Na casa de homens sofisticados, os lençóis da cama são sempre cinzentos. Uma preciosa lição que o cinema lhe havia ensinado, entre muitas outras coisas, que isto, quando se quer aprender, aceitam-se lições em qualquer canto de página. Claro que não era preciso entrar na intimidade do seu quarto e da sua cama – onde os lençóis eram invariavelmente brancos, para assegurar higienes visuais –, para se perceber que Joaquim não era um homem sofisticado (mas era lavadinho, a avaliar pelos lençóis). O próprio sabia-o, sem que isso o incomodasse por aí além. Não era um brutamontes, também o sabia, do tipo matarruano sem noção ou educação. Nada disso. Apenas a sua natureza não se coadunava com questões de polimento. De aparência. De embrulho. De modernidades, para exibir aos outros. Não entendia, sequer, qual era o real propósito.
Era um homem simples e isso até que o satisfazia. Um sim, era um sim, um não, um não e por aí fora. Seria pouco provido de vaidade, também, o que sempre aceitou como sendo uma qualidade, mais preocupado que sempre esteve em aprumar o conteúdo, o caráter, a bondade, o seu propósito na vida. Também não se caia no erro crasso de tomar Joaquim por um filósofo ou poeta. Todos sabem o que é um homem simples. Joaquim era apenas e tão-somente isso. Um homem simples. Ocupado com a sua vida, preso ao seu ofício de ourives, dedicado à sua paixão pelos animais. Dedicou cerca de 500 metros quadrados do terreno onde tinha a sua casa, àquilo que chamava a sua Arca de Noé. Com as devidas distâncias, até porque já se percebeu que não era dado a efabulações, grandes adjetivações ou exageros. O que era, era. Nada de se lhe retirar ou acrescentar méritos. Nesse seu pequeno pedaço de paraíso, sempre aos pares, tinha ovelhas, cabras, vacas, burros, lamas – sim, cedeu a uma pequena extravagância –, ratos, galinhas, coelhos, patos, aves de diversas espécies… Mais do que um mero hobby, esta era a atividade que verdadeiramente entusiasmava Joaquim.
Lidar de perto com a vida animal. Segundo Joaquim, um fiel espelho da humanidade. Também ali havia galanteio, vaidade, ciúmes, traições, amuos. Também tinha dois cães e dois gatos, mas esses partilhavam consigo a casa. Não se caia no engano grosseiro de pensar que Joaquim não gostava de ser ourives e que necessitava desta outra ocupação – que lhe exigia cerca de seis horas de trato diário, entre limpezas, alimentação e mimo, que a simplicidade parece aumentar o afeto –, para compensar frustrações. Era absolutamente feliz a manusear os nobres metais, a transformar um pedaço disforme de mineral num ornamento, a seguir um esboço à risca e ao torcido, também, ou a criar livremente, com minúcias liliputianas, uma inesperada inspiração que, de raras – as boas inspirações, as banais são comuns –, se devem seguir sem resistência, sem perguntas ou demoras. Adorava os filamentos, a soma de pequenas partes com as quais criava algo mais do que essa mera adição. Adorava até, o monóculo de aumentar com que aproximava detalhes, aumentava defeitos a eliminar. Era um mundo de silêncios e musicalidade. Tudo acontecia entre a cabeça e as mãos, meia dúzia de ferramentas e um coração cheio.
A felicidade também era isso: o contentamento que resulta da capacidade de fazer algo com as próprias mãos. Não por ser uma simples manualidade, mas por tudo aquilo depender de um único homem, que pensa, elabora e faz. Produzir, criar artefactos, poder e conseguir começar e acabar algo resulta nesse tido de autossatisfação. É-se um pouco Deus, quando se tem determinado ofício. Certos saberes. Joaquim era um homem simples, já o dissemos, mas não era simplório, como agora se percebe. Tinha, até, este tipo de sensibilidade, quase poética, de ver o mundo segundo prismas singulares, o que se refletiva soberbamente no seu trabalho, de uma simplicidade atroz, a roçar o extraordinário. Aquilo que lhe faltava era a visão caleidoscópica, mais ampla, comunicativa e poliédrica, que pudesse interligar mais coisas entre si, num tipo de conhecimento mais global e abrangente. Talvez fossem ossos do ofício. À conta de tanto ver apenas com um olho, através do seu óculo simples, uno, acabou por também olhar o mundo assim, com um olho fechado. Podia retirar-lhe tridimensionalidade, mas permitia-lhe ver coisas outras, coisas novas, coisas que outros não viam ou sentiam.
