ELA

Carmen conhecia aquela árvore. Já a tinha visto. Tantas e tantas vezes que não lhe foi difícil reconhecê-la, embora jamais a tivesse visto ao vivo, em casca e folha. Em tronco e copa. Em seiva e madeira. Ali, fisicamente palpável. Um ser vivo e respirante. Mas era ela. A árvore com que sonhava desde bebé. A árvore que, de forma tão ilógica, a amedrontava. Que para ela sorria de forma macabra há já tantos anos.

Carmen tinha pavor de árvores. Sempre a assustaram. Não a assustavam apenas, aterrorizavam-na. Desde sempre, ou, pelo menos, desde que se lembrava de ser gente. Gente ainda pequenina e já com um insano e inexplicável medo de árvores. O primeiro a dar conta disso, a associar os inexplicáveis pesadelos de Carmen aos braços angustiantes das árvores, foi o avô – para casa de quem se mudaram, ela e os pais, logo depois da morte da avó –, que de pronto mandou cortar a gigantesca magnólia que chegava já ao primeiro andar, roçando a sua folhagem e as suas flores na janela do quarto da pequena Carmen, achando ele, na sua ingenuidade protetora, que era o barulho dos ramos e as suas sombras disformes, que passeavam pelas paredes do quarto da pequena, que a assustavam, entrando, assim, com facilidade, nos sonhos de porta aberta de uma criança. Só anos mais tarde, Carmen percebeu o terno e abnegado gesto do avô, que não hesitou um segundo em mandar abater um dos mais visíveis sinais do seu amor pela mulher. Fora ela quem plantara a magnólia no jardim frontal da moradia, no próprio dia em que soube estar grávida do primeiro filho. Era uma espécie de árvore da família, que decidira ter e criar com as suas próprias entranhas, tal como se fosse mais um filho. A mãe de Carmen cresceu a par e passo com a entusiástica magnólia, que ninguém imaginou que cresceria tanto e tão rapidamente, graças ao adubo da avó Paola, uma italiana de sedutores olhos pretos por quem o avô se apaixonou perdidamente certo dia em Florença, quando era ainda estudante de artes. Este novo amor, aquele que tinha por Carmen, fez com que o velho senhor, munido de uma naturalidade que não se aplicava à situação, arrancasse da terra aquele marco de família. Sabia que Paola compreenderia e que, agora que aquela era também a casa de Carmen, esta não poderia causar-lhe medo ou danos.

By Josef Koudelka

No dia em que as máquinas chegaram, para levar a magnólia para parte incerta, o avô pintou-a de cor, num gigantesco quadro que nunca saiu do seu atelier, um amplo espaço envidraçado numa das extremidades da propriedade, onde os ramos e odores da árvore, tornada poema de amor hiper-realista, poderia oscilar livremente, ao sabor do vento inventado, mas bem percetível, naquela tela de linho e algodão que chegava ao teto daquele generoso pé direito.

A magnólia foi-se, mas a árvore dos pesadelos de Carmen não. Se o tivesse sabido, na altura, teria sossegado o avô, explicando-lhe que a árvore de todos os seus medos não era igual à magnólia. Era de outra natureza, de outra espécie, de outra forma. Não era apenas uma abstração de árvore. Uma árvore que representasse todas as outras. Não. Aquela tinha identidade própria. Era uma árvore específica mesmo dentro da sua espécie. Uma árvore cujo crescimento foi acompanhado por Carmen. Começou por ser apenas uma pequena árvore, para, com os anos, se tornar num majestoso exemplar. Apesar de a conseguir identificar entre milhões de outras árvores, Carmen nunca conseguiu identificar que tipo de árvore era. Tinha sempre folha, isso era certo, quer ela a aterrorizasse no verão ou no inverno, na primavera ou no outono, de noite ou de dia. Era até uma árvore bela. Frondosa, por estes dias. Gigantesca e aristocrática, mas sem maneirismos de arrogância. Apenas uma árvore presa ao centro da terra. Ancorada no centro do seu pavor. Ainda hoje. Adultas as duas, Carmen e a árvore. Ainda hoje os pesadelos, mas menos frequentes e menos assustadores. “Habituamo-nos a tudo”, dizia-lhe o avô, “até aos nossos pesadelos”. Naturalizada aquela árvore, que era sua há já tantos anos, normalizado o pesadelo, que já raramente lhe causava suores ou chegava para a acordar em aflição, a vida lá continuou.

