Num misto de empatia, pena e odiosa revolta, Rubina compadecia-se e irritava-se com tudo aquilo. Claro que a comovia a situação de Ilda, sua amiga desde o início dos tempos. Mentira, desde o 6.º F, o que nesta fase das suas vidas era quase a mesma coisa do que desde sempre, que o que ficou para trás do 6.º F já pouco importava. Condoía-se com as lágrimas dela, com a dor visível naquele peito em chaga, no desespero do olhar, igual ao de quem não sabe nadar e se apercebe de que já não tem pé. Há quanto tempo não teria pé? Como não se tinha apercebido? E se apenas agora estava fora de pé, não poderia recuar um pouco, rodando, talvez, o corpo e voltando a conseguir roçar, que fosse, com a unha do dedo grande num único grão de areia? Só isso e já seria consolo. Só isso e já consideraria ter pé e ter fé e acreditar e ter esperança de que sairia dali com vida. Molhada, aterrorizada, mas viva e com ambos os pés e com toda a areia do mundo sob eles. Rubina reconhecia esse olhar de pânico, medo e incerteza, como se já cheirasse a tragédia, a morte, o fim de tudo e para sempre.
Recordava-se de ter visto esse olhar de pânico nos olhos pretos da sua prima Cesaltina, quando, em miúdas, se separaram do fundo de areia sem disso se aperceberem. Rubina, uma eterna sobrevivente, rodopiou sobre o corpo, esbracejou e esperneou, como sempre fazia quando queria obter alguma coisa, e lá conseguiu o seu ínfimo atol de areia segura, na qual fincou o pé forte e pesado. Já caminhava. Já saía do vazio. A prima não. A prima ainda lá. Olhos brilhantes e profundos como turmalinas negras. Também eles sem fundo, como a água do mar. Rubina voltou. Aproximou-se. Não sabia. Devia antes ter pedido ajuda. Cesaltina finca ambas as mãos na sua cabeça, forçando-a para debaixo de água. A prima tentava trepar pelo ar, acima da sua cabeça, mergulhando Rubina no desespero e precipitando-a naquele lugar onde não chega o oxigénio e tudo é confuso e desesperante e sem saída e… largaria a prima. Tinha de se libertar dela. Não conseguia respirar e a outra não ouvia, nem via, nem entendia que se continuasse a empurrar a prima nenhuma se safaria. Rubina conseguiu dar um murro na cara de Cesaltina, cujos braços se movimentavam num fast forward tresloucado, de quem suplica pela vida, de quem acredita que só assim poderá salvar-se. Agarrou-lhe um punhado de cabelos e, com alguma distância das suas gavinhas suplicantes, conseguiu trazê-la para terra. A outra vinha com o rosto forçado para baixo, e só por pouco não morreu do salvamento.

By Tom Cuppen
Por isso, Rubina conhecia bem esse olhar. Esse desespero. Esse fim do mundo e de oxigénio, onde estamos sempre sós, onde talvez apenas nós nos podemos valer, assim tenhamos força e um pouco de sangue-frio e discernimento. Ou, em compensação, uma mão que nos agarre um punhado de cabelos e nos traga à tona, para chão seguro, para um lugar onde respirar não é impossível. Rubina já o tinha feito uma vez. Voltaria a fazê-lo. Olhou a sua mão de dedos esguios e ossudos e palmas bem proporcionadas. Voltaria a agarrar uma mulher pelos cabelos, se preciso fosse, e trá-la-ia de volta à praia, à areia quente e ao sol escaldante. Já tinha aprendido, entretanto, que um braço forte em torno do pescoço, mantendo o nariz da náufraga em direção ao céu, é o procedimento correto. Assim, não haverá mãos a tentar enterrá-la na água também, nem o risco de matar a pobre na tentativa de a salvar. Ambas a respirar livremente, rumo à areia, à segurança. Mas Rubina não se preocupava muito com a parte do corpo que necessitaria de agarrar para tirar a amiga do abismo. Qualquer uma serviria. Nada de sensibilidades, que o momento não se predispõe a perdas de tempo nem a cálculos ou melindres. Puxá-la-ia como fosse. Com a força e durante o tempo necessários. À bruta ou com delicadezas, conforme o que melhor se adequasse a esta nova situação que, embora metendo quilómetros cúbicos de água, podia implicar mais colo do que puxões. Mais compreensão e apoio do que arrepelões e cabelos pelo ar.
