Zélia Marquesa, administradora do condomínio para o próximo biénio, nem pestanejava. Estaria aquela insignificante criatura, a viver na mais pequena parcela do prédio – umas bem giras, mas exíguas águas furtadas com um lamentável chão de linóleo – a dizer exatamente aquilo que ela, recém-coroada rainha do sofisticado reino de aquém e de além porta de entrada principal, entendia? Estaria o ratito do esconso-mor a exigir obras de manutenção estruturais no condomínio, por conta de uma telha estalada, nem sequer partida estava, por onde, apenas em dias de chuva forte, e somente quando esta se apresentava vinda de Norte, forçava a entrada de uma pequena mas “muito irritante” goteira no seu pardieiro?

Zélia tentava ordenar ao seu cérebro que parasse de pensar e se expressar através de frases tão longas. Um resumo, por favor, que no final de um dia de trabalho, alguém tem de facilitar raciocínios e aligeirar ideias. Sim, a reunião solicitada a título de urgência devia-se à existência de uma pequena goteira, a qual decorria de uma telha rachada sobre uma das águas furtadas do último piso. Um minúsculo apartamento onde vivia aquela única criatura que, à sua frente e dos demais, esbracejava, gritava, transpirava e exigia reparações. Não apenas substituir a telha. Não. Exigia a colaboração e aceitação de todos para se avançar para a remoção de todo o telhado, o qual, através daquela singela telha, começava a dar mostras das suas fragilidades. Compreendia-se. Era um telhado velho, necessitava de manutenção, mas esta, no parecer técnico-esganiçado do rato do sótão, teria de ser estrutural: remoção e renovação da totalidade das telhas, reforço estrutural das vigas de sustentação do telhado, colocação de subtelha e, por cima desta, todo uma nova cremalheira de barro. Tudo mexido. Tudo novo.

Estaria a criatura ciente do preço que tudo aquilo envolvia? Zélia não tinha tido ainda oportunidade de se pôr a par do estado das finanças do condomínio e já havia dedos no ar exigindo gastos? No seu início de turno? Por causa de uma fresta? Numa telha? Lidar com pessoas é, de facto, desgastante e muito enervante. Só pensam no eu, eu, eu e nas suas coisinhas. Felizmente não estava sozinha na sua indignação. A Senhora Dona Arlete, que vivia no andar imediatamente abaixo do queixoso, revirava os olhos com enfado, enquanto ia bocejando. Por fim, disse claramente o que pensava sobre o assunto:

– Entendo que deveríamos aproveitar estas reuniões para tratar de assuntos sérios e prementes. Devemos ainda utilizar com parcimónia o título de urgência. Um pequeno nada que apenas afeta o Sr. Rato, talvez possa ser tratado pelo próprio.

By Vivian Maier

O crente e impaciente Edmundo, homem de fé, que depositava mais do que a devida conta nas mãos de Nosso Senhor Jesus Cristo, dava asas ao seu tique nervoso – bater com um dos calcanhares no chão de forma acelerada –, enquanto recordava a todos que “pequenas obras, fossem reparações ou de teor estético, no interior de cada casa não poderiam ser imputadas ao condomínio. À administração deste competem assuntos comuns e não solucionar questões individuais. O do último piso experimentava um misto de indignação e rendição. Revoltava-se perante a estupidez generalizada e pela indiferença em relação a um assunto sério que, apesar de apenas encharcar a sua casa, era, de facto, um problema de todos. Uma pequena infiltração pode provocar avalanchas. Verifica-se isso na Natureza, na dureza das rochas e dos maciços, porque raio julgavam todos eles ser improvável que isso aconteça em pedaços de obra humana, bem menos qualificada do que a Grande Mestre de Obras de Todas as Coisas? Nem sequer o Dr. Salema, homem justo e sensato, que sabia pensar e agir com lógica e em função de um bem fundamentado senso comum, nem ele parecia entender todas as implicações comuns da goteira que todos consideravam ser assunto de apenas um. Pensando bem, nem sabia a que se devia o título académico de doutor. Seria médico ou doutorado em qualquer matéria, como se supõe, ou apenas um licenciado armado ao pingarelho? Ou nem isso, e somente mera e usurpadora vaidade?

