, se assim tiver de ser, o bem-estar e o conforto e até a sanidade mental. Sem pestanejar. Sem hesitar. Sem vacilar ou pedir um tempo, para pensar ou reorganizar ideias. Tudo é tudo. Sim. Acreditava estar seguro de que tudo faria por ela. Talvez seja melhor reformular: tudo faria para ter o amor dela. Isso. Bem melhor. Seria capaz de perder a vida em troca do seu amor, sendo que, preferencialmente, perder a vida um pouco depois de ter o amor dela, de já dele beneficiar, a fim de o poder experimentar, de o poder usufruir minimamente, pouco que fosse, por escasso tempo que fosse. A troca era essa, tudo pelo amor dela.

Anastácio Abastado centrava toda a sua existência no desejo de a ter, de fazer dela sua mulher, companheira, amante. Sim, principalmente amante e companheira, que mulher já ela era. Era tão árdua a sua vontade, a sua necessidade dela, que ansiava até pelas discussões, pelos gritos e azedumes de uma vida a dois, ou a mais, que filhos não estavam postos de parte, se bem que, para já, tinha de começar por conseguir a mãe dos pequenos. Sem ela, nada disso faria sentido, nem teria possibilidade de existência, sequer. Sem o amor de Felismina nem o seu futuro se apresentava nítido, apenas uma névoa desfocada por entre a qual todas as formas não passavam de esbatidos contornos, indecifráveis escuros na neblina, sem limites, recortes precisos ou nitidez que permitissem identificações ou orientação, como nas telas de Noronha da Costa. Sem ela não havia caminho.

O objetivo era claro e aglutinador. Nele se centrava e concentrava Anastácio, 24 sobre 24 horas, sem turnos, paragens ou intervalos. Apenas breves interrupções higiénicas, que as necessidades são isso mesmo, uma necessidade e o mesmo é dizer uma urgência, biológica ainda por cima. Felismina não era totalmente insensível aos seus avanços, à forma como ele vinha apertando o círculo em torno do seu mundo. Mas ter conhecimento e até, porventura, emocionar-se pela forma apaixonada como ele a cortejava indiretamente, não é o mesmo do que estar recetiva, e sobre a correspondência dos seus sentimentos, Anastácio sabia muito pouco, isto apenas para não avançar já para um derrotista zero.

Já conhecia o círculo de amigos de Felismina, onde muitos lhe chamavam apenas Mina, o que achou um bom pronúncio, pois sempre tinha sido bom em prospeções, de terreno e não só. À conta dessa sua inata intuição e capacidade para antever o que ainda não se apresentava, tudo o que ainda lá não estava, mas que era já uma promessa, tinha Anastácio Abastado erguido o seu reino, enquanto ‘empresário da noite’. Um império de poder e fortuna que havia começado pela venda de colchões porta-a-porta, o qual passou, mais tarde, para uma loja física e hoje era o magnata das boas noites e das noites bem dormidas nas vendas online. Para dormir bem, num sofisticado colchão ortopédico, de molas ensacadas, latex ou qualquer outro tipo ou qualquer outra mida, tinham de passar por Anastácio. O seu negócio era a noite – apelidava-se mesmo o verdadeiro e único barão dos negócios da noite –, pelo que Anastácio achou apropriado ter também alguns clubes noturnos, com umas belas estrangeiras a animarem a vida dos clientes nos seus próprios colchões. Era, por assim dizer, um complemento espectável e uma forma de dinamizar o universo da noite. Pelo meio, testavam-se as capacidades, resistência e durabilidade dos colchões, produto que lá pelos clubes noturnos tinham muito e bom uso. As receitas falavam sobre isso melhor ainda do que Abastado. Em pouco tempo, pôde mesmo dispensar o departamento de qualidade e verificação, já que as profissionais da noite passaram a estar responsáveis por essa verificação diária, ou seja, noturna, mas feita todos os dias.

Com a sua incursão nos negócios da horizontalidade sexy, concebida para a classe A+, mas cuja real qualificação energética nem sempre era de topo – a tomar como verdadeiros os desabafos das suas funcionárias –, chegou às mãos de Anastácio, um inesperado bónus: o poder. Sim. O poder. Recebem-se umas caras aqui, uns apelidos ali, usa-se de discrição, evitam-se flagrantes, os amigos recomendam… Depois, vêm os amigos dos amigos, os políticos, a magistratura e, em breve, já se faz sombra à Maçonaria, num local onde nem avental, nem roupa são necessários. Anastácio acordou um dia e percebeu: Era o Rei. Mas merecia-o, hã! Sempre teve cabeça e intuição para o negócio. Nos seus estabelecimentos, por exemplo, nada de celebridades ou vedetas, que essas gostam e exigem atenção e mimo e atrás delas, que nem cauda de cometa, anda sempre uma trupe de escroques muito estranha. Isto já para não falar nos jornalistas que atraem. A todos esses, os bastidores eram interditos. Se quisessem beber um copo, tudo bem, mas cá fazer supervisão de qualidade aos seus colchões, nem pensar.