By Josef Koudelka

O que Carmen não esperou foi que a sua árvore existisse fora dos seus universos oníricos, fora das suas paisagens inventadas. Longe dos seus pesadelos. Mas ela ali estava. À sua frente. Reconheceu-a. O que sentiu, olhando finalmente o inimigo nos olhos, não foi bem susto ou medo, apenas surpresa. Como poderia ela comunicar-se daquela forma estranha e subconsciente com algo que de facto existia de verdade? E logo uma árvore! Seria, claro, bem mais assustador se fosse um humano, mas, ainda assim, naquela ínfima fração de tempo, nada fazia sentido, exceto que não tinha a menor dúvida de que era ela. Cada contorno, cada pincelada de luz, cada folha, cada ramo… Na vida real, a árvore tinha crescido exatamente como lhe surgia nos sonhos. Correção: nos pesadelos. Sem tirar nem pôr. Tão exata e precisa como a memória do avô, quando pintou de cor e de coração a magnólia da avó. Ia abrir a boca. Contar aquela bizarria ao marido que guiava ao seu lado. Iria, depois, olhar para trás, para as cadeirinhas onde seguiam, a dormitar, as filhas, as primeiras duas dos muitos filhos que desejavam. Às crianças não contaria o que quer que fosse, apenas se queria certificar de que elas não a viam, não fosse ela, por osmose, entrar nos sonhos das pequenas. Ia abrir a boca para falar, mas uma vez aberta, a boca apenas pôde gritar. Gritou de terror. De pânico. Gritou de dor. A boca gritou e a boca chorou. Não sabe. Não consegue perceber. Não teve tempo. Não haveria tempo. Jamais. O tempo tinha acabado. A árvore caminhava ao encontro deles. Pontapeou o carro. Amassou-o como lenço de papel. Arrancou-lhe o marido. Arrancou-lhe as filhas. As reais e as sonhadas. Arrancou-lhe toda uma vida com aquele breve olhar frontal. Um líquido quente impedia-a de ver onde eles estavam. Para onde ela os tinha levado. Levou a mão à testa. Era seiva fervente. Lava da madeira. Sangue da árvore misturado com o seu próprio líquido quente e vermelho. Teve tempo para perceber a tragédia e o cheiro a morte. Teve ainda tempo para perceber outra coisa. Era um sobreiro.

By Josef Koudelka

EU

As pessoas chegavam. Consternadas. Não sabiam o que dizer. Não tinham o que dizer. O que era bom. Não havia palavras para aquilo. E eu, morta como estava, não poderia responder-lhes. Traziam medo no olhar. Medo de me enfrentarem. Medo que as olhasse de frente e me prestasse a ouvir o que tinham para me dizer, que era um grande nada. Um nada. Muito que fosse, não as conseguiria ouvir, pois que estou morta. Seca. Esgotada. Já não existo. Sou agora outra coisa, mas já não matéria viva. Sangraram-me em vida. Escoei todo o sangue. Já não respiro. Já não vejo. Já não ouço. Já não sinto. Já não penso. Estou apenas para aqui. Morta. Sentada, mas morta. Todos julgam estar no funeral deles. O deles já foi. Naquele outro lugar. Nos braços da árvore de todos os meus pavores. Enterrados no melhor lugar do meu coração. Este agora, aqui, é o meu funeral. É a mim que enterram. Não o sabem, mas estão a cremar, neste preciso instante, todos os meus sentimentos. Vazia deles, morro apenas. Enterro-me. Sem resistências ou medo. Já não há medo. Já não tenho medo. Esse passou. Passou. Tem-se medo de perder o amor e a vida deles. Perdidos esses, perdido tudo isso, não há medo que subsista. Já nada me atormenta. Morro em paz. Apenas não junto deles.

 

