Nitidamente fragilizado e febril, ele tremia. Tremia de frio. Daquele horrível frio que poupa a pele, mas não os ossos. Daquele gelo que cristaliza a alma e faz crescer estalactites no coração, afiadas como gumes de foice em ceara seca, ceifando a seiva da vida. Derrotado. Ele sentia-se derrotado. Parco de forças. Isento de energia. Por isso ali estava. Na cama. Encolhido em posição fetal. Mantendo reservas mínimas de alento. Níveis que apenas permitiam pensar. Não muito, nem muito bem. Um animal, outrora feroz, acossado no seu próprio covil. Culpava o mundo e aquela estúpida. Ambos cruéis e vingativos. Uma fiada de pérolas falsas resultava no garrote que, rente ao pescoço, lhe interrompia a oxigenação. Nas veias, sangue doente, em vagares de morte, circulava abaixo na velocidade mínima exigida naquelas vias que se desejavam rápidas. Só com elas no seu vigor máximo se chegava a tempo e horas à vida e à hipótese de felicidade, também ela interrompida. Um troço, agora, em obras, impossibilitando sentimentos, mesmo os de tristeza. Assim era o vazio de que se fazia aquele corpo, deitado em posição fetal. Acossado na sua própria comiseração. Odiava sentir pena de si próprio, pelo que preferia sentir raiva do mundo e daquela estúpida.

O ódio era-lhe mais saudável e substancialmente mais consentâneo com o seu temperamento de predador. Não fora a doentia mecânica do pensamento daquela odiosa criatura e tudo estaria bem na sua vida. Tudo seria amor e bonança. Harmonia plena com a sua cordeirinha. Mas aquela cabra maquiavélica engendrou vinganças despropositadas perante uma queca de circunstância. Não fora ele um lobo cheio de soberba, um ser superior e isento de culpas e estaria a autocriticar a sua falha de caráter, o seu erro de julgamento. Mas isso estava interdito à sua personalidade sem falhas, à imagem de perfeição que tinha de si mesmo. Era ela a culpada. Estava tão necessitada de sexo e atenção que entendeu tudo mal. Achou que havia espaço para algo mais do que uma brutal cópula entre dois conhecidos adultos. O que lhe passou pela cabeça? Que deixaria a mulher para ficar com ela, com uma qualquer lambisgoia? Que era amor? Mas quem confunde afeto com sexo? Muito casamento feliz não tem sexo e imenso bom sexo não passa de mera expressão sexual. Que mente distorcida habitava aquela cabeça estúpida? Não o ter percebido também era inexplicável, mas um lobo não se autoavalia. Não se autocritica. Um lobo é um lobo. Faz aquilo que se espera de um animal selvagem e nada mais há a considerar. Cada bestialidade no seu ganho. Uma trancada no carro, que não estava para gastar dinheiro em quartos de hotel com galdérias, e já se imaginava de solitário no dedo e bouquet de rosas à porta da conservatória.

O mundo andava louco. Uma abécula daquelas. Um mono em que jamais repararia para esse ou outro efeito, não fora o total descaramento dela e a sempre omnipresente disponibilidade dele. Nem sabe como aquele cérebro de minhoca conseguiu, nem por que portas, obter o telefone da sua cordeirinha, a quem contou tudo, acompanhado de devidas descrições gráficas, coisas ditas em êxtase e ilustrações fotográficas. Tudo muito bem documentado, quase uma tese da traição, numa mensagem odiosa, em que deixava claro que o nosso santo matrimónio já era. Já era. Tal e qual o pobre slogan. Acreditaria verdadeiramente nisso, ou limitava-se a tirar prazer na maldade? Aquilo era surreal. Conheciam-se há séculos, mas jamais foram íntimos, sequer amigos, quanto mais amantes. Aquilo tinha sido sexo puro e duro, mais duro até do que puro, e já ela se imaginava de branco. A solidão e o despeito são tramados. Logo que se sentisse com mais ânimo, ela compreenderia o que era uma vingança profissional. Para já, ele necessitava de repouso absoluto. Lamber feridas, acalmar frustrações, vitaminar positividades e sair daquela dor. Para já, tinha de reparar danos afetivos e reaver a sua cordeirinha.

