Mas ele era tão bonito, mãe!

Tinha umas mãos grandes e protetoras, daquelas em quem se confia, daquelas onde cabe o amor e a gratidão. Dizes-me sempre para olhar bem as mãos dos homens. Que elas dizem muito sobre eles. Foi o que fiz. As dele eram incríveis. Suaves e expressivas. Uns olhos tranquilos, por onde se banhava um mar azul, numa leve ondulação de calmaria. Apetecia mergulhar neles. A voz, grave mas doce, convidava a sonhar. A acreditar num mundo em que lobos se casam com cabritos, mãe! Em que só o amor importa. Ele só queria descansar um pouco. Apenas serrar os olhos e atracar o corpo, um corpo cansado de tanto retesar os músculos contra a vida. Que mal viria ao mundo se ele entrasse, mãe? Refrescasse a garganta com um pouco de água. Se encostasse por momentos no sofá? Se passássemos a tarde a conversar disto e daquilo? Achei que compreenderias. Que não levarias a mal. Com ele poderia aprender coisas que desconheço, vivências pelas quais jamais passei ou passarei. Seria tão refrescante, mãe. Não está sempre a dizer que o melhor da vida é aprender? Conhecer coisas novas? Abraçar a aventura e, com cautelas, o desconhecido? Claro que não me esqueci do que sempre me dizes. Não te preocupes que tomei precauções. No copo de água, onde o meu belo estranho se refrescou, apenas um daqueles comprimidos que tomas para dormir, não fosse eu estar a romantizar o momento e ele querer, afinal, impingir-me a venda descabida de uma enciclopédia em papel, ou apenas estar de olho nas pratas da avó. Uma precaução tola, bem sei, mas… mais vale jogar pelo seguro, como sempre dizes.

Mas ele era tão atraente, mãe!

Em vez de o mandar entrar, apeteceu-me tanto, mas tanto, entrar no carro dele e partir à descoberta. Rasgar mapas e caminhos e inventar novos trilhos com aquele desconhecido de sorriso aberto. Se o tivesses visto, mãe, encostado à ombreira da porta, com aquele brilho nos olhos. Senti cá dentro coisas novas e acreditei, sem reservas ou equívocos, que era amor à primeira vista. Não era apenas um, era aquele. O tal. O meu. Finalmente conhecia-o. Ele ali estava. À minha frente, a bater à minha porta. Tão charmoso e cheio de pinta. Nem conseguia ouvir o que dizia. Nem era preciso. Estava tudo a ser dito através da reta que unia os nossos olhares. Os ouvidos não foram chamados a intervir. Uma onda de energia pura e simples preenchia todos os nossos sentidos, arrepiando o olfato e inebriando a pele. E era recíproco, mãe. Ele sentia o mesmo, preso que estava a mim. Recordaste das algemas que trouxe certa vez de uma sex shop onde trabalhei? Usei-as nele, mãe. Não podia permitir que nos afastássemos cinco centímetros que fosse, por isso o algemei a mim. Estávamos destinados a ficar juntos, porque não assumi-lo dramaticamente, quando é drama e apoteose aquilo que o amor mais clama? Que nos ligássemos logo ali, sem demoras. Ele ainda implorou e – imagina a sensibilidade dele –, até chorou, mas expliquei-lhe que não se apoquentasse. Jamais pensariam mal dele. Que o fazia de livre e espontânea vontade, que era meu desejo amá-lo perdidamente para sempre. Aquele era o encontro de duas vontades perfeitas.  Nada nem ninguém o poderia contrariar.

Mas ele era tão compreensivo, mãe!

Pela primeira vez na vida era plenamente compreendida. E logo por um estranho. Alguém que não conhecia. Que jamais tinha visto na vida. Foi a maior surpresa de todas no meio de tantas e tão avassaladoras novidades. Não éramos amigos, não partilhámos anos de escola nem brincadeiras rua. Apenas dois estranhos na noite, como cantava o adorável Blue Eyes de quem tanto gostas, mãe. Não é o máximo tudo isto? O meu grande amor. Veio até mim, de rompante, com a certeza do que fazia. Foi por amor que lhe dei um murro, para que parasse de gritar o seu amor por mim, mãe. O que pensariam os vizinhos se me ouvissem com um homem cá em casa na tua ausência, mãe? Só vê-lo entrar em casa sem tu cá estares já devia dar falatório, imagina se lhes perturbássemos o silêncio dos serões passados frente à televisão.

