O Tinder tinha sido tender consigo. Tão tender e tão amigo.  Tinha mesmo! Oh, se tinha! Quando já tinha dado o caso como perdido e o assunto Amor arrumado a um canto, onde era já visível o pó, o caruncho e os condomínios de aracnídeos e outros bicharocos, eis que tudo muda. Era um otimista por natureza, mas a vida, ou as suas escolhas – no fundo são sempre as nossas escolhas, não é verdade? –, tinham abreviado expectativas e reduzido a vãs esperanças o desejo interior de amor, de um companheiro que o compreendesse e verdadeiramente amasse. Ou apenas um companheiro, alguém que lá estivesse, para ir ao pão, dividir as despesas, sair ao sábado à noite, embebedar-se de quando em vez, com vinho da caixa, se preciso fosse, berrar músicas no carro… Apenas alguém.

Acreditava, todavia, que foi essa ínfima semente de otimismo que julgava seca e infértil que acabou por ganhar terreno no pasto seco do seu peito, onde qualquer chispa é feroz e voaz, qualquer fagulha o último círculo do Inferno de Dante e até a incandescência é fatal. Sem esse positivismo, não continuaria a ver diariamente os seus feeds, chats, redes sociais e clubes de engate virtuais. Nunca valia a pena, mas todos os dias se consumia no pensamento desagradável e tormentoso de que seria precisamente no dia em que não as consultasse, exatamente aquele em que qualquer coisa aconteceria. Deve ser esse o ímpeto dos adictos, dos jogadores inveterados que acreditam tudo depender da próxima aposta, num outro número ou naquele de sempre, soprando os dados com maior cuidado, colocando as fichas na mesa com mais determinação, acionando a manivela da slot machine com toda a convicção de vencedor, cuspindo no sapato esquerdo, coçando a axila sete vezes… Sá mais uma vez. Depois termino. Nunca verdadeiramente terminou. Jamais deixou de ter uma esperança, em tamanho nano, por esta altura, mas ainda assim um vislumbre, como as luzes de um avião que percorre os céus noturnos e cujas luzes teimamos em acompanhar até à impossibilidade, até à cegueira, acreditando que, sim, ainda se vê a sua luz, mesmo quando ela já não pode ser vista. Mesmo quando ela já não é luz. Assim se sentia na maioria dos dias. A olhar um futuro maravilhoso que nunca chegava. Um futuro que era apenas o presente de todos os dias.

Foi assim que percebeu como Deus e a Felicidade se assemelham. Verdadeiros irmãos siameses. Só existem se neles acreditarmos e na medida, peso, volume e extensão exatos em que neles acreditamos. A sua existência e consistência dependem meramente de nós. Sem fé, não há Deus. Sem crença, não há felicidade. Não podia ser ateu agora, quando ainda não tinha conquistado um amor. Pequenino que fosse, mas um amor a que chamasse seu, com propriedade e sentimento. Foi provavelmente graças a essa ténue faísca, a esse ligeiro e derradeiro apelo de beato, que voltou a insistir no seu Deus: voltou ao Tinder. Acontece que o Tinder respondeu. E não foi somítico. Avançou com duas respostas certas.

 

Estava bem ciente da lotaria que lhe tinha calhado. Dois mancebos. Dois!! Jovens q.b., ou seja, ainda em muito bom estado. Quase lindos de morrer, quase atléticos e já quase amados. Melhor de tudo: com a dentição completa, pelo menos a avaliar pela parte visível daqueles dois agradáveis sorrisos. Não era altura para ser esquisito. Ele próprio já tinha tido melhores dias, melhores anos, melhores músculos, melhor cabelo – para não dizer apenas a verdade e assumir que estava a ficar careca – melhor condição financeira e até melhores dentes. A fase de ‘maturação física’, como designava o envelhecimento humano, é uma madrasta impiedosa. Todos somos processados pelo seu olhar crítico, o seu violento escrutínio. Sorte daqueles que apenas envelhecem, sem o acréscimo de decadência provocado por doença, física, mental ou espiritual – que não ter inspiração também decompõe, tanto quanto a droga. Felizmente, tinha-se livrado de tudo isso. Pelo menos das drogas. Já a calvície estava para ficar. Agora que pensava nisso, e se ambos os pretendentes também não tivessem doenças graves, agudas ou circunflexas, então eram um trio de rapagões bem saudável. Gostou dessa imagem, mas tinha de reduzir o trio a um par. Gostava de exclusividade no amor e na cama. Tinha de eleger o seu predileto.