Porém, não era a tristeza de Ilda aquilo que mais enchia o seu peito de sentimentos tempestivos. Aquilo que mais preenchia e ocupava todo o seu espaço emocional, era a vontade de rachar ao meio o sorriso de dentes tortos da GB, a Grande Besta, como agora lhe chamava. A Grande Besta acabava de lançar um dardo envenenado direto na aorta, inundando de peçonha tóxica toda a vida de Ilda. Isso doía-lhe no seu próprio corpo. Sentia cada gota do ácido a corroer as suas próprias entranhas. Nada é mais comovente do que o sofrimento dos outros, quando nada podemos fazer. Mas Rubina podia e faria. A começar por alguns reparos, aparentemente cruéis, mas necessários.
Brutalmente frontal, Rubina começou por apontar o dedo a Ilda. Sim, já que estava no chão, convinha que a colasse a ele por completo. Evitavam-se estéreis comiserações, sempre muito patéticas, e Ilda ficaria em melhor posição para se reerguer.
– Somos todos livres de amar qualquer tipo de estafermo e, sem o merecermos ou prevermos, acabarmos enganados, desiludidos, magoados e traídos, mas ficar na sua total dependência, cegos, surdos e mudos perante o óbvio, e deixarmo-nos humilhar, isso é culpa nossa e não do estafermo. Foste demasiado permissiva e ingénua, para não dizer idiota. Perdeste a tua identidade, insuflando a dele. Olha para ti! Sem autoestima, derrotada, perdida, sem autonomia financeira e emocional, pele e osso… Não me digas que foi por amor, porque isso não é amor. É estupidez, é subordinação e falta de respeito próprio. Agora, assume a tua parte do erro e faz uma mala de roupa. Vais para a minha casa. Vou levar-te, e já! Não me olhes com essa cara. E maquilha-te, que pareces um cadáver! Em casa vou dar-te colo e caldos de galinha, mas prepara-te para a viagem que eu ainda não disse tudo. Livra-te de pegares em fotos ou outros ‘recuerditos’ de merda desta relação de merda. Anda!
O tom, a aspereza e a insensibilidade foram certeiros e operaram milagres. Era o remédio em falta naquele amor de luto, naquele corpo esquecido, naquele peito vazio, mas, ainda assim, em tumulto. Sem dizer uma palavra, sem verter mais uma única lágrima, Ilda apenas obedecia compenetrada, maquinal e rapidamente, ou assim lhe parecia, que opinião diferente tinha Rubina. Esbaforida, transpirada e elétrica, como se sufocasse naquela casa, cujo ar tóxico a enlouquecia, Rubina quase rasgava a roupa que ia tirando dos armários e gavetas. Atulhou um saco plástico do lixo com todos os sapatos e ténis de Ilda e estava pronta para sair. Olhou em volta. Parecia satisfeita por saber que aquela era a última vez que olhava para a cela onde Ilda se deixou manter em cativeiro, às mãos de um carrasco sádico e opressivo, que em apenas três anos deitou por terra uma mulher incrível, ceifando todas as suas características, mondando todas as suas razões de sorrir e de viver. A GB era napalm e Ilda tinha-se incendiado como capim em tarde de verão.
No rosto de rubina, um sorriso sarcástico. Em cima de um aparador, a chave do Mercedes da GB. Que maravilha! A Grande Besta tinha saído a pé. Deus existia e estava ali a entregar-lhe uma tão agradável desforra. Era como se aquele Mercedes já não existisse. Para o caso de apenas isso não ser suficiente para repor os seus níveis de reparação no sangue, agarrou ainda no computador da GB.