Photos by Josef Koudelka

Morrer é sossegado. É silêncio. Os que ainda vivem, os outros, sofrem, pobrezinhos. Sofrem muito. Julgam que sofrem por mim, mas isso é impossível. Não se sofre por interposta pessoa. Sofrem de medo. Medo de perceber que estas coisas acontecem próximo deles. Demasiado próximo para temerem que também a eles lhes aconteça morrer em vida. A morte não é má. É apenas isso. Uma coisa. Tão brutal ou maravilhosa quanto nascer. É apenas uma coisa que nos acontece. A todos. Ficar vivo é que dói. Por sorte, morri com eles, apenas não naquele sítio, não abraçada àquela árvore, mas morri naquele mesmo instante. Foi simples. Nem sequer me coube decidir, apenas morri, engolida pelo buraco que se abriu no peito, que do peito foi alastrando, arrancando pedaço de carne atrás de pedaço de carne até toda eu ser buraco. Ser vazio. Será que me veem? Porque estou transparente. Oca. Não tenho massa ou substância. Valia a pena ver-me ao espelho, mas não tenho pernas, como disse. Não poderei deslocar-me. Nunca mais. Está-me vedado andar. Pelo menos para a frente. Sorrio ao pensar numa possível ironia. Voltarei a sonhar, estando morta? Sonharei com a mesma árvore com que sempre sonhei ou, agora que a olhei de frente, ela recuará dos meus pesadelos? Agora, seria bom sonhar com ela, pois seria como sonhar com eles e sonhar com eles é estar com eles. Por ironia, deixarei agora de ter pesadelos? Passariam todos eles para o dia? Sendo que agora é sempre dia, ou sempre noite, uma vez que os mortos nunca dormem. Alguém me diz: “Há muitas vidas numa vida.” O que quererão dizer com isto? Eu tinha muitas vidas. Todas cabiam nos meus braços. Já tive isso, sim. Já não tenho. Terão a ilusão de me estar a dizer que há vida depois da morte? Coitados. Ainda não sabem. Mas eu morri, não lhes poderei já explicar. Eles aprenderão, ou, com sorte, apenas nunca saberão. Mas eu sei.

By Josef Koudelka

Lamento apenas que os enterros não sejam no próprio dia da morte. Seria tão mais prático e civilizado. Tudo num só dia. Covas pré-feitas nos cemitérios, covas pré-destinadas para eventualidades macabras e mortes previsíveis. Cada um teria a sua. Sem surpresas. Sem alarmes. Iriamos diretos para lá, ou para cremação. Tanto faz, acreditem. Tanto faz. Depois que se morrer é que se percebe que tanto faz. O que teriam escrito na minha autópsia? Esvaziamento por perfuração amorosa, agravada por coração vazio. Hora do óbito: tantos minutos depois da hora. Seria, seguramente, uns segundos antes ou depois deles? Não morri logo que percebi que eles morreriam em breve? Ou, na esperança vã de que tudo se resolvesse pelo melhor, aguardei para os procurar e poder encontrá-los ainda com vida? Não. Eu soube. Não foi a guinada no carro. Não foi o barulho da intenção de travagem. Não foi o ruído estrondoso da chapa. Não foi isso. Isso só os ouço agora que já morri. Na altura, soube-o porque mo sussurrou aquela árvore. A minha árvore. Tantos anos a temê-la e, de repente, ela ali, à minha frente. Cada vez mais à minha frente. Mais perto e mais perto… Terei, por isso, e pelas minhas contas, morrido uns segundos antes. Soube-o antes deles. Ou não? Invento? Poderão os mortos ainda inventar?

Mais pessoas que chegam. Algumas aguardam. Esperam pela coragem. Pela ousadia, quase. Que isto de abordar um morto deve meter um medo tremendo. Fala-se com os mortos? Beijam-se? Abraçam-se? Algumas pessoas choram. Por amor de Deus! Isso não. Preciso de silêncio. Não que os ouça verdadeiramente. Não que os veja nitidamente. Não que sinta a sua tristeza pequenina, mas, ainda assim – não o minimizo –, a sua tristeza. Mas água não vai bem com o fogo que me consumiu.

Photos By Josef Koudelka

Algumas pessoas começam a ir-se embora. Algumas ainda estão, mas lá fora. A conversarem animadamente ou apenas esmiuçando tamanha tragédia. Tamanho drama. Uma tal violência física e psicológica para os vivos que nem cabe nas medidas de uma capa de jornal. Extravasa os seus bordos. Mesmo os dos tabloides. As linhas do luto continuam mesmo para lá dos limites do papel, alinhando palavras que já não se conseguem ler sem entortar a cabeça, sem uma enorme ginástica para as conseguir seguir, pois que se alongam pela banca dos jornais e escaparates, esticando-se sobre a capa de livros vizinhos, ondulando até pelo ar, onde se tornam verdadeiramente difíceis de decifrar. A dor ocupa muito espaço, dirão os comentadores da desgraça alheia.

O espaço quase vazio. Apenas um ou outro defunto, mas não tão morto quanto eu. Tanto melhor. No rosto de cada um, a vontade de regressarem a casa. Não aguentam olhar para mim e ver-me, assim, morta. A vontade expressa de regressarem às suas casas. Começam a partir. É mesmo assim. Alguns cães, por ali. Só eles, os cães, e eu. Não sei como reparo nisso, estando morta, como estou. Também voltaria, se tivesse uma. Já tive. Morava no meu coração, mas ele implodiu. Cada vez mais silêncio.

Vão, por favor, deixem-me aqui a assistir ao meu funeral.

By Josef Koudelka

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