Este homem que tanto aguardei e que bateu à minha porta sem medo, encostou a cabeça no meu ombro – o comprimido deve ter ajudado –, apertou a minha mão na dele – que as algemas não permitiam largar –, aceitou-me como sou… É certo que perdeu parte do meu discurso de autorrevelação – devo ter esmurrado o pobrezinho com demasiado entusiasmo –, mas o amor também é excesso e exagero. Ele compreendeu tudo, mãe. Ele viu-me tal como eu era. Uma mulher apaixonada e determinada a galvanizar aquele sentimento que nos tomou de assalto, naquele fim de tarde de outono. Logo a minha estação preferida, a seguir ao verão e à primavera e logo depois do inverno. Também era a preferida dele. Vês como, até nas pequenas coisas, estamos unidos, mãe? Aposto que também tu te vais apaixonar por ele e compreender porque tive de o fechar no quarto de visitas, algemado à barra da cama. Que sorte teres-me convencido a comprar uma cama de ferro. É tão prática quando queremos amarrar alguém à cama.  Ninguém nos fala destas vantagens quando entramos numa loja cheios de dúvidas sobre que mobília comprar. Pois bem, senhores vendedores de mobílias de ferro com barras e arabescos, poder algemar em segurança um amante à cama é um dos prós que devem anunciar ao potencial comprador e um argumento sólido que se basta a si próprio. Ninguém poderá rebater este facto, alegando que não, que não serve para isso, na medida em que entra pelos olhos que serve e que provavelmente até foi para esse efeito que foi feita de ferro com barras na cabeceira e na pezeira. Trabalhem melhor a vossa argumentação, senhores vendedores de mobiliário de quarto e afins.

Mas ele era tão apaixonado, mãe!

Se visses como ele me olhou quando acordou e percebeu onde estava, mãe. Se ao menos eu te conseguisse explicar o êxtase daquele olhar de homem apaixonado. Nunca ninguém me olhou daquela forma. Aquele olhar era quente e sedutor. Dizia o que as palavras não conseguem. Eu tinha-me esmerado. Havia velas e incenso, música e sedução. A surpresa no seu rosto. Os olhares de luxúria. Não sei se se dizem estas coisas às mães, mas o desejo dele era palpável. Não fisicamente, já que a nossa ligação era absolutamente espiritual, como já percebeste, mãe. Mas havia uma enorme carga sexual em tudo aquilo. Foi demais para ele. Gritava de paixão, esperneava de prazer. Foi tal a loucura que desmaiou. Mas como sangrava da cabeça, também pode ter sido das pancadas da cabeça dele de encontro à barra de ferro da cama, provocadas pela violência do nosso amor carnal em apoteótica manifestação. Ainda gemia de prazer quando acordou, o meu amor. Não te preocupes, mãe. Lembro-me bem das tuas palavras e recomendações. Claro que tomei precauções. Uma hora antes obriguei-o a tomar um viagra, já que, muitas vezes, quando o amor é excessivo o corpo não consegue acompanhá-lo e igualá-lo em intensidade. Tudo controlado, não te apoquentes, que a tua filha sabe bem o que faz.

Mas ele era tão gentil, mãe!

Se presenciasses a delicadeza com que me falou quando voltou a acordar do trágico clímax que o atirou para meia hora de satisfação inconsciente. Se olhasses o desespero do amante nas suas pupilas dilatadas pelo sentimento. Como ele me ama. Como ele depende de mim. É ternurento vê-lo suplicar pelo meu amor, pela chave das algemas, por liberdade… É uma mente revolucionária, um poeta, um aventureiro. Também eu quero ser livre. Livre para amá-lo, para sermos felizes, para fugirmos abraçados, para corrermos de mãos dadas e nos perdermos nas horas em longos beijos… Claro que o libertarei. Começarei pelas algemas. Não encontro a chave. Isto terá tido chave alguma vez? Onde a terei metido? Talvez consiga com uma chave de fendas, sem ter de lhe cortar os pulsos…

– Filha, a mãe já chegou. Onde estás? Sempre veio o técnico da máquina de lavar louça? Esqueci-me de te avisar, mas ele tinha ficado de passar por cá, por volta das 15h.

Moral da história:

Deixe os outros falar. Por vezes, o que eles têm para dizer pode evitar embaraços ou mesmo tragédias e, até, homicídios desnecessários.

Partilhar