 

Entusiasmado com a imagem que tinha de si mesmo, seguro de que o seu look&feel estava suficientemente aprimorado para suscitar suspiros a Felismina, Anastácio acordou, certo dia, determinado a atirar ao alvo. Bem ao centro do seu maior desejo, o de tornar Felismina sua mulher. Atirou-se ao assunto, como quem se lança num dos seus confortáveis colchões, e foi-se ajeitando no aconchego das fibras 100% naturais, a fim de acamar na mente de Felismina, a ideia irrefutável de que era o homem certo para a fazer feliz. Felismina não era insensível ao inebriante afrodisíaco que é o poder, atraída pelo sucesso de Anastácio Abastado. Porém, sentia uma constante sombra sobre tudo isso. Uma sombra que resultava de um somatório de nuvens negras. Para que desse certo, para que acertassem os ponteiros de um relógio que deveria ser rigoroso, compassado e dar as horas certas em todo e qualquer momento, havia coisas que necessitavam de mudança urgente. Desde logo, a negatividade com que olhava o negócio da noite. Claro que compreendia e aceitava, sem moralismos, que o sexo é apenas mais um negócio, tão honesto e necessário como qualquer outro. Não tinha preconceitos a esse respeito, mas tinha-os em relação a ver-se intimamente ligada a ele. Ser a mulher do rei da noite, não era título que ambicionasse. Assim, elaborou uma lista de condições que Anastácio teria de aceitar, se realmente quisesse casar-se consigo.

Ponto 1 – Deixar os clubes noturnos, era imperioso e surgia no topo da lista.

Ponto 2 – Não havia muito glamour em vender colchões. Ainda que não envergonhando quem quer que fosse, não era um setor sexy. Imaginava-se mais a ser a mulher de um empresário hoteleiro, um designer de iates, um chef de renome, um artista ou algo do género. Colocou a Anastácio o repto de mudar de área de negócio.

Ponto 3 – Tinha de se tornar um homem mais refinado. Mais educado e requintado. Socialmente mais polido e charmoso. Achava piada à sua forma direta e descontraída, ao seu constante “estou-me nas tintas”, mas nenhum destes traços o elevava o suficiente na escala social, nem era meritória de significado cultural.

Ponto 4 – Ser menos agressivo. Liderava pelo medo e isso era intimidante e pouco contemporâneo, ou nada inclusivo como agora está tão em voga dizer-se. Há que aceitar opiniões alheias.

Ciente da sua rudeza, Anastácio ponderou todos os requisitos, irritado, ainda assim, por perceber não estar ainda à altura dos desejos de Felismina, e complacente por acatar que nunca se esforçou para ter uma imagem mais elegante. Gostava de si mesmo tal como era, caramba! Mas Felismina fazia tanto o seu género, sentia tal frémito no peito só de pronunciar o seu nome que considerou ser chegado o momento para se tornar num homem melhor. Menos agressivo, mais sedutor e meigo. Mais correto e consensual. Começou, com grande mágoa, por se afastar dos seus clubes noturnos e das suas exóticas e aguerridas funcionárias, embaixadoras de primeira de um negócio exemplarmente correto, no meio do mundo sórdido da noite. As raparigas ganhavam fortunas e, com isso, dinamizavam o negócio como se fosse seu. Eram uma bizarra família, mas para se ser família tem de se ser bizarro, verdade? Uma família exemplar é uma família que não existe de verdade. Houve choro, lágrimas, abraços, ‘adeuses’ e até algum sexo de despedida, que Anastácio não era de recusar uma borla, mais ainda com profissionais. RosAmor ficou a gerir a cadeia noturna e Anastácio ganhou um valioso ponto na tabela do deve e haver de Felismina.

 

A fim de capitalizar todo o seu know-how do negócio dos colchões, transformou as fábricas em bem-sucedidas empresas têxteis de nova geração, com fibras bioapetecíveis e nanotecnológicas, sem gasto de água e absolutamente amigas do ambiente. Principalmente do clima amoroso junto de Felismina. Não tinha sido má ideia. Percebeu até que andara a desperdiçar conhecimento num negócio menor, quando todo o universo da moda mundial dependia agora dos seus inventos têxteis. Tornou-se um magnata das fibras. Sentia-se cheio de garra e dos seus laboratórios saíam patentes como nabiças selvagens à beira-rio. Não tardou a figurar na Forbes, ou no Jornal Económico, não ligava muito a títulos.