Talvez também decorresse dessa atividade sem ruídos ou distrações, e desse hobby absorvente e que exigia poucas palavras humanas, o facto de Joaquim ser um pouco solitário. Era simpático e comunicativo, e tinha um grupo de amigos de há décadas, desde a escola primária – “atual primeiro ciclo”, recordava-lhe sempre um dos seus melhores amigos, professor de profissão e por devoção –, mas se era certo que não perdia uma jantarada, ao fim de semana, ou uma partida de cartas a meio da semana, não era mais errado que apreciava a solidão. Era como se todas as coisas que fizesse requeresse tanto tempo, dedicação e exclusividade como cada uma das joias que criava. A sua dedicação era tal que, mesmo quando lhe ocorria uma ideia, que no momento considerava brilhante, para uma outra peça além da que tinha em mãos, Joaquim não largava aquela em que trabalhava para escoar novo produto, o que, poucas, mas ainda assim algumas vezes, acabava com a perda do ímpeto conceptual, resultando numa ideia que jamais passaria disso. Chegava a perdê-la por completo. Outras vezes, ela assaltava-o de novo e lá conseguia retomar o gesto que imaginara, a forma que apenas calculara no ar, ainda sem mãos. Ainda sem material. Ainda sem consistência física. Eram contingências do seu modo de pensar e de fazer. Sem deslumbramentos e sem exotismos. Aceitava-se. Isso bastava.
By Collin McAddoTomou mais consciência de tudo isto – sobre si, a sua forma de pensar e de agir –, quando, por obra do Diabo, uma das suas peças chamou a atenção de uma vedeta da televisão. Uma atriz de telenovela, segundo percebeu depois, muito popular, como mais Não muito mais tarde, já que a mulher mexeu este mundo e o outro, para conseguir entrar em contacto direto com o autor do anel, que considerou uma verdadeira obra-prima, de soberba mestria e simplicidade, e que ela queria no seu dedo anelar antes que mais alguém descobrisse o artista. O artista. Comoveu-se um pouco quando assim o trataram. Nunca tinha pensado em si enquanto artista, apenas como artesão. Um ourives à moda antiga. Ao retomar a sua nomenclatura de sempre, achou que era bem mais nobre do que o vago artista. Nome pomposo, mas onde podia caber tudo e onde podia caber nada. Era oco. Vazio. O que dizia sobre alguém a palavra artista? Que fazia artes? Talvez, mas quais? Não era bem mais específico e honroso ser-se desde logo alguma coisa de concreto? De palpável? Ele era ourives e logo se percebia o que fazia. De lisonjeado, passou a desconfiado. Quem acabou por contactá-lo, foi o agente da atriz. Um tipo muito simpático e divertido. Conseguiu chegar a ele através do Facebook, imagine-se. Logo ele, Joaquim, que apenas tinha uma página para poder manter-se em contacto com os familiares emigrados um pouco por todo o lado. Era uma família grande e quase toda a viver do lado da pobreza, pelo que sair do país, há décadas que era tradição familiar. Numa das sessões mensais, em que dedicava um serão a perguntar e a responder a questões de tios, sobrinhos, afilhados, primos em vários graus, Joaquim embate de frente com uma mensagem hilariante, de alguém que não conhecia.
A internet era, de facto, o mundo a encolher. Era o Homem a dizer aos céus: ‘Deus, encolhi o mundo!’ Tratando-o por tu, mas com enorme educação e cordialidade, o homem dava-lhe conta do ‘frisson’ que as suas peças tinham causado junto da famosa atriz (de quem Joaquim, que não via telenovelas há mais de duas décadas, a última que acompanhou na íntegra terá sido ‘Vereda Tropical’, uma brasileirada a que a mãe assistia e que ele tinha de gramar a meio do dia, quando ia a casa, no intervalo das aulas, para almoçar). A dita cuja, não apenas queria o anel que tinha visto na sua página de Facebook através de um amigo, de um amigo, de um conhecido, como fazia questão de conhecer o artista e ajudar a promovê-lo através do seu blog e programas de televisão e… Joaquim quase não percebeu metade. Era como ler uma mensagem vinda do espaço. O homem metia palavras estrangeiras no meio do texto a torto e a direito. Falava de universos paralelos ao de Joaquim. Sobre o seu trabalho dizia que era ‘trendy’. Acerca de uma ideia para apresentar as suas peças à ‘beautiful people’, falava na possibilidade de a inserir numa pequena ‘art shop’ divinal, onde fariam uma espécie de ‘soft openning’, ou num ‘corner’, melhor seria até uma ‘finissage’ no ‘foyer’ de um teatro… Joaquim percebeu desde logo que se trataria de um estrangeiro que falava mal Português, apenas quando leu Manuel Sousa e Santos, no final da mensagem, mudou o veredicto para emigrante. Sentiu logo uma certa afinidade com aquele tipo, provavelmente de regresso de uma temporada a tentar vingar no estrangeiro, ainda sem as arestas linguísticas polidas, como uma das suas criações antes de todos os acabamentos.
