Nascido em berço de ouro – em rigor, não era verdadeiramente de ouro, ou sequer de um qualquer outro mineral, mas sim de raiz de uma ancestral nogueira, todo ele talhado à mão há mais de centena e meia de anos e que, desde então, embalou todos os primogénitos da família, já que os segundos e as piquenas não contavam, limitando-se estas a existir de formas graciosas e ociosas até encontrarem um abastado primogénito com quem se casar – Tomás Oito Nomes Próprios e Outros Tantos Apelidos de Maria e São José que, em nome da economia mental e narrativa trataremos, de ora em diante, apenas por Maria e São José, era aquilo a que se pode chamar de um verdadeiro príncipe, com apelidos que se perdiam numa já bolorenta aristocracia e numa híper-delapidada fortuna que se firmara, esta última, na abastada burguesia que, em boa hora, a família tinha deixado entrar no seleto mundo dos Maria e São José. Então, com mais apelidos do que bens, lá deixaram que novos ricos, e velhos ricos também, já agora, que depois de aberta uma porta e um precedente, não há como ser demasiado seletivo, mais ainda em termos etários. Mas esse era um triste episódio deixado lá atrás no tempo e apagado dos registos e relatos familiares sempre que possível. Depois de se ensinar esse ramo da família – para sempre e paradoxalmente, o mais pobre aos olhos dos que se consideravam de sangue azul ou lá perto – a comer à mesa, a nasalar a fala, a dominar um sem fim de Etiqueta e Boas Maneiras aos Olhos dos Ricos, os seus miseráveis apelidos foram polidos e ocultou-se como se pôde essa espécie de empréstimo bancário ou prostituída troca de favores. Uns partilharam o dinheiro, os outros o bom nome, ou antes, múltiplos apelidos com consoantes duplas e coisas tão antiquadas e mofas quanto isso, mas que aqueciam o coração dos mais betos de entre os betos e granjeavam a inveja dos wannabe.
Esclarecido isso, avance-se para a história deste nosso principezinho pois, com tudo isto, já se vai fazendo tarde e tenho ainda uma perna de borrego para assar para o jantar, e um bom assado demora o seu tempo, para que a carne apure bem e entranhe todos os temperos. Pois bem, Maria de São José era um tipo mimado, desocupado, um preguiçoso esteta, um irrequieto ocioso, um inequívoco hedonista e, precisamente por tudo isto, era um aborrecido. Aborrecia-se facilmente e também com facilidade aborrecia quem estivesse por perto. Tinha um certo pendor dramático, e bastante performativo, que colocavam cada borbulha do seu acne pós-adolescente ao nível de um conflito nos Balcãs, ou igualava a gravidade de dois vincos na manga de uma camisa ou de um cocktail mal servido ao de um surto de peste bubónica. Tinha-se como um indivíduo sensível, um asceta, um esteta e era propenso a melancolias e enjoos. Tudo era suscetível de o enjoar, principalmente um mau empratamento, coisas Al Ajillo, alguns pobres, cores secundárias, alcoólicos, negócios e, acima de tudo, sinceridade. Não compreendia o conceito de sinceridade e tinha náuseas sempre que alguém dizia: “Para falar a verdade…”, “Com toda a franqueza…” ou ainda, “Sinceramente…”. Para quê? Qual o propósito? Todos têm uma opinião, uma visão do mundo, as suas ideiazitas acerca da existência e todas essas coisas que existem e as outras também, mas que não passam disso mesmo, de coisas pessoais que não devem ser partilhadas. O que seria, se cada um desatasse, para a aí, a dizer tudo o que pensa, as coisas em que acredita, aquilo que lhe vai na alma. Já bastavam os artistas, que por mais que se lhe ensine, teimam em deitar tudo cá para fora. A sorte é que, quando o artista é bom – e fica aqui a dica para se saber distinguir um bom de um mau artista – não se percebe o que ele cria. Já as pessoas normais, deviam compenetrar-se de que uma verdade é apenas uma opinião e que opiniões todos temos as nossas, não há necessidade de se partilhar isso. Todos temos mais o que fazer do que ficar a ouvir o que toda a gente pensa sobre isto e mais aquilo. Que maçada! Só de pensar nisso e lá foi ele bolsar um pouco, que o enfado destes temas mais complexos era muito exigente para o seu físico delicado e para o seu estômago sempre tão agoniado.
