Certo dia, quando regressava a casa, inaugurando um novo trajeto, um pouco mais longo, mas bem mais prazenteiro, um rapaz encontrou um soberbo cavalo branco. O animal debruçava-se sobre as águas de um magérrimo curso de água, que separava a meio um pequeno prado de flores silvestres, como um perfeito risco num cabelo com brilhantina. Ainda que aquele percurso rodeasse a cidade, e percorre-se uma zona campestre, salpicada, aqui e ali de hortas semiurbanas, encontrar um quadrúpede por aquelas bandas surpreendeu bastante o rapaz. Mais ainda um espécime garboso e bem tratado como aquele. Majestoso, indiferente à estranheza que causava. Tinha a pose e a altivez de um senhorio do planeta, alguém que não exige, mas a quem, respeitosamente, se concede, sem pensar ou hesitar, a devida vénia. Atraído por aquela urgência do beija-mão, o rapaz encaminhou-se para o cavalo, que continuava meio-indiferente á sua presença, mas não distraído dela. Antes, porém, de distar meia dúzia de metros do enigmático equino, um sujeito, que estava sentado no chão, também ele de frente para aquele fino cabelo de água, deleitadamente encostado a um choupo, única árvore digna desse nome nas cercanias, vai avisando:
– Podes chegar perto, mas se tocares vais ter de ficar com ele.
Aquilo soou tão estranha e infantilmente mal quanto qualquer disparate que se avança numa das clássicas histórias infantis da meninice dos nossos avós. Primeiro pensamento: não sabia sequer se se atreveria a tocar no animal. Ainda que estivesse cheio de curiosidade e vontade de tocar no sedoso pelo do cavalo, ponderava se isso seria acertado. Afinal, trata-se de um ser vivo e não é por se ter muita vontade de tocar em alguém que esse direito nos é automaticamente concedido. Além disso, não estava muito familiarizado com animais daquele porte, pelo que os seus receios eram redobrados.
Segunda consideração: Desde quando, mesmo que a intenção seja a possível compra, tocar num produto é sinal de aquisição garantida? Por último, mas mais inquietante ainda: De onde tinha surgido aquele exemplar humano e que garantias havia de que apenas por estar junto do cavalo fosse seu legítimo dono? Há documentos que atestam isso? Uma certidão de nascimento do animal? Um BI equino? Um contrato? Havendo, onde estavam?
O rapaz, que era novo, mas não desprovido de massa encefálica de relativa qualidade, não se deixaria enganar apenas com conversas intimidatórias e tolices.
– Ai, sim?! É seu?
– Todo ele é meu, sim senhor. E não se esqueça, se tocar fica com ele. Volto a avisar, para depois não dizer que foi enganado.
– Ou não tem grande amor ao cavalo, ou o bicho é uma bela peste, para estar tão ansioso em ver-se livre dele.
– Nem uma coisa nem outra. Amo todos os meus cavalos, mas como qualquer criador, tenho de estar preparado para a separação, para me privar do produto, por assim dizer. Tal como os artistas não podem ficar com as suas obras, caso contrário morreriam à fome – o que acontece a muitos, que não conseguem escoar as suas criações – , também eu vivo da venda de cavalos. E posso garantir-lhe que os meus cavalos são os melhores do mundo. Absolutamente incríveis e mágicos. Depois de experimentar um dos meus não vai querer nenhum outro. Isso lhe garanto.
– Muito seguro de si.
– Não é de mim, é da qualidade daquilo que produzo.
Ao ver o olhar duvidoso e a pose de desconfiança do rapaz, o homem atira-lhe, agora já de pé, junto a ele:
– Leve-o. É seu.
– Como? Meu? Nem sequer lhe toquei e agora já é dado? Humm, você quer mesmo despachar aqui o branquinho.
– Se não acredita naquilo que lhe digo, leve-o à experiência. Duvido que mo devolva. Mais, aposto consigo em que como muito em breve virá à procura de mais?
– De mais cavalos? Está louco? Para que precisaria eu sequer de um cavalo, quanto mais duplicar a dose? É tudo muito bonito, mas a manutenção destas criaturas não fica barata e ainda há que dispor de tempo e dar-lhes afeto… É uma relação intensa e para toda a vida.