 

Abreviando a penosa aventura, que nem ata mereceu, como se apagando dos registos oficiais, também se eliminaria da memória tal episódio, todos menosprezaram o tema e cada um se mostrava inquieto para regressar às suas tocas, secas e isentas de goteiras, com a maior celeridade possível. A resolução final, óbvia para todos menos para um, ficou clara. O inverno estava longe, uma boa espuma expansível seria um ótimo penso rápido na “terrível telha rachada”, ninguém concordava com tamanha despesa, assim de repente, e as contas do condomínio tinham de fazer frente a muitos gastos mensalmente contemplados, entre eles a portaria, o jardim do pequeno pátio interior, o polimento do corrimão de latão, uma relíquia a exigir atenções estéticas permanentes, enfim, muita coisa a que fazer frente. Talvez para o ano, quem sabe, com um pequeno aumento da mensalidade de cada condómino, seria uma possibilidade a ponderar, mas avaliariam isso lá mais para a frente. Até lá, o histriónico que se acalmasse e aproveitasse o tempo quente que tinham pela frente e que coisa alguma faria gotejar nas águas furtadas. O homem visado lá veio com o discurso das alterações climáticas e da inconstância meteorológica e os fenómenos aberrantes e os tufões… Já ninguém ficou para ouvir o resto do enfadonho e amedrontador sermão, que no dia seguinte todos tinham de ir trabalhar e todos sabem como filmes de terror só se veem em vésperas de folga, por causa do necessário sono reparador.

Zé Rato deu por si a falar sozinho. Nem um pingo de empatia por um problema que, obviamente a todos interessava, ainda que diretamente apenas o afetasse apenas a si. Até um dia. Um dia que acabou por vir, mas por ele ninguém deu, disfarçado que chegou numa cadência de outros dias vestidos de normalidade. Uma semana antes desse dia, Zé Rato já se encontrava fora, de casa e do país. Somando uns dias de férias a uma viagem de trabalho, conseguiu 15 dias de ausência da habitual vida doméstica. No tal dia exato, todos os inquilinos, menos ele, se encontravam nas suas encantadoras casas, aquecidas por um bravo sol de verão. Num segundo, tudo escureceu. Uma chuvada repentina caiu pesada sobre os telhados da cidade, trazendo mais água do que a conseguiria cair num dia inteiro. Chegou sem aviso prévio, acompanhada por um minitornado que varreu tudo aquilo que a água não derrubou. As notícias deram conta de 15 minutos de pavor, mas há quem diga que os verdadeiros estragos aconteceram apenas em alguns segundos. Algo nunca visto. Havia inclusive mortes a lamentar, curiosamente, pessoas que se encontravam na proteção das suas casas, num condomínio elegante cujo único estrago visível era a ausência de uma única telha por cima de uma água furtada. De tão insólito, o caso gerou toda a espécie de teorias, incluindo criminais, mas nenhuma das bizarrias levantava suspeitas de crime.

 

Arlete Silva morreu na sequência de ferimentos graves resultantes do abatimento do piso de cima, o qual se deveu ao peso da água sobre o chão de madeira apodrecida, por conta de uma goteira, como apuraram as perícias. O chão de linóleo da água furtada, que cobria o ripado de madeira, impedia a correta avaliação do estado do piso. Tamanha derrocada do piso superior provocou ainda a morte de Zélia Marquesa, esmagada pela queda da banheira de mármore da casa de Arlete. A quantidade de água que entrou no prédio provocou um curto-circuito no sistema elétrico do elevador do edifício, no interior do qual o professor primário Edmundo Rodrigues conheceria uma morte horrenda. Todos os restantes inquilinos acabariam por morrer devido ao incêndio daí decorrente, impedidos de sair do prédio pela porta da frente e sem conseguirem alcançar a saída para o pátio devido à barreira de chamas. Aqueles que conseguiram sair para o pequeno e alagado pátio interior do condomínio, não conheceram melhor sorte. Foram fulminados pela descarga de um relâmpago que fez cair o para-raios do prédio no minúsculo jardim, o qual, ao cair, eletrificou a água que lhes cobria os pés. Um clássico que no cinema tem preferência por casas de banhos, dedicando especial carinho a banheiras, mas que, no mundo real pode acontecer perfeitamente ao ar livre. As mentes mais policiais questionam a data oportunista da viagem de Zé Rato, bem como uma janela inadvertidamente aberta, mas era verão, estava calor e ninguém imaginaria o tempestivo temporal que se abateu sobre a cidade durante tão pouco tempo, pelo que ninguém desenvolveu essa teoria. Talvez um dia, um guionista mais retorcido… Quem sabe?

Enquanto todos os outros foram morar para o Céu, Zé Rato passou a viver apenas em rés-do-chãos de encantadoras moradias.

Moral da história:

Prefira casas de cobertura plana e sem gente. Parece que são menos propensas ao desastre e ao absurdo.

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