Ela chegou à sua vida no momento de maior desespero. Numa altura em que já se imaginava a acabar sozinho. Não apenas solitário, que isso sempre fora, mas só. A solidão é aquela ilha com um único habitante, cujo tempo de abandono o levou já a desistir de fazer fogueiras à noite, na esperança de chamar a atenção de um avião ou navio mais atentos. Já não sinaliza o seu infortúnio. O habitante dessa ilha dedica todo o seu tempo apenas à tristonha subsistência. A apurar o seu engenho para a pesca e para a caça. A inventar novas engenharias de sobrevivência, novas arquiteturas de afeto. O habitante adota um animal selvagem e faz dele um amigo. O amigo. A solidão é um sítio vazio. Não de gente, mas de atenção. A solidão torna-nos invisíveis e era isso mesmo que se sentia. Nisto, porém, ela surgiu. A tal avioneta atenta, por voar mais baixo, o tal barco de recreio em busca de aventuras em terras inóspitas e inabitadas. Ele era um náufrago num mar de promessas por cumprir, num oceano de oportunidades nunca consumadas. Ela era a ponte com o mundo exterior. A seu lado ele ganhava substância e opacidade. Ele reconquistava vida e visibilidade. Ela era travessia e companhia. Ela era salvação. Janela aberta no coração.

Em tantos anos que já não tinham conta, ela foi a primeira. Ela olhara-o e não vira através dele. Ela olhara-o com olhos de ver. Era vira-o. Ela viu-o e sorriu-lhe. Ela tornou-o de novo gente. Ele estranhou. Ele próprio se coisificara, se vira com a indiferença dos outros, achando que era gás, transparência, insignificância. Tomara como certas as falsas certezas dos outros. De que algo de errado se passava consigo. De que tinha problemas psicológicos. De que não valeria ma pena investigar para lá a película transparente, da pele de água e sabão daquela simples bolha de ar revestida de muito pouco. Seria até melhor deixá-lo em paz, não fosse a bolha rebentar e com isso acordar um qualquer monstro adormecido. Deixá-lo. Deixá-lo apenas ali, a respirar a sua comiseração. Habituou-se à sua insubstância. Por isso estranhou. Quase nem percebeu, quando os olhos dela o pescaram no meio daquele rio de gente que passa sem ver nem ser visto. Por isso a amou logo ali, ao primeiro olhar. À primeira visualização do seu corpo, da sua solidez física. Se ela o viu, então ele existia. Existiria apenas para ela? Que importava isso? Existir é quanto baste e ela provou que ele vivia ainda.

By Silvia Grav

Por isso não compreendeu a estranheza dos outros. O seu escárnio e as suas críticas. Pura maledicência. Que ela era isto e que ele era aquilo. Que juntos eram patéticos. Que aquilo não tinha futuro. O que teria ela visto nele e o que teria ele visto nela? As pessoas são muito cruéis. Os mesmos indivíduos para quem ele não existia até aí, passaram a ter apenas olhos para ele e para a vida dele com ela. Afinal, sempre existira e apenas a preguiça e maldade de terceiros o tinham ignorado pura e complexamente? Do vizinho do lado ao patrão? Da empregada da limpeza ao seu dentista? Quem orquestrou tão indigno concerto em torno da sua singela pauta de vida? Quem adensou à volta da sua figura tão espesso nevoeiro? Quem, afinal, o enclausurou no seu próprio corpo? Quem se arrogou a tanta prepotência? Tamanha malvadez. Temeu que ela partisse por conta de tanto ostracismo e comentário. Em nome dos indiscretos olhares que os fixavam com escárnio e ironia. Mas ela não viu. Abençoadamente ela tudo ignorou. Amava-o. Era isso. Ela amava-o. Parece que o amor é assim. Que o amor é isso mesmo. É ver aquilo que ninguém mais consegue. É deixar que outra pessoa nos faça sentir especial e único no universo, incluindo os paralelos e alternativos. Parece que isso é amor. Só podia ser.

By Rupert Vandervell

Ela elogiou o cavalheirismo dele. Espantou-se com a sua cultura e mundividência. Agradeceu a sua bondade. Extasiou-se com a paixão dele. Riu com as suas piadas. Aninhou-se no seu colo. Passou os dedos no cabelo dele. O mais macio em que tinha tocado, contou-lhe. Ela interessou-se e fez perguntas. Muitas perguntas. Todas as perguntas. Ela cabia por completo no seu corpo, uma espécie de modelo customizado, feito à medida com rigores cirúrgicos. Ela não estranhou a estranheza dele. Ela não pressentiu horrores psicológicos, nem viu danos. Ela olhou-o fundo nos olhos e viu um homem carinhoso e carente. Um homem bom e delicado. Um homem forte e seguro. Ela olhou para ele e viu nele a sua casa.

By Antonio Mora

Ela contou-lhe que tinha 45 anos. Ele viu a eternidade. Ela falou-lhe de um passado demoníaco. Ele viu um anjo. Ela não lhe escondeu a sua pobreza. Ele viu nela a fortuna. Ela explicou que foi a necessidade que a colocou nas ruas. Ele chamou-lhe Rua da Esperança. Ela achou que ele não compreenderia, mas lá tentou fazê-lo entender que sempre fora transparente. Um zero colocado à esquerda na vida de toda a agente. Ele era perito em transparências. Ela contou-lhe como tinha cegado. Ele explicou-lhe que ela era a única pessoa capaz de ver.

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