Quebra-Nozes era um tipo intrépido e temerário. Era como se a inconsciência da infância e a ousadia da juventude jamais o tivessem abandonado, ou sequer moldado para traços de caráter mais consentâneos com os seus 30 anos. Qualquer coisa que se aproximasse de responsabilidade ou que ficasse geograficamente mais perto de bom-senso, ou apenas algo que lhe concedesse uns meros segundos para pensar antes de agir, ou abrir a boca, por onde vomitava todo o tipo de verdades e estas, bem se sabe, ninguém está interessado em ouvir, que cada um tem a sua e a dos outros é apenas um grande bocejo, quando não é pior. Talvez assim, com esse bónus de apenas três segundos – o que são três segundos perante a eternidade de coisas e possibilidades que a ausência desse tempo impede de acontecerem –, talvez assim, dizíamos, Quebra-Nozes não fosse apenas um burgesso musculado, que impunha o respeito, para não dizer simplesmente o medo, pela força bruta, quer física, quer verbal. Porém, na falta desses três segundos, Quebra-Nozes era apenas isso, um belo matarruano ou aquilo que muitos chamarão de “Ora bolas!”, já que a primeira impressão era bastante positiva para logo ruir assim que se revelava o homem e tudo aquilo que o visual não travestia, o que quase nunca tardava por aí além.
A única delicadeza de Quebra-Nozes, quase um louco eufemismo, era o próprio nome, já que não eram apenas nozes aquilo que quebrava. Tinha começado com castanhas, verdadeiro core – ou caroço, em bom Português – do negócio da família, que as assava no inverno e pilava no restante tempo, havendo ainda espaço para moer farinha de castanha, com a qual se faziam caldos e pão. Coisas de antanho que regressavam à moda, na vibrante e seleta restauração dos novos trends. Neste departamento da sua vida, o financeiro, Quebra-Nozes era verdadeiramente um “Quem diria?”, já que se poderia pensar que seria apenas um pobre zé-ninguém, para logo se perceber que era um astuto e sabido empresário dos “frutos secos e não só”, como imprimiu no próprio cartão de visita, que deixava junto da clientela mais infoexcluída, e até sob a sua assinatura digital, nos documentos da empresa. Como dizia a brincar, ou nem por isso, “frutos molhados” eram a sua nova aposta, razão pela qual já se virava para os mercados tropicais de onde importava de tudo um pouco e em quantidade.
Claro que, logo após as castanhas vieram os pinhões e as nozes, mas acabariam estas últimas por determinar o seu nome, já que as conseguia abrir em menos de nada com o simples pressionar dos dedos. Um pouco antes, ainda do que as castanhas, já Quebra-Nozes era hábil a partir. Partia ossos e cartilagens, atividade que iniciou logo no jardim de infância e, desde então, não havia terapia de controlo de raiva ou gestão de ira que amainasse os seus ímpetos. Curiosamente, acalmava quando bebia álcool, razão pela qual o evitava, pois sentia que lhe retirava energia e força de vontade, ou apenas força. Outra hipótese era ser um pouco avarento e entender que o preço das bebidas fora dos hipermercados era exorbitante e proibitivo. Se imaginam, por um momento, que a sua fortuna se deve apenas ao encanto da secura dos frutos, pensem de novo. Ninguém quebrava nozes como ele e também ninguém poupava como ele. Isto mesmo incluíra até no seu CV, tal a importância que atribuía à avareza em termos de caráter.