– Só está a falar daquilo que a relação lhe exige, mas esquece aquilo que ela lhe traz. Os meus cavalos são mágicos, mas não lhe posso ser eu a dizer, tem de ser você mesmo a comprová-lo, a vivê-lo e a testemunhá-lo, caso contrário chamar-me-ia mentiroso ou mesmo louco. Por isso, insisto, leve-o e depois conversamos.
Abreviando este diálogo em que um dizia que sim e o outro que nem por isso, no final, porque a juventude é muito curiosa e o animal era deveras lindo, o rapaz lá rumou a casa com o cavalo. Claro que não podia aparecer no prédio onde vivia com um cavalo, ainda que o átrio de entrada desse perfeitamente para o efeito. Na verdade, apenas ao aproximar-se da sua rua pensou no assunto. Tinha de esconder o cavalo, mas como fazer aquele portento de equino passar despercebido? Foi então que teve a maior surpresa, melhor seria dizer susto, da sua vida. O cavalo branco diz-lhe – isso mesmo, o cavalo branco, que o dono afirmara a pés juntos ser mágico –, com enorme descontração:
– Dá-me a chave de casa e logo que não esteja ninguém nas imediações eu subo.
Refeito do colapso mental que o emudeceu e ensurdeceu durante alguns dias, o rapaz lá se habituou ao inteligente cavalo branco, até porque ele lhe colava um sorriso de prazer aos lábios difícil de suplantar. Habituou-se de tal forma àquilo que quando o cavalo desapareceu, sim, um dia todos os cavalos mágicos desaparecem, até mesmo da imaginação, soube bem o que fazer. Retomou o caminho longo, junto à fina linha de água. Estava prestes a desistir, pois já caminhava para lá do ponto onde tinha encontrado o seu cavalo branco, quando o avistou, lindo e soberbo e tão encantador e irresistível como quando o viu pela primeira vez. Rodou o olhar, talvez estrategicamente rápido demais, na esperança de que, o seboso do homem que se dizia dono do animal não estivesse por perto. Um desejo em vão. Claro que lá estava ele, agindo como se há muito o aguardasse, como se houvesse quase um desrespeito no seu atraso, como se houvesse uma combinação. Também ele devia ser mágico. Como poderia ele saber que o cavalo tinha desaparecido, ou, sabendo-o – por ser ele próprio o ladrão – como antecipava já que ele regressaria para retomar o cavalo? Afinal, tinha falado no caso como tratando-se de uma experiência, como um período experimental, ou seja, havia a possibilidade de ele não se dar bem com o animal, mais ainda com um que lhe colocava tantos desafios, inclusive logísticos, e que lhe colocava as mais loucas imagens na cabeça. Imagens lindas, ideias de loucura, desejos de eterna fatalidade, ímpetos de inesgotável coragem, visões feéricas de natureza onírica ou seria tudo aquilo real? Nem sempre sabia se gostava de todos os assuntos que i cavalo abordava, parecendo sempre mais interessado em desafiá-lo do que em escutá-lo. Encurralava-o. Humilhava-o. Desesperava-o. Consumia-o.
Claro que o homem sabia que voltaria. Devia estar farto de ver aquela mesma cena. Todo o mesmo episódio, o de sempre, com todos os rapazes que se encantavam com as proezas de um cavalo branco tentador. O mais certo era ser sempre o mesmo cavalo, roubado em loop, com estratagemas non stop, para enlouquecer os rapazes que optam pelo caminho mais longo de regresso a casa. Rapazes que, sem o saber conscientemente, buscam cavalos brancos para montar a sua rebeldia e inconformidade. Rapazes, afinal, tão fáceis de domar. Bem mais do que o endiabrado cavalo branco. Esse era opinativo. Tinha lá a sua forma de fazer cumprir apenas a sua vontade, nenhuma outra que não a sua vontade, e à sua vontade.
Desta vez, em troca do cavalo, o homem exigiu dificuldades. Já não havia período experimental. Já todos sabiam ao que iam. O rapaz teria de arranjar maneira de ser despedido dentro de três dias. Não podia demitir-se, uma vez que não era esse o seu desejo, mas teria de agir de tal forma que não deixaria margem de manobra às chefias. Até foi fácil. Nada teve de fazer que não apenas agir normalmente e por normalmente entenda-se a normalidade de alguém que tem em casa escondido um cavalo branco que pensa, fala e decide autonomamente. Teve depois, de se humilhar publicamente. Essa foi a parte mais estranha, pois não sabia como fazê-lo, nem se o conseguiria, mas como o cavalo lhe chegou a casa nessa mesma noite, percebeu que devia ter feito algo significativo no caminho da auto-humilhação. Mas também deveria ter feito algo errado, não se conseguia lembrar exatamente o que poderia ter sido, mas o cavalo deu-lhe um coice logo que chegou a casa. Já não era tão positivo e exuberante como inicialmente. Levou a mão à boca. Caiu-lhe mais um dente, que voltou a ajeitar na gengiva aberta. Se não o engolisse… sempre era um dente.
