Inês sabia que, ao invés de avançar de braços arregaçados para terminar tarefas que tinham sido destinadas a outros elementos da sua equipa de trabalho, deveria fingir-se apenas ocupada, já que a parte dela há muito que estava realizada, e cumprida com brio. Inês sabia, porém, que se não avançasse, em modo bulldozer, para o muito que ainda havia por fazer, a sua quota parte não sortiria efeito, menos ainda luziria com o brilho que lhe era devido, já que todos os outros eram incomensuravelmente mais lentos, ou preguiçosos, ou apenas incompetentes para levar as suas tarefas a cabo. Eram as intermináveis injustiças do mundo do trabalho e da vida em geral. Inês sabia que era uma profissional de mérito reconhecido, por si própria e por aqueles que diretamente consigo trabalhavam, não obstante isso não ser visível na sua folha de pagamento nem no cargo que ocupava. Os louros, quando os havia, eram erguidos pelo chefe, que, com alarido, com eles se coroava, e os insucessos, evitava-os Inês a todo o custo, pois comprometiam o seu bónus, já que os objetivos não eram individuais e sim de equipa. Por isso, há muito que não se lamentava por ser quem mais trabalhava na sua secção. Insólito e risível era o facto de isso gerar pequenos ódios dos restantes colegas, que achavam que ela se esforçava demasiado, elevando a fasquia do exequível por número tão limitado de funcionários.

Eles, os patrões, que entendessem que era preciso mais força braçal, que uma equipa tão reduzida não conseguia fazer milagres. Acontece que Inês tinha nascido com perfil de milagreira e todas as semanas o impossível acontecia. Semiostracizada pelos colegas e olhada de lado pelo chefe – os falsos chefes são sempre pessoas medíocres que receiam ver a sua incompetência revelada pelas capacidades dos seus subalternos –, Inês tinha ainda aprendido a não reparar na azia alheia. A cilindrá-la com a mesma força e energia com que levava o trabalho a eito.

No seu íntimo, achava até que, longe de ser uma questão de orgulho pessoal, o seu afã não se devia a outra coisa que não ao seu egoísmo. Conseguindo despachar tudo a horas, as suas tarefas e as dos outros, não mexeriam no seu departamento, não reparariam nele e poderia sair todos os dias a horas e isso era vital para o seu equilíbrio familiar. Zé, o marido, desempregado há já uma eternidade, estava preso em casa, coitado, pelo que lhe cabia, a si, passar ainda pelo supermercado, a fim de levar o necessário para o jantar – que não tinham finanças que permitissem fazer grande stock na despensa, além de que é bom ir vendo as promoções diárias –, e ainda ir buscar as crianças às respetivas escolas. Tudo isto acrescia cerca de duas horas diárias ao seu horário de trabalho, pelo que era do seu mais genuíno interesse sair pontualmente às 18h em ponto.

Tempos houve em que confrontava o marido com a necessidade de ele participar mais nas atividades domésticas, uma vez que estava em casa, mas ele, com a sua calma e compreensão, fez-lhe ver quão injusta estava a ser. Ele não estava em casa desocupado. Ele procurava diária e arduamente emprego, além de que era ela quem utilizava o carro, ele apenas podia dispor da moto, como é que ela queria que trouxesse as compras e os miúdos? Lembrou-o de que utilizava o carro por ter de ser ela a ir buscar as crianças e o avio diário e não por capricho. Que a ordem dos fatores tinha sido inversa. Que não se importava de ficar com a moto, até lhe permitiria escapar aos piores momentos do trânsito, podendo ele, sem tanto stress ir buscar as crianças, fazer as compras…

– Como queres tu que eu encontre emprego se ainda tenho de ter a cabeça ocupada com assuntos domésticos? Além disso, não quero que andes por aí de moto. É mais perigoso e muito menos confortável. Quero que te vejam chegar ao trabalho de carro, como uma mulher casada e não como uma adolescente rebelde.

Ele sempre fora superatencioso consigo. Inês sentia-se imediatamente culpada. Ele estava coberto de razão. Da mesma opinião não era a mãe de Inês.

By Robert Doisneau

– O que ele é, Inês, é um enormíssimo preguiçoso. Anda há anos sem conta a ‘tentar’ encontrar um emprego, quanto a mim, o que me parece é que não se esforça o suficiente. E já que lhe é tão difícil encontrar um emprego, porque não se fica por um trabalho? Nesta fase do campeonato, um trabalho qualquer. Tudo seria bem-vindo, não te parece? Não, andas tu para aí a matares-te de trabalho, assegurando a única fonte de rendimento da família e ainda a arcar com todas as tarefas domésticas. Serás a única adulta responsável da tua família? O teu marido é pura e simplesmente um mandrião. Um chulo disfarçado de desgraçado.

Claro que Inês não concordava com a desmesurada insensibilidade da mãe. Começou por desculpabilizá-la, tendo em conta que era outra mentalidade, devido ao facto de ser de outra geração, que via o homem como sustento e garante da família, mas acabou por ter de cortar o mal pela raiz. Hoje, já mal fala com a mãe. Mais contemporânea é a forma de pensar da mãe do Zé, que acha normalíssimo que seja o filho a ficar em casa. Era neste ponto da argumentação que a mãe de Inês lhe dizia que também ela compreenderia a inversão de papéis se a ele coubesse algum papel.

– Nem sequer tens o jantar feito quando chegas a casa, nem a roupa tratada, nem a louça lavada, nem as crianças já prontas para ir para a mesa. Ele nem os trabalhos de casa faz com as crianças, e uma delas nem sequer é tua, nem toma a tua vez nas reuniões da escola e ainda és tu quem limpa a casa ao fim de semana… O que é que esse bandalho faz na tua vida, Inês, a não ser explorar-te? Como é que uma miúda inteligente como tu anda cega ao ponto de não ver o óbvio?