A única coisa que o de Maria e São José apreciava de verdade, era a bela Rosa. Amou-a de paixão desde logo, ou seja, desde que ela apareceu lá em casa, reclamando parte da herança, porque era filha do tio Não Sei das Quantas e tudo o mais. Um encanto de criatura. Muito desenxabida e enxuta. Fresca e ligeira. Uma brisa poética naquela mansão de enfados. Ele foi paixão ao primeiro beijo único na face que Rosa lhe deu. Não obstante a singeleza do seu prosaico nome, ela era uma das suas. Toda ela rodopios e vaidades. Com ela aprendeu a distinguir uma mise de uma mini vague, o gel do gelinho, como bater umas claras em palácio e não no já démodé em castelo… Era um manancial de aprendizagem que o tirou do marasmo durante uma hora ou duas. Estava tudo a esmorecer quando percebeu que ela ainda sabia mais coisas. Estava absolutamente por dentro de coisas do outro planeta. Sabia o que era um espirilizador, imagine-se a loucura, e até o que era reciclagem, por exemplo, o que estava absolutamente in. De uma courgette fazia esparguete e de um par de jeans de boa marca, era capaz de fazer uma bolsa de cortar a respiração ou um emaranhado de fios de ganga que poderia servir de isolamento nas casas do pobrezinhos. Tudo coisas sem grande utilidade prática, já se vê, que no universo de vaidades de ambos, isto era mero fait divers, mas o que eles se divertiam não tinha explicação. Ou teria, mas também isso seria muito aborrecido de enunciar. Foi nesse período de encantamento que Maria e São José decidiu que a iria amar. Não era nada que espontaneamente sentisse no peito, foi antes uma resolução lógica, já que se considerava um homem das matemáticas e outros exoterismos do género, além de que o Tarot com que amiúde brincava, lhe dizia que a sua felicidade dependia da flor. Como era alérgico a coisas da Natureza, a flor só podia ser Rosa.
Mas foi uma decisão precipitada, a de amar Rosa, só porque sim, na medida em que certo dia, em conversa de chacha, aquela que mais adoravam, Rosa refere as suas humildes origens e humildade também estava na lista de enjoos de Maria e São José. Ficou logo de pé atrás. Uma coisa era o tio Não Sei das Quantas ter andado com uma tia beta, outra coisa era ter entrado na cozinha e ter-se ‘empundinzado’ com a ‘criadage’. Uma bastarda beta não era a mesma coisa que uma bastarda pobrezinha. O que seria? Já bastava o segredo guardado nos tempos de quando tinham deixado entrar os burgueses, agora pobres… Era demasiado moderno até para o progressista – na sua opinião, claro está, a qual não partilhava por horror a verdades pessoais, como ficou já esclarecido – Maria e São José, um príncipe entre os príncipes. Veio até a descobrir, com enorme escândalo e tremendo ataque de vómitos em cadeia, que Rosa não nasalava de berço, aquilo era apenas sinusite crónica. Uma bênção para a pobrezinha, pois sempre lhe permitia conviver durante umas horas com as pessoas bem sem que estas percebessem logo o seu bom Português, coisa que os ricos não prezam por aí além, pois seria reger-se por normas comuns quando eles eram tão obviamente excecionais. Os verdadeiros eleitos. Finda a paixão por Rosa, que não deu frutos nem podia, pois que ela era do mundo da flora, sentiu-se feliz por não terem feito ‘o amor’, pois se poderia ter sido curioso e engraçado, nesta altura estaria seguramente internado na melhor clínica suíça a enfardar chocolates Lindt, para mal da sua hiperpresente dieta, a fim de evitar que todos os seus órgãos colapsassem devido ao muito que teria de bolsar, já que fazer ‘o amor’ com pobres era declarar falência existencial a todo o seu organismo. Ele não tinha culpa, era uma alergia brutal que o acometia e que só parava com uma sessão estupidamente colossal de compras. Compras em lojas estupendas e fora do país. Só para que se perceba bem o estado calamitoso em que ficava sempre que não se controlava e lá embarcava no colo de uma plebeia. Felizmente, não eram frequentes esses apetites. Havia sempre umas primas e umas tias estupendas a quem deitar a mão ou qualquer outro membro do seu soberbo corpo tonificado e por isto entenda-se, banhado em água tónica ou mesmo gin, dependia da hora da noite.