Uma simpatia que crescia a cada estrangeirismo. Não entendia se o fulano tinha estanho num país francófono ou saxónico, tal a algaraviada de palavras destas e outras origens. Joaquim conseguia perceber as palavras isoladamente, ou quase, apenas não entendia patavina de tudo aquilo alinhavado nas frases que o tal Manuel debitava. Seguiu-se a troca de números de telefone e, aí, é que tudo se tornou estranho na mente de Joaquim. Ficou sem saber muito bem o que pensar daquele homem intrusivo, que entrou na sua única rede social, para tresloucar o mundo pacato do artesão. Uma brecha aberta no seu isolado, bem calafetado e confortável universo de certezas de coisas simples feito, mas que foi mais do que suficiente para virar tudo do avesso. Manuel não apenas não era estrangeiro, como Joaquim bem concluíra, como nunca tinha emigrado, como Joaquim supusera. Manuel era apenas… Manuel. Um tipo absolutamente extraordinário. Um ET na vida de Joaquim. O homem falava pelos cotovelos, dando mundos e fundos como garantidos. Só utilizava verbos de ação com um certo pendor destrutivo: vamos fazer, vamos avançar, inauguramos, arrancamos, explodimos, arrasamos… Foi quando ouviu as expressões ‘explodir Lisboa’ e ‘arrasar Portugal’, que Joaquim acalmou os sustos iniciais. O tipo era apenas extravagante. Um dramático. Logo que colocou aquele furacão na esfera da ficção e do psicótico, o que lhe permitiu um certo distanciamento, Joaquim começou a divertir-se e a deleitar-se com aquela personagem. Manuel era uma espécie de chapeleiro louco. De tão exagerado e lunático era quase uma irrealidade. Isso pensou o tímido Joaquim, pelo que concordou com um encontro tête-à-tête com Manuel, a fim de acertarem a parceria, a qual, segundo defendia o esganiçado Manuel, mudaria por completo a vida de Joaquim. Claro que Joaquim não queria que a sua vida mudasse, mas também era certo que Joaquim não acreditava que ela iria mudar, que tudo não passava de mais um exagero daquele homem tão extraordinário. Era claro ainda que uma ida a Lisboa não o mataria.
Assim, lá foi de comboio até à capital. À sua espera, na estação do Rossio, Joaquim viu uma colorida e espampanante comitiva, que chamou a sua atenção. O que não percebeu de imediato, é que se tratava da entourage de Manuel, com o próprio a liderar um aparato que incluía fotógrafos e repórteres televisivos que se acotovelavam para conseguir a primeira foto e declaração do novo ‘artesão do reino’. O homem cujas joias despertaram a atenção daquela atriz, cujo nome Joaquim não havia maneira de decorar.
– Mas tu és cheio de pinta! Porque não tens foto de perfil se tens tão bom ar? – Atirou-lhe logo Manuel.
Manuel estava simplesmente encantado com o seu visual, que adjetivou de hipster (Joaquim limitou-se a vestir a roupa de sempre, até porque não tinha roupa de outra época senão a de sempre), encantou-se com os seus óculos vintage (eram apenas as armações de toda a sua vida, que isto quando o material é bom, dura uma vida, sem necessidade de o substituir), mas o que verdadeiramente fascinou Manuel, vá-se lá perceber a criatura, foram os ténis Sanjo que Joaquim teimava em ir remendando, de tanto carinho que tinha por eles. Uns simples e velhos ténis, mas que haviam sido os primeiros de marca que se atrevera a comprar, já lá ia uma eternidade. Não sabia se havia de se sentir lisonjeado ou humilhado com tanta e desmesurada atenção. Rodeado por toda aquela gente, deu por si a ser maquilhado, penteado, a vestirem-lhe uma roupa estranha – mais atual dizia-lhe Manuel, enquanto elogiava as suas proporções físicas –, para ir a um dos programas televisivos da tarde. Seguiu-se um cocktail para apresentação das joias, e um jantar onde finalmente conheceu a atriz. Era bonita, mas estupidamente arrogante no entender de Joaquim. Tratava mal a imprensa, e os empregados e até Manuel, a quem tratava como um serviçal incompetente. Manuel parecia nem se incomodar, tudo fazendo para agradar. Era a sua melhor agenciada, não podia ligar a todos os disparates que ela dizia. “Relevar, Joaquim. O segredo está em relevar”, explicava a Joaquim a fim de que este fechasse a boca.