Por essa altura, já pouco ou nada teria de fazer para cumprir os pontos três e quatro, na medida em que o mundo que se abriu a seus pés, era identitariamente de outra natureza, o que o foi moldando naturalmente. Lidar com cientistas e estilistas, grandes empresários internacionais e ter de dar entrevistas amiúde, foram trazendo ao de cima um novo homem, mais culto e sofisticado, mais alerta e sensível. Foi agraciado pelo presidente e recebeu mais chaves de cidades do que aquelas que conseguia colocar no chaveiro. Era outro tipo de poder e de sucesso. Não lhe desagradava, muito embora, à noite, ainda sentisse falta do frenesim do seu serviço de colchão-com-animação. Comentava-se em alguma imprensa mal-intencionada, que Anastácio era ainda o homem na sombra do negócio da noite, e que RosAmor era bem mais do que uma frontwoman dos negócios. Tudo foi delicadamente esquecido, além de que nada disso colidia com a imagem cool de Anastácio, que se tornara um hábil relações ‘púbicas’ da sua vida. Além disso, nunca escondera de onde viera, nem renegara o seu passado. “Limito-me a matar saudades da casa que me viu nascer e crescer. A casa onde me fiz um homem do mundo.” Com ternurentas saídas desta natureza, Anastácio tinha ótima imprensa e a compreensão popular.

 

Felismina rejubilava com este novo homem, que, em seu entender, o amor e o desejo esculpiram a escopo e martelo. Não via a hora de marcar o casamento e disso falava já com impaciência, ao ocupado Anastácio. Estava difícil encontrar agenda para o grande evento e Abastado, que muitos tratavam agora apenas por o grande AA, começou a questionar-se sobre essa permanente falta de tempo da sua parte para cumprir o grande propósito da sua vida, que lhe consumira oito longos anos. Seria a velhice a chegar? Aquela falta de entusiasmo e de ânimo para o que realmente importava, inquietava-o e entristecia-o. Do que se tratava?

Um dia, ao ver chegar Felismina, Anastácio Abastado sentiu algo estranho. Algo que morava paredes-meias com o desconforto, ali para os lados da rua do embaraço. Felismina era pouco graciosa e, reparava só agora, tinha um tique que, em rápidos e repetitivos esgares, lhe deformava ligeiramente o rosto. Tomou consciência do quão insegura era e de como isso o incomodava. Compreendeu todas as razões e mais uma de todos esses sentimentos que, de mansinho, o vinham a inquietar. Felismina não estava à sua altura. Já não era junto dela que se queria deixar dormir todas as noites em agradáveis conchinhas noturnas. Felismina era simplória, meio sopeira, pretensiosa, arrogante, despropositadamente altiva, quando era apenas uma simples boçal, sem qualquer outro interesse na vida que não fosse, hoje em dia, o de mudar a vida de Anastácio. Era ainda uma pessoa de índole duvidosa, na medida em que quando se ama, ama-se porque sim. Ama-se por tudo e apesar de tudo.

Quem pode honestamente amar outro alguém e pedir-lhe que mude tudo em si para que o possa de verdade e em absoluto amar? Não é tudo isso um enorme contrassenso? Teria chegado a sua vez de lhe colocar imposições para que se pudessem casar? Que pontos lhe apresentaria como condicionantes? Que arranjasse toda uma nova vida? Que se cultivasse um pouco mais? Que não falasse tanto nem tão alto? Que fosse mais recetiva e compreensiva? Que aceitasse que o mundo não girava à sua volta, mas sim do Sol? Que se tornasse uma pessoa mais genuína e altruísta? Que ganhasse classe e profundidade psicológica? Que se risse mais e ganhasse ligeireza? Que deixasse de compensar fraquezas com manias de grandeza? Não. Não valia a pena. Podemos mudar de profissão, mas mudaremos de natureza? Além disso, aquela coisa entre ele e RosAmor prometia. A par das suas loooongas e sensuais pernas, que nunca tinha verdadeiramente esquecido, ela tinha-se revelado uma empresária astuta e arguta. Inteligente, aguerrida e ardilosa. Nos anos em que todo o negócio lhe esteve entregue, os lucros duplicaram a cada ano e isso excitava-o loucamente. Tinha passado do varão para a engenharia financeira, como manteiga para pão quente. Imaginava já como, juntos, dominariam a metade do mundo que faltava conquistar: a do amor pleno e sem reservas. Bom, podiam reservar coisas, como quartos com bons colchões, rijos e fofos a uma só vez, uma fraqueza de sempre de Anastácio Abastado, um homem de fibras, pois claro! De juba rija, seguramente, e acabava de perceber quem era a sua leoa.

Moral da história:

Que nada nem ninguém se meta entre um homem e um bom colchão.

By Flashhawk

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