Agendou o primeiro encontro. Um bar em final de tarde, num sítio elegante, mas descontraído. Assim, mesmo que corresse mal, já não tinha perdido tudo. Chegou primeiro. Considerava-se um cavalheiro e não permitia que esperassem por si. Nem sequer para fazer charme ou dar um ar de muito ocupado, o que, de resto, seria mentira e já tinha muito com que ocupar a mente para a encher ainda com falsidades que requeriam atenção. Sentou-se ao balcão e pediu uma cerveja. Olhou em redor e congratulou-se por ter elegido aquele bar. Nem demasiado na moda, nem demasiado central, nem demasiado caro. Era uma espécie de clássico num bairro atraente e sossegado, mas com um bom design e o colorido dos habituais turistas. A meio destas considerações, o seu convidado chegou. Viu-o antes de ele o reconhecer. Não lhe pareceu nada mal ao vivo. Suficientemente alto e atraente. Um ar lavado e contemporâneo. Bom corte de cabelo. Um físico que não desiludia. Não esperava, porém, que a camisa branca impecavelmente passada a ferro que elegera para aquele encontro tivesse como parceira uma simples t-shirt, mais ainda com uma inscrição que primeiro lhe desagradou, mas que acabou por o fazer sorrir: Donald Fuck, podia ler-se na bizarra camisola do seu date. Bom, já iria perceber se aquilo tinha um mero significado humorístico, equivalente em autoestima, ou se era o primeiro sinal de real flop. Levantou-se. Ergueu a mão para se apresentar e disse:

– Olá, Donald Fuck, sou o Egas. Estás bem?

– Ah, sim, obrigada e tu?

 

Do alto do seu lugar de grande eleito, de atual ‘bom partido’ de uma aplicação que sempre o tinha ‘contentado’ com menos do menos, disputado agora por dois cabeças de cartaz da parcela gay, Egas rejubilava. Erguia-se sobre o mundo e de lá reinava. Aquele pequeno ‘embaraço’ estava a jogar a seu favor, já que percebeu o ligeiro desconforto do interlocutor. Estava por cima, podia decidir e até ser picuinhas.

– Se te contar, não vais acreditar, pelo que podemos apenas falar de um erro de casting indumentário, para abreviar um dia de loucos.

Humor. Um português escorreito, com bons reflexos gramaticais. Menos mal, e mesmo Donald Fuck não deixava de ter uma pitada sexy, ainda que de gosto duvidoso. Manter-se-ia alerta. Aliás, qualquer primeiro encontro é uma passarela, onde tudo é passado a pente fino, analisado minuciosamente em todo e qualquer interstício, tentando ver para lá do visível e entender para lá do compreensível. Um primeiro encontro, na verdade, é um coador de fina trama, destinado a reter tudo o que possa ter significado. Mais ainda quando envolve a probabilidade, na verdade, o desejo de sexo num futuro tão próximo quanto possível, logo no próprio primeiro encontro quando tudo corre de feição. Claro que, sempre que aquilo que se vê enche o olho, o passador vai-se relaxando à mesma velocidade da vontade de tocar e sentir, pelo que a sua função pode acabar comprometida.

– Não me poupes aos detalhes, estamos aqui para nos conhecermos e a história de uma camisola tão suis generis que não foi propositadamente escolhida suscita todo o meu interesse.

Egas estava curioso. Não sendo a t-shirt uma escolha, como raio havia acabado a servir de look para um primeiro encontro? Não estaria a dar suficiente importância à ocasião? Não era um homem organizado e metódico, com planos B de sobra para não ir a um primeiro encontro com uma roupa que não tinha escolhido? Onde tinha, então, ficado a sua roupa? Em casa de quem se teria despido mesmo antes de um encontro tão importante? Ou não seria importante? Ou seria tão importante que mesmo sem a roupa certa arriscara aparecer com um visual que poderia comprometer a sua correta avaliação? Quereria ainda dizer que a t-shirt não era sua? Era de quem, nesse caso? E sendo sua, era um ‘recuerdo’ de Ibiza, ou coisa do género? A ser essa a explicação, Ibiza, todos sabemos, poderia significar promiscuidade e isso não agradava aos seus receios de hipocondríaco. Tinha mesmo de insistir no assunto Donald Fuck e tirar tudo a limpo. Não há segunda hipótese para causar uma primeira boa impressão e tinha de chegar o mais perto possível da verdade. A não ser que fosse muito maçadora. Não tinha muita paciência para never ending boring stories, e mesmo para a verdade, tinha os seus dias.

O que Donald Fuck disse:

– Não gostava de te aborrecer com o lado mundano de um dia atípico, mas também não quero que fiques com uma ideia errada de mim. Sair de casa para um primeiro encontro com uma peça de roupa que faz alusão a desempenhos sexuais é apenas lamentável, para não dizer insensível ou mesmo ordinário. Mas perante a perspetiva de ter de ser assim ou não poder ser, de todo, optei por correr o risco. E ainda bem que o fiz. Aqui estamos os dois, frente a frente e já com o gelo quebrado. [Riu, já mais descontraído, tornando-se, aos olhos de Egas, ainda mais atraente e sedutor.]