Apresentado o herói da história, caminhemos para o momento em que ele conhece a sua heroína, e não estamos a falar de estupefacientes. Bem se vê que as drogas seriam um péssimo ‘investimento’ na vida de um avaro, pelo que Quebra-Nozes sempre ficou bem longe de tudo isso. Quebra-Nozes não se recorda bem, mas acredita que se tratava de uma dessas noites de Carnaval ou Halloween, pois a primeira imagem que tem de Clara é a de uma espécie de princesa gótica, munida de acessórios com um certo pendor steampunk, pelo que deveria estar fantasiada de máquina. Percebeu, no segundo encontro, que era, de facto, uma princesa, de um desses países de tamanho miserável, do tipo Liechtenstein, lá para os lados da Bélgica, sobre os quais ninguém demonstra o menor interesse e que não era uma máscara aquilo que usava. Clara tinha mesmo uma estética diferente dos restantes mortais e o seu nome era deveras apropriado, tendo em conta a quase transparência da sua pele leitosa. Parecia uma extravagante peça de porcelana delicadamente moldada e estranhamente vestida. Adorou o contraste e quase lhe apeteceu declarar-se honestamente no terceiro meeting. Foi isso mesmo que fez.
Preparou o encontro com minúcias de obsessivo-compulsivo, já que odiava ser surpreendido. Vestiu o seu melhor camuflado, pois ainda que não sendo militar, adorava a sensação de poder que uma farda lhe conferia. Com um uniforme vestido conseguia enfrentar, tudo, até um dia de tédio, se preciso fosse, tal o poderio que sentia. Organizou um roteiro que lhes permitisse estar, à hora de almoço, perto de uma tasquinha simpática e muito, muito económica, que o amor não está para loucuras gastronómicas nem tampouco modismos de circunstância, e as tendências ficam bem em páginas de revista e pouco mais. Em vez de carro, optou pelos transportes públicos, para dar um ar urban-chic à passeata, a qual acabaria no selim da sua pasteleira, estacionada estrategicamente a meio do roteiro determinado. Acabaria por se arrepender, já que nem os transportes públicos são baratos, mais ainda pagando a dobrar, como Clara não era tão leve quanto aparentava e com ela à pendura da sua bicicleta, houve músculos que se ressentiram de tanto… amor, digamos assim.
Clara manteve-se atenta e observadora o tempo todo. Queria compreender aquela personagem que parecia escapar-lhe pelas frestas dos seus gostos e entendimento, mas que a cativava desmesuradamente desde o primeiro instante. Algo nele a fascinava e intrigava ao mesmo tempo. Era forte, quase um ogre, de cabeça e pernas desproporcionadamente grandes, mas do conjunto escapava uma desajeitada harmonia mecânica, que jogava bem com a paixão de Clara pela biónica, e por organismos mistos. Começou por achar a farda excessiva, porém, ela fazia todo o sentido no conjunto. Tudo aquilo era fascinante, de uma forma estranha. O homem que falava dos seus sucessos profissionais e financeiros, para que ela percebesse que não era um mau partido, era também o indivíduo que regateava o preço de uma rosa na praça, comentava quão caras eram as sobremesas, responsáveis por 40% do valor de uma refeição média, e preferia pedalar pelas colinas da cidade a gastar dez euros de gasolina.
– É que não é apenas o preço do combustível. Soma-lhe as extravagantes contas de estacionamento e ainda o desgaste do carro, que embora ninguém pense nisso, também deve ser contabilizado.
Explicação que recebeu do próprio pretendente. Sim, Clara não duvidava de que ambos sentiam algo forte um pelo outro, e se acaso incertezas houvessem elas desvaneceram-se nessa mesma tarde. Quebra-Nozes, sem disso fazer a mínima ideia, mas aceitando o facto como sendo um ato da mão amiga do destino, elegeu um circuito pela cidade que os levou a passar em frente à relojoaria do tio de Clara. Feliz com a coincidência, Clara entrou na pontual loja do talentoso e engenhoso relojoeiro, a fim de o apresentar ao tio. Naquele universo a horas, onde tudo era contabilizado ao minuto, Quebra-Nozes emocionou-se com toda a economia de tempo e de espaço e cometeu uma loucura. Em vez de um anel, declarar-se-ia até à eternidade comprando um relógio a Clara. Uma loucura orçamental, não prevista no seu livrinho de deve e haver desse mês, mas o amor é acometido destas insanidades e nem sempre valerá a pena contrariá-lo. Clara apreciou a espontaneidade do gesto, ainda que Quebra-Nozes tenha optado pelo modelo mais barato em loja, o qual elegeu segundo esse único critério:
– Qual o relógio de senhora mais barato que tem?