Para se curar daquela recaída e tirar de vez a vaidosa Rosa da sua mente, tomou muitas e boas drogas e viajou por aí, pelo universo dos estupefacientes legais e nem por isso. O que ele reinou, não dá para acreditar. Ele inventou planetas, ele falou com Raposas velhas dos novos basfonds e Raposas novas dos velhos antros, e percebeu que ambas são matreiras e sedutoras; ele travou conhecimento com homens de negócios que o quiseram enganar, mas ele não deixou, ou deixou e apenas não deu conta, que as contas dele eram outras; ele encantou-se com trabalhadores liberais, que de livre tinham pouco e já era dizer muito; aviadores sem avião e aventureiros sem coragem; ele jura que falou com uma Cobra, que era vil ou apenas vivia num covil, não se recordava bem de pormenores… Adorou uns, aborreceu-se com outros e encantou-se com tudo, no geral. Acima de tudo, descobriu-se enquanto homem, compreendeu finalmente a condição humana e o significado do amor e da verdadeira amizade. Coisas que não queria, de todo em todo, para si, já que se bastava a si mesmo, era bastante autossuficiente, mas foi bom ficar a saber todas essas coisas e assim, além de que quase arriscava dizer que ele e a Cobra ficaram amigos para a vida, ou até que ela deixasse de traficar droga de primeiríssima, que isto de dealers todos sabemos como é: ao princípio é tudo muito bom, só facilidades e essas coisas boas, depois, um dia, desaparecem ou o produto perde qualidade e já nem levam a casa. Nem vale a pena pedir livro de reclamações, é igual em todo o lado. Ainda o acusavam de ser MelloDramático – assim, com L duplo, já se vê – ele devia era ser escandaloso, pois que o cliente pode não ter sempre razão, mas para ser cliente é porque tem sempre dinheiro, certo? Caso contrário seria só um elemento neutro, extra, um observador sem importância. Sendo cliente… Era tudo uma questão de lógica e isso não lhe faltava, graças aos Santinhos de que era devoto e eles eram demasiados para os chamar pelos nomes, pelo que bastava dizer os seus santinhos e abreviava-se meia cristandade.
Quase de regresso a casa, muito embora a Tia Tia lhe jurasse que ele jamais dali tinha saído, mas que sabia ela, sempre tão distraída e tão fã do louco Alzheimer – um velho amigo da família, um alemão que se instalou no enorme palacete onde todos viviam e que desencaminhava duas em cada três mulheres lá de casa, e que nem a sua fama de mulherengo impedia que elas seguissem o tarado –, Maria e São José decide amar Rosa em part-time. Ela era divertida e só durante meio dia, podia ser que ele aguentasse a sua alergia e controlasse os vómitos. Tudo muda quando, no voo de volta ao seu mundo de beto, conhece a filha de uma tia amicíssima da mãe. Era a mais encantadora criatura de todos os universos que acabava de visitar ou de inventar, que isto de certezas de verdade não era coisa em que se envolvesse. Levavam o mesmo livro para ler – qualquer coisa a ver com segurança em aviões, que até estava plastificado – e, ao perceberem isso, não mais pararam de rir e conversar. Primeiras impressões superpositivas: Nasalava, chamava-se Vi – não é o má-xi-mo? –, era boazinha e até fazia voluntariado junto dos sem-abrigo, onde orientava umas drogas bestiais, bolsava como ele sempre que via gente desfavorecida… Ficou encantado quando percebeu que Vi era abreviatura de Violeta – mais um nome pouco próprio, mais uma referência à flora, mas todos estavam a par da costela hippie da tia sua mãe –, pelo que as cartas falavam-lhe dela e não da outra pobre. Ainda bem que não tinha perdido aquele avião, caso contrário ainda acabaria agarrado a Rosa metade do seu tempo, o que era mais no dobro do que pretendia. Melhor de tudo: Violeta nem estava a par do que era sinusite. Sim, perguntou-lho diretamente não fosse esta ser prima da outra e ter de passar por tudo outra vez. Coitado dele. Não podia! Como se conheceram em pleno voo, não se cansavam de dizer que aquilo tinha sido made in heaven e “literariamente”, como sublinhavam na risota. Abençoados todos os santinhos, a quem não tardaram a agradecer, quase em romaria por esses campos, que nem peregrinos marianos, parando apenas nas casas dos tios espalhadas por aí, de Santo Estevão à Quinta da Marinha ou coisa que o valha. Geografia não era para eles, já se vê, que a Geografia tem dois dedos de testa, não está para se baralhar toda às mãos desta gente da… lógica e das matemáticas, por assim dizer.
Moral da história:
A vida é bastante complexa. Quem somos nós para julgar?!
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