Durante todo o tempo, o artesão sentiu que o levavam no ar, sem lhe darem hipótese de colocar os pés no chão. Ele bem que se esticava, mas o chão estava longe, num lugar inatingível pelos seus velhos ténis Sanjo remendados com criatividade artística, único “adereço original” que Manuel fez questão de lhe manter, por serem tão “cool”. Era divinamente tratado, desde o hotel onde o hospedaram, passando por jornalistas e toda uma turma de gente que não entendia sequer o que faziam ao certo. Era uma infindável linhagem de assistentes de assistentes. Todos tinham um assistente. O cabeleireiro, o maquilhador, os apresentadores de televisão. Nunca imaginou que assistente fosse sequer uma profissão. Todos assistiam ou se faziam assistir. Joaquim tinha a cabeça a andar à roda, mas todos o adoravam. Elogiavam a sua originalidade, quando Joaquim se limitava a ser direto e sincero. Adoravam o seu Português, que Joaquim tratava apenas com respeito à língua. Ficavam encantados com a sua humildade, mas Joaquim só podia ser humilde e estar grato à vida. Era feliz, tinha saúde, família, uma casa e um ofício que o realizava todos os dias. Olhando à sua volta, nada do que agora vivia lhe fazia sentido. Tudo era fogo de artifício. Quando ele deixasse de ser novidade, logo iriam à estação esperar outro qualquer, para o levar ao mesmo hotel, aos mesmos programas para conhecer qualquer outra celebridade ou até a mesma que tanto queria as suas joias. Iriam querê-las essa semana, na próxima quereria outra coisa qualquer. Joaquim era um homem simples, mas não era burro nem ignorante. Conhecia, de ver ao longe, e porque conhecia a natureza humana, aquele tipo de gente, de universo vazio que vivia apenas de aparências. De discursos isentos de substantivos, onde vingavam apenas os adjetivos e um ou outro advérbio de modo. Pessoas que passavam toda a vida com os pés no ar, sem conseguirem aterrar, sem uma ideia proveitosa. Assistentes de assistentes, felizes por assistirem.
Ele era um artesão. Ela fazia coisas existirem. De que lhe valia ser conhecido? Para vender mais? Para receber prémios? Mas para que queria Joaquim tudo isso, se já tinha na vida tudo aquilo que queria? Quem trabalharia as suas peças, quem as realizaria enquanto o obrigavam a andar naquele meio mundano, de festa em festa, de vedeta em vedeta? Manuel, que não era tonto, parecia adivinhar todas as dúvidas do doce Joaquim.
– Ora, fazes como os outros, pois um ghost qualquer a fazer o teu trabalho, mas tu é que assinas, pois a marca continuas a ser tu. Quem vai saber ou importar-se com isso, desde que tenhas uma boa máquina de marketing a trabalhar o teu nome? É assim que se faz no mundo real, Joaquim. Acorda!
Joaquim não precisou de acordar, até porque era homem de pouco sono nunca estivera a dormir, não obstante todo aquele pesadelo. Também não era dado a sonolências. Às quatro da matina, todos os dias, já martelava no seu mister, na sua oficina e que saudades tinha de tudo isso. No dia seguinte, despediu-se de Manuel. Anunciou que partia, que aquilo não era para si. Solicitou a sua roupa de volta, dispensou motorista e despedidas, deixou de presente a Manuel uma maleta cheia de joias suas e rumou à sua cidade.
Ainda que lá no fundo compreendesse e até invejasse a liberdade de Joaquim, que fazia apenas aquilo que lhe apetecia e o fazia feliz, Manuel não queria acreditar no desperdício de talento, na falta de visão para perceber o enorme portão de sucesso e fama a que Joaquim virava costas. Como podia um homem ser artista se abdicava de tornar mundialmente famosa a sua arte? De que servia? Matutou nisso cerca de dois minutos. Não dispunha de mais. Era uma pena. Estava de partida, ao encontro de um pasteleiro que era a pessoa do momento. Era o cake designer de quem todos falavam. Já tinha agendados programas televisivos, um livro de receitas, uma rúbrica de pastelaria no vlog de um célebre youtuber, a sua participação num reality show… “So much to do, so little vodka”, como Manuel costumava dizer.
De volta a casa, Joaquim verbalizou algo que sempre soube no coração, mas que a sua mente nunca tinha tido necessidade de colocar em palavras: A simplicidade era, afinal, a derradeira sofisticação.
Moral da história: Não há moral da história. Cada um deve viver da forma que o faça mais feliz. No meio de tudo isto, o pior mesmo não são os homens ‘substantivos’ ou os indivíduos ‘predicados’, nem os ratos frívolos ou os sofisticados, mas definitivamente a falta de vodka.
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