O tio mentiu, e Clara acabou por ficar com um muito simpático relógio antigo, de mostrador redondo, daqueles que fazem as vezes de medalhão num fio – o fio já foi às expensas de Clara, claro está –, e que selaria o tempo que, daí em diante passariam juntos, o que, no simplista entender de Quebra-Nozes, seria para sempre, como em todas as histórias, porque não na sua?
Em pleno ato de declaração amorosa, de dentro do escritório do relojoeiro, surge o irmão de Clara, Fritz. Logo que Fritz coloca os olhos naquele monumento fardado fica completamente apaixonado e decide que Clara terá de partilhar – senão mesmo ceder – o soberbo mancebo consigo. Uma ideia peregrina que apenas satisfaz os caprichos sexuais de Fritz, mas que não tarda a convencer também Quebra-Nozes. Afinal, eram dois pelo preço de um e uma promoção era algo a que dificilmente resistia aquele bom avarento. O tempo, todavia, deixou claro na mente de Quebra-Nozes que era uma falsa promoção, já que teria de ser ele próprio a desdobrar-se, pelo que respeitosamente mandou o tal de Fritz às ratazanas. Este assim fez, ainda que despeitado, e Quebra-Nozes voltou à exclusividade de Clara com quem já planeava casamento. Vieram exércitos de amigos e vizinhos, familiares e curiosos e até o circo, ainda que não sendo Natal, montou arraiais para assistir à boda. Dizem até que vieram fadas, mas veio a confirmar-se tratarem-se apenas das excêntricas damas de honor de Clara, com indumentárias que incluíam tule e ferragens e que baralhou toda aquela gente. Inclusive a comunicação social, que por ali acampou, achando que aquilo era o formato alternativo do ‘Casados à Primeira Vista – Versão Metaleira’. Aquilo foi tão brutal que até flocos de neve e gostas de orvalho entraram na boda, mesmo sem convite. Para escândalo de Quebra-Nozes, que passou a cerimónia com a calculadora na mão, registando cada gasto com indisfarçável desgosto, houve excesso de açúcar. O café não precisava de ter vindo da Arábia, com tão bons grãos do camarada Nabeiro, nem o chá da China, com tanta Erva Cidreira que medrava no seu jardim. E para quê um quarteto de metais quando o seu primo Jacinto tocava tão bem gaita de beiços… Tanto desperdício. Quebra-Nozes, julga mesmo que havia bolos de Canabis e, cúmulo dos cúmulos, bitoques na ementa.
– Para quê a dobrar? Porquê bi-toques quando há uni-toques tão simpáticos?, perguntou, já em desespero, à noiva.
– Meu querido, um dia não são dias e este é o nosso dia.
Quebra-Nozes aceitou, com um largo sorriso nos lábios, ciente de que voltariam a poupar nos restantes dias das suas vidas. Estava enganado e percebeu-o logo no dia seguinte, quando embarcaram para Praga (e não Braga, como tinha percebido), seguindo-se depois Vienna (e não Viana, como estava convicto de ter entendido).
– Será que Clara troca os Bês pelos Pês?
Quebra-Nozes percebeu que, ao lado de Clara, podia ser muito feliz, não sabia bem, mas para que tal fosse remotamente possível, teria de reforçar as suas horas de terapia… a quebrar qualquer coisa. Talvez apenas nozes já não bastassem. Teria chegado a hora de ingressar numa claque desportiva ou num partido político? Temia que sim. Mas uma coisa o acalmava como poucas outras: Clara era de pouco alimento e a maioria das lojas não oferecia roupa, malas ou sapatos de que ela gostasse.
Moral da história:
Viver bem e ser feliz depende muito da capacidade de adaptação.
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