– Ilda, traz também o teu computador, telefone e carregadores e vamos embora. Rápido.
Mais do que uma cama confortável, longe de gritarias, humilhações e mentiras, Rubina puxou sobre Ilda os lençóis da segurança, da tranquilidade, aconchegou-a com cobertas de estímulo e condimentou cada caldo de galinha com pedaços de confiança. Elogiou-a, mostrou-lhe como havia tudo para fazer, como era linda e incrível. Enumerou-lhe todas as coisas que só ela sabia fazer da maneira como só ela sabia e mostrou-lhe como isso era extraordinário. Colher a colher, Ilda medrava. Quase sorria. Rubina reabilitava Ilda com a paciência de uma mãe e o entusiasmo de uma irmã. Ilda até já metia conversa com Rosalindo, namorado de Rubina, com quem partilhava a casa, mas que mal ousava olhar de frente. Assim era o estado de Ilda, uma não-pessoa, um resto de humano, um desperdício de gente. Menos do que um farrapo. Vieram sorrisos, gargalhadas, vontade de sair e de fazer compras, de retribuir o que por ela faziam e muitas outras coisas. Rubina, ‘rubinava’ de satisfação, daquela que surge de missões cumpridas e atos solidários. Uma felicidade só nossa, da qual ninguém nunca terá conhecimento e que se expressa em auto-congratulação por tão majestoso gesto. Recuperar uma pessoa, reabilitar uma alma. Que tarefa bonita. Rubina reconheceu que gostava mesmo da pessoa que era e de como aquilo que a movia e estimulava não era mais do que a felicidade dos outros. Ilda nada tinha de lhe agradecer, pois aquilo que ia no peito de Rubina e os quilos a mais da amiga, pesados em autoestima e validação, superavam qualquer reconhecimento ou obrigado. Seria por egoísmo que se dedicava assim aos outros? Para sentir tamanha gratificação? Tão satisfatória invasão de bem-estar? Seria paternalista? Seria narcisista? Quando muito sádica, que o prazer que teve em fazer desaparecer o Mercedes da GB ainda lhe causava estremecimentos e frémitos de prazer. Tanto disparate, rematou Rubina, vendo as horas e percebendo que era ainda tempo de mais um caldo de galinha, para garantir que não havia recidivas. Há que jogar pelo seguro, que esse, dizem, morreu de velho, sem nunca se sentar numa cadeira de rodas nem experimentar a demência, e mais do que isso não se pode pedir.
Ilda recompunha-se. Lenta, muito lentamente. Mas erguia-se. Um dia, Rubina chega a casa e encontra-a escandalosamente feliz, a rir e a brincar com Rosalindo. Cozinhavam, bebiam um copo e denunciavam ligeireza, como as bolhas de uma qualquer bebida gaseificada que sobem pelo copo até rebentarem em efervescência à superfície. Foi essa a imagem exata que ocorreu a Rubina. Sorriu para eles e depois riu com eles. Mais uma que já calcava a areia, que ganhava asas. Que já previa terreno para onde atirar o corpo. Pois foi isso mesmo que Ilda fez. E com estrondo. Mais exatamente para cima do corpo de Rosalindo e da cama que partilhava há anos com Rubinda. Rubinda, que é boazinha, mas nada tem de estúpida, menos ainda de vaga ou distraída, e embora não tenha captado os sinais – interpretando-os como o renascimento da GC, sim, Ilda é agora a Grande Cabra – não tardou a dar nome ao que se passava: Traição da pura, da mais sonsa e inadmissível. Reles, mundana e ingrata Traição (sempre com caixa alta que há coisas que exigem destaque).