Outras tarefas se seguiram. Várias. Não se recordava de todas, nem disso fazia questão. O importante, todos os dias, era garantir o regresso do cavalo branco mágico a casa. Era, de facto, uma relação intensa e absorvente. Não prescindia já desta amizade, das conversas pesadas sobre isto e aquilo e mais aqueloutro. Mais desafios, todos eles num sentido único de auto-aniquilamento. O homem deveria compensá-lo bem, no final daquilo tudo. Como nas parábolas bíblicas. Aguardava esse dia, pois seria fautoso. Arrebatador, como o muito que ele já tinha percorrido e o muito que lhe tinha obedecido. Fielmente. Cegamente.
Matar a mãe e o pai, de desgosto preferencialmente, era o pedido, mas podia ser criativo. Achou que estaria a ser filmado. Que aquilo era, na verdade, um qualquer delirante reality show de que nunca tinha ouvido falar, nem visto. Nem podia. Não tinha televisão, nem outros equipamentos. Descobriu que se vendem muito bem por aí. Era isso. Só podia ser isso. Buscou em vão as câmaras. Não as encontrava, mas estariam lá. Seguramente. O mais certo era terem-lhe sido implantadas subcutaneamente. No próprio globo ocular. Por essa razão, já não via muito bem. Devia ter nano-câmaras nas unhas também, para que o pudessem ver e não apenas aquilo que ele via. Que delírio de gente. As coisas em que pensavam. Que paranoia. Seria um concorrente à altura. Queriam sangue, não era? E se matasse o cavalo e fingisse que tinha matado a família? Seria capaz de uma produção dessa envergadura? E se matasse o homem? Quereriam mesmo que matasse, ou avaliavam apenas o seu grau de compromisso com o programa? E se houvesse outros concorrentes a disputarem as atenções da audiência? Já se aguentava há tanto tempo em jogo, não podia desistir agora. Não queria desistir agora. Não o faria por nada. Ia de novo a jogo. Querem mortes e shares? Pois iriam tê-los. Precisava de saber qual a opinião do seu cavalo branco. Tentaria perceber o que é que ele sabia sobre o assunto e quão envolvido estaria. Precisaria eventualmente de um cúmplice ou de algum tipo de ajuda… Isso não. Teria de ser autossuficiente na sua tarefa. Os outros concorrentes não se podiam sair melhor do que ele. Lá se arranjaria. O pai foi o primeiro. Não sabe como, nem quando ou porquê. Talvez andasse a acompanhar o programa em direto e sofrido com a ansiedade de ver o filho chegar aos finalistas. Prestes a ganhar algo na vida. Um primeiro lugar, talvez. Fama, por certo. Um lugar só seu, seguramente.
O pai morreu de felicidade, não duvidava. Contaria isso para efeitos do jogo? Morrer feliz seria permitido? Não conseguiu apurar. Não falava com o pai há demasiado tempo para perceber a que se deveu a morte. Os vizinhos enchiam as bocas desdentadas como a sua, a dizerem que a culpa tinha sido sua. Do rapaz com o cavalo branco. Isso teria de contar para a sua contabilidade. Faltava a mãe. Sentia-se prestes a ganhar. A vencer. A sentir-se gente. Nisto, numa conversa muda com o seu cavalo, sim, já o tratava por seu cavalo, agora preto após chuvas torrenciais, e, sim, já não necessitavam de palavras para comunicar, uma ideia de génio. E se também ele morresse? Não seria isso um bingo? Isso, sim, era pensar em grande. Era de apostador. Agora, já não havia retorno. Já sentia o sabor da vitória nas veias. Chegava já sem o frémito e a excitação iniciais. Chegava apenas. O cavalo branco, agora preto, ria. O homem ria. Isso também chegava. Seria ele capaz de voltar a rir? Venceria? Tinha a certeza de que sim. Agora, já nada chegava.
Moral da história:
Tire o cavalinho da chuva, pois pode mudar de cor.
Deixe um comentário