A sua mente selvagem e predadora, que não distava assim tanto da psicopatia, onde empatia era sentimento inexistente, não perderia tempo com frontalidades infantis ou desculpas pueris O que estava feito, estava feito. Importava olhar o futuro. Pensar na coisa acertada e agir em conformidade com o seu egoísmo. Isso implicava perceber como manipular os sentimentos e bondade da sua cordeirinha de forma a reaver a sua confiança, o seu amor, o seu colo e, acima de tudo, a sua alheira de caça com espinafres do rio. Ah, que opípara degustação que era aquela alquimia gastronómica. Já salivava. Isso era bom sinal. Já estava a recuperar o sangue frio, o calculismo necessário. Primeiro, a cordeirinha. Depois – não muito depois, que a sua febre interior tal exigia –, trataria da cabra delambida que o colocara naquela situação de desconforto absoluto, encolhido na posição fetal, como os indefesos ou desprevenidos. Vislumbrava sinais de alerta no seu corpo. Uma comichão aqui, um joelho ressentido com aquela demorada posição e uma certa fome. Tudo indicadores de boa e saudável recuperação. Não desfez a incómoda posição, ainda que já lhe apetecesse esticar as pernas. Precisava desse desconforto, dessa dor física, para melhor pensar, com mais argúcia, detalhe e fineza. Não demorou a magicar o plano. Uma estratégia magistral, que iria, na perfeição, ao encontro do lado maternal e afetuoso da mulher. Uma ideia infalível. Transpôs para o plano matrimonial, para o elemento casal, o mesmo esquema mental que o alimentava naquele momento: debilidade física em nome de recuperação mental. Dito de outra forma, assumir-se-ia doente em nome da reaproximação afetiva. A reaproximação seria conduzida pela sua alegada dependência física. Sendo uma pessoa de bom coração, sólido caráter humanista e afetuosa, e ainda o amando – que a traição não mata de imediato o amor, ainda que o possa impossibilitar –, a sua cordeirinha obedeceria à mesma sequência de critérios da sua mente: primeiro, tratar do corpo que morre, e apenas depois do coração que sofre. Uma doença mata de forma mais fulminante e inesperada. Um coração sofrido, ou mesmo partido, pode sempre ser restaurado, lá mais para a frente. Há pessoas com esse pendor de cuidadoras, de dadoras, e ter á sua mercê um homem que ainda se ama, sofrendo de real padecer físico, seria demasiado tentador e prioritário, para que a traição se interpusesse.

Começou por gemer teatralmente, de forma fiteira e premeditada, mas logo percebeu que o seu corpo dorido, sem se mexer há mais de 24 horas, agradecia esse escape de stress. Era uma pequena dose de analgésico, perante o enorme incómodo articular que, de facto, sentia. Passou, então, a gemer genuinamente, de forma natural, deixando que a voz ecoasse a dor, bem mais real do que tinha suposto, enquanto apenas se entretinha com estratégias e teorias. Ela não tardaria a ir ver o que se passava. Logo que estivesse ao alcance do seu braço, agarrá-la-ia com paixão e trataria de a envolver com a sua magia. Hipnotizá-la-ia como na primeira vez, como sempre fizera. Estaria, portanto, a alguns minutos de ter a sua vida de volta e tempo para engendrar a morte ‘natural’ da grande cabra que o colocara naquela miserável posição fetal. Uma perda de tempo, perante o muito que desejaria estar a fazer naquele preciso momento. Gemia cadenciadamente, de forma tão convincente que era real, ou tão real que era já convincente. Gemia sem controlo. Gemia. Os passos dela no corredor. O ouvido colado à porta. Tinha ouvidos de lobo astuto em hora de caça. Reconhecia mudanças de vento e o mínimo átomo trazia-lhe odores, sons e sabores que sabia interpretar como ninguém. Pareceu-lhe mesmo ouvir o batimento cardíaco dela, Acelerado. Descompassado. Aflito. Ela entreabriu a porta. Ele manteve os olhos fechados, a posição de sempre, a boca ligeiramente aberta, por onde se evadiam pequenos gritos de dor e mal-estar. Ela foi fria. Não entrou. Voltou a sair. Aquilo surpreendeu-o. Esperava outro comportamento. Tinha previsto que, por essa altura, ela estivesse sentada na cama, tentando perceber o que se passava e ele já teria enlaçado a sua cintura e domado o seu amor com palavras e lágrimas. Não abortou o plano. Era bom de mais para que não resultasse. Conhecia-a bem. Tão bem. Nisto, ela de volta. Ela que entra. Ela que se debruça sobre a cama. Ela que pergunta se precisa de alguma coisa. Ela que recua enquanto aguarda resposta.

– Água.