Claro que Inês não podia permitir este azedume, tamanha intolerância e tão profundo preconceito em relação ao marido. Era uma perseguição diária. Ele bem se esforçava, coitado, mas o que ia surgindo não estava à altura das suas capacidades e do talento que reconhecia no marido. Não podia sujeitar-se, o pobre, a humilhações e trabalhos menores. Um génio como ele. Seria um desperdício e todos sabemos que há portas que depois de abertas jamais se fecham. Ele tinha de dar entrada por aquela que o faria feliz e lhe permitisse uma carreira condigna e correspondente a todo o seu know-how. Amava-o mais do que tudo e aquele ódio que a mãe lhe devotava era inconcebível e inaceitável. Pôs na relação das duas, até então bem forte e íntima, um ponto quase final.

– Se não o aceitas, não precisas de me ter na tua vida.

Lamentou um pouco a dureza destas palavras, que dirigiu à mãe, mas tinha sido necessário. Impacientava-se com a falta de compreensão da mãe, a sua falta de empatia pelo período complexo que o marido atravessava, ou apenas não conseguia admitir que ela pudesse estar a falar a verdade? Vê-lo-iam todas as pessoas daquela maneira? Incluindo colegas de trabalho, restantes familiares e amigos? Há muito que ninguém lhe perguntava pelo marido. Imaginariam que estaria tudo na mesma, seguramente, sem entenderem como era deprimente para o pobre coitado, a humilhação de continuar desempregado. O desespero. Pois se ela própria sentia tudo isso, só podia imaginar o que não passaria pela cabeça de José. Os outros são sempre demasiado cruéis e insensíveis perante os problemas de terceiros. Só os seus assuntos são sérios. Os dos outros têm sempre uma solução simples. Que desprezíveis.

Inês há muito que se tornara surda a comentários alheios. Por isso, era uma máquina de trabalho e orgulhava-se de tal. Educava duas crianças, o filho do primeiro casamento do marido, e a de ambos, era responsável pelo departamento financeiro de uma empresa privada, tomava conta da casa, era, segundo os rasgados elogios do marido, uma chef de primeira e ainda o amparava nos maus momentos, já que aquilo que mais temia era que ele caísse numa séria e profunda depressão, como não é raro acontecer em situações idênticas. Ainda ontem, por exemplo, lá tinha ele ido, cheio de esperança, a mais uma entrevista de emprego que se revelou uma enorme desilusão, como, de resto, milhares de outras.

By Antonio Mora

– O quê, Zé? Queriam que começasses como assistente? … Assistente de quem? … Pois claro… Fizeste muito bem… O que seria, um engenheiro como tu… Sim, não te rebaixes. Aproveitam-se das fraquezas das pessoas… É isso, é. Tu vales muito mais do que isso. Não te apoquentes. Coisas melhores virão.

Claro que ele podia ceder um pouco. Todos o fazemos, no trabalho, no amor, na família… Tudo é uma negociação constante, mas Inês compreendia que ele era um homem de princípios, que o seu prumo jamais oscilaria e tinha sido isso que mais a atraíra e por isso se apaixonara tanto por ele. Num mundo tão cheio de gente oportunista e sem princípios, pronta para explorar o próximo, ela tinha encontrado um príncipe da moral, bem norteado pela ética e absolutamente ciente do seu valor na sociedade. Um homem íntegro. Claro que pertencia a uma estirpe superior e era isso que incomodava os outros. Ela bem o percebia. Invejosos. Gente de moral duvidosa e escusa.

Com tanta coisa na cabeça e quase se esquecia das cervejas. Era noite de futebol e Zé não passava sem cerveja quando assistia a um jogo da sua equipa. Para levar as cervejas, teria de voltar atrás e devolver qualquer coisa às prateleiras. Levaria o seu creme hidratante na próxima ronda, no fim do mês. Ele bem merecia uma pequena distração. O dia todo encafuado em casa. Coitado. E se lhe levasse uma água de colónia? Ele iria ficar contente. Isso. Além do creme de rosto não levaria igualmente o amaciador para a roupa, que o detergente basta. O telemóvel toca insistentemente e, já na caixa, Inês mal consegue dar conta de tudo, entre colocar coisas na passadeira, daí tirá-las para o carro, pagar, apresentar o cartão de desconto, ensacar…

By Eduard Gordeev

Era o marido, mas quando conseguiu encontrar o telefone já não foi a tempo. Ligou-lhe de volta. As mãos a mil, enleadas em asas de sacos, teclas e botões de multibanco…

– Diz, Zé. Mas… Eu sei, mas já estou a pagar e está uma fila enorme. Terei de colocar tudo no carro e voltar… Não pode ser amanhã? E tu, não podes ir ver se o Sousa do café te dispensa amendoins? O quê? Não percebi… Já estás de pijama? Ah, ainda estás de pijama. Quer dizer que não levaste o Bob à rua? Ok, eu depois passeio com ele, coitado, o dia todo… Claro, não te preocupes. Eu levo os amendoins, eu levo, mas já vou chegar atrasada à escola. A tua mãe poderá ir buscar os miúdos? Hã?! O quê? Está aí em casa? Jantam aí? Devias ter-me avisado, assim terei de levar mais filetes de peixe… Como? A tua mãe não gosta de filetes de peixe congelados?

Moral da história:

Chular é uma prática desprezível mas corrente e omnipresente, muito bem aceite quando os envolvidos são cônjuges, socialmente repugnante quando as partes não se ‘amam’, e moralmente condenável em teoria e abstração, em qualquer caso possível.

By Alexander Yakovlev

 

Partilhar