Por não ser dada a autocomiseração, achar desperdício em qualquer tipo de lamento e porque jamais teria pena de si mesma, por ser exatamente como era, saiu apenas de casa. Se aquilo tinha acontecido, então aquele não era, definitivamente o seu caminho. Prosseguiria na direção que o seu coração indicava. Porta fora. No coração um aperto, na mão uma mala de roupa e o secador de cabelo. A Grande Cabra podia ficar com o estafermo. Uma GC merece ficar com um homem capaz de trair a própria mulher com a sua melhor amiga desta. Parecia a Rubina que tinham mesmo feitos um para o outro, mas jamais lhe deixaria o seu secador de cabelo profissional.
Encarnação não quis saber detalhes, embora os tenha ouvido num silêncio interrompido apenas pelo batimento cavalar do seu coração, próximo da apoplexia perante episódio tão canalha. Aquilo era digo de capa de um tabloide em qualquer parte do mundo. Fossem os protagonistas minimamente conhecidos e alimentariam páginas e páginas de revistas durante semanas. Felizmente não eram, o que pouparia a sua amiga a mais essa humilhação pública. Rubina encontrou colo para o mais absurdo dos episódios que lhe tinha sido dado a viver em toda a sua existência, e já tinha passado por muita merda. Nada de tão fedorento, percebia agora. Nada de tão vil e violento.

By Kai Zoehl
Encarnação não precisou de lhe dar colo, que Rubina, não sendo insensível, era bem resolvida e sabia que o caminho faz-se para a frente e não para trás. Estava carente, necessitada, triste e perdida, mas um teto chegava-lhe, um poiso provisório até se endireitar de novo era quanto basta. Não precisou de pedir. A amiga Encarnação, um pouco mais velha, mais vivida e eternamente solidária em todas as questões que implicavam a escassa sororidade, abriu-lhe a porta de casa e de toda a sua vida privada. “Ficas cá em casa até que seja preciso.” Rubina aceitou. Não tinha como recusar. Aliás, não fora por outro motivo que tinha ido direta ao encontro de Encarnação. Sabia bem com quem podia contar. Ainda que não falassem todos os dias, eram amigas puras, desinteressadas, daquelas com quem a conversa não se interrompe apesar da distância temporal com que se desenrola. Entrou, assim de rompante, na nova casa e na nova vida de Encarnação, onde ainda não tinha ido. Havia um novo homem na sua vida, que Rubina também ainda não conhecia. No seu íntimo – e disso sentiu um pouco de vergonha – desejou que não estivessem na fase de lua-de-mel, para que não se sentisse tão mal pela sua situação, em plena dor de corno, nem um empecilho na intimidade da amiga, que uma casa é sempre suficientemente grande para receber amigos em aflição, mas sempre insuficientemente pequena para acolher visitas naquela fase em que uma paixão recente exige cada milímetro de espaço e de tempo aos novos amantes.
Entraram em casa de Encarnação e foram calorosa e informalmente recebidas por Rómulo, um nome digno daquele deus romano com olhos de hortelã e cheiro a rosmaninho. Não conhecia o novo amante da amiga. Olharam-se. Olhos nos olhos. Sorrisos patetas. Era um tipo estupendo. Rubina sentiu no peito um forte ardor e não apenas no peito. Era um homem incrivelmente atraente, muito físico e transpirava tudo aquilo que Rubina sempre apreciara fisicamente num homem. Rómulo. A isso somava-se um olhar intenso e perscrutador que falava tudo aquilo que não necessitava de pôr em palavras… Que pensamentos tão impuros e inapropriados numa tão desoladora situação. Seria aquilo o tal amor à primeira vista que sempre lhe parecera tão inverosímil e pateta? Como era aquilo possível? Não estava ela de luto? O que é que aquilo queria dizer? Talvez não devesse ficar. Porém… Olhou-o mais uma vez, já ele de costas e mesmo de costas tanto por desvendar. Rubina estremeceu. Rubina desatou a rir. Iria ela ser essa pessoa?
Moral da história:
Sorrisos patetas são apenas isso mesmo, patetas. Devem evitar-se.
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