O pedido dele foi tão débil que ela teria de voltar a perguntar de novo, talvez o seu ouvido um pouco mais perto da boca dele e esse seria um momento decisivo no seu esquema infalível. Ela torna a perguntar, mas não se aproxima. Ele volta a repetir, nem por isso mais alto, para não deitar por terra tão bela estratégia de reconquista e toma. Ela sai. Regressa com água, que coloca junto à cama, sem a proximidade desejada. Ela parte.

Ela estranhou o silêncio e a mobilidade. Ela percebeu. Ela viu o corpo deformado e ouviu um barulho. Ela perguntou o que se passava e se ele precisava de alguma coisa. Ele disse que estava paralisado, que tinha o coração fora do sítio, que mal conseguia falar, que era prisioneiro de um corpo que não obedecia e já nem funcionava, por intuição que fosse. Ele pediu ajuda. Ela que se aproximasse. Ela foi breve. Sem denotar emoção, disse-lhe que o conhecia bem de mais, para confiar nele. Que ele apenas aguardava que ela se aproximasse para, com seduções de serpente Naja, com intrujices de cobra-capelo, nela se enlear para jamais a deixar partir. Que, esta vez, ela não permitiria tal desfecho. Que só caía nesse esquema de sempre, quando entendia que havia perdão possível. Que sabia muito bem qual a sua estratégia de sempre. Conhecia a sua mente e a sua forma de pensar. Ela sempre vira tudo, apenas se deixava ir por vontade própria. Não agora. Tudo tinha mudado.

Não obstante a distância colocar em risco os seus cálculos, ele arrisca o movimento que há muito ensaiava mentalmente, sem mais demoras, que aquilo já o começava a maçar. Estica o braço, tenta agarrar-lhe a mão. Não percebe o que correu mal. Vai demorar a entender que o seu braço apenas se ergueu na sua mente. Que o seu braço de verdade estava imobilizado. Reage num salto, aflito com aquela imobilidade do membro superior esquerdo, apenas para acordar para uma realidade que também não previu. Ele estava imóvel. Não se conseguia mexer. Ele estava completamente paralisado. Inerte. O copo com água que ela tinha colocado na mesa junto à cama tinha mais movimento do que o seu corpo. Não percebeu. Na sua mente a versão era clara: ele forçava aquela posição, autoinfligia aquele tormento, submetia-se a ele voluntariamente. Fora do plano mental, no mundo real para o qual acordava, ele não conseguia mexer um dedo que fosse.

Estava a sonhar. Assim se consolou. Assim aquietou o animalesco sobressalto interno. Gritaria no sonho, de tal maneira que acordaria de vez e trataria de abreviar toda aquela situação. Afinal, uma traição – a única de que ela tinha conhecimento, para mais – não é o fim do mundo, nem de um casamento sólido onde existe amor entre as partes, caramba!

Aquilo não tinha tido a menor importância, nem sequer em termos sexuais, que a outra nem sequer era criativa ou desinibida, era apenas carente e tudo se despachou rapidamente. Se o carro estivesse em andamento, não teria completado meio quilómetro. Meio quilómetro é motivo para terminar uma relação? Claro que não. Que absurdo. Nem no cinema, ou só no cinema, não sabia bem como formular a situação. O que sabia é que o episódio nem merecia a designação de traição. Traição acontece quando nos envolvemos com alguém e não o confessamos à outra parte interessada. Apenas sexo é apenas sexo. Não requer mais conversas. Não exige considerações nem dissecações morais. É apenas ruído e não uma coisa sólida e substantiva. Ruído era precisamente aquilo de que agora necessitada. Saiu daquele torpor meditativo. Gritou a plenos pulmões. Pelo menos achou que o tinha feito, e não acordou. Percebeu que não acordava, porque nunca estivera a sonhar e que o grito brutal que emitiu foi apenas igual aos restantes gemidos que julgara estar a inventar, com rasgos de dramaturgia. O seu coração galgou costelas e foi-se afundar, em desmesurada batida, no seu pé direito, aquele que mais lhe doía, e por lá ficou. Sentia as pulsações furarem-lhe a pele do pé, como acontece no local onde nasce e medra uma infeção. Bum-bum- Bum-bum. Bum-bum. Alguém acabaria por perceber o que se estava a passar. Alguém ouviria o seu coração a bater no seu pé direito, depois de ter galgado entranhas e se ter refugiado no mais recôndito beco que havia encontrado num corpo debilitado, em pose fetal.

Moral da história:

A realidade é absurda. Invente uma boa história para si e viva nela até ser (im)possível.

 

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