Também não pretendo que me julgues pelo que não sou. Sou um tipo normal, bem capaz de andar metade do ano de t-shirt e chinelo no pé. Não sou pipi, como tu. A única coisa Classe A lá em casa é o meu frigorífico e mesmo esse tem dias. Gosto de tipos com boa pinta, como tu, mas jamais usaria uma camisa de manga comprida num dia quente como este. Nem mesmo para impressionar um pretendente. Não leves a mal a minha sinceridade. Sei que não sou delicado, sou cru, mas jamais rude, não te assustes. Mas percebo que o tempo que passo frente ao espelho no decurso de todo um ano deve equivaler ao que tu dispensas num dia. Não sou vaidoso, e gosto de pensar que o meu ‘eu’ despido de tudo, terá de ser suficiente para quem me amar de verdade. Agora, a história da camisola. Ao sair de casa dei de caras com um amigo meu, que ia ter com um novo namorado e vestia precisamente esta camisola. Disse-lhe que não era adequado, que deveria reconsiderar. Concordou, mas já estava sem tempo. Ainda me ofereci para lhe dar boleia, mas ele lembrou-se de que tinha deixado a chave com a irmã, para que tratasse do cão, que necessita de medicação, blá, blá, blá e como sempre, tirei a minha camisa e trocámos de roupa. Ele atrofia muito com estas pequenas coisas e eu acreditei que me sairia melhor do que ele, ainda que coincidentemente estando na mesma situação. Sem tanto embaraço, pelo menos, pelo que aqui estou eu, mais esta bela camisola que, ao que parece, estava mesmo destinada a um primeiro encontro. Espero que isto prove que o meu interesse é tão grande que nem o consciente erro de guarda-roupa me impediu de vir. Acredito que compreenderás. Além de que, como faço voluntariado à noite, distribuindo comida pela cidade, achei que esta fatiota era ainda ideal para seguir direto.

Após processar toda esta informação, eis o que o empertigado Egas assimilou:

 

  • O tipo é um pedante malvestido. (Imperdoável)
  • Criticou a sua maneira ‘beta’ de vestir. (Morreu)
  • Achincalhou a sua posição social com aquela história do frigorífico e a classe A. (Pobrezinho)
  • Fala num português demasiado correto e emproado: “Acredito que compreenderás”!? Quem conjuga os verbos assim na oralidade? (Armado ao pingarelho gramatical)
  • Que história esfarrapada, a de tirar a camisa para ajudar um amigo na mesmíssima situação do que a sua. (Fantasista)
  • Estava, seguramente, mais interessado no sucesso do primeiro encontro do amigo do que no seu, o que obviamente o secundarizava, a si, Egas. (Morreu outra vez)
  • Devia ser um mentiroso, pois era demasiada coincidência dois amigos terem um primeiro encontro no mesmo dia e ainda tropeçarem um no outro. (Para esquecer)
  • Ele é que devia ser o amigo malvestido, com uma t-shirt desajustada à ocasião, e que terá sido repreendido por isso mesmo, razão por que lhe saiu logo aquela explicação. (Muito mau)
  • Devia ter complexos de inferioridade para colocar em destaque os estilos de vida e a sua irrepreensível camisa branca de manga comprida, pois claro, que as de manga curta nem camisas são, são apenas pedaços de mau gosto. (Pelintra)

Tudo muito pénible, concluiu. Simplesmente lamentável. Pronto, dar de comer aos pobres era querido, mas…

Em vez de elogiar a sua beleza, porte e esmero, veio salientar um tolo orgulho no estilo blasé, que não é mais do que desmazelo disfarçado de ‘cool’, com que se apresenta ao mundo. O mais irritante é que era um tipo mesmo giro. Até as incongruências, patetices e pequenos orgulhos de classe C lhe assentavam que nem uma luva. Mas começava a achar que não havia caminho. Quer dizer, haver, havia, mas era muito complexo e tortuoso e mexia demasiado com as suas sensibilidades e os seus pés delicados com manicura em dia não estavam para caminhos de gravilha mal-amanhada.

Tanto perfume derramado em vão, matutou Egas. Não valeu nem um beijo, apenas um enojado aperto de mão, que demasiado blasé soa a falta de banhoca. Mas que o tipo era estupendo, lá isso era. Ainda assim, no seu caderninho de notas mental, também ele em formato Moleskine, Egas anotou: “Fuck Donald Fuck”.

Preto foi a opção para o color block look que elegeu para o segundo encontro. Uma coisa em bom e em bem, do tipo anúncio de perfume Classe A+. Sorriu do seu próprio humor. Desta vez, estava agendado um brunch o que era ótimo. Perceberia logo como se comportava o pretendente à mesa. Como se sentava, onde e como colocava o guardanapo, como pegava nos talheres e no copo, como mastigava e deglutia… Tudo informação extremamente útil sempre que havia planos de futuro. O comportamento de uma pessoa à mesa diz muito, senão tudo, sobre ela.

Estava marcada mesa no restaurante de um hotel, tido como aquele que serve o melhor brunch de Lisboa. Soava bem, além de que se perdia por petiscos vários. Logo que chegou, a exalar o seu perfume de engate, soft, mas percetível, Egas olhou em redor. Viu um tipo irrepreensivelmente vestido numa mesa, mexendo num tablet. Um fato de linho axadrezado que misturava, de forma elegante, azul e castanho. Porque é que Deus e todos os anjinhos não colocavam aquele tipo de homens no Tinder? Nisto, os seus olhares cruzam-se e o tipo imaculadamente vestido – com sapatos e sem meias, como podia agora verificar – levanta-se e sorri-lhe. Era o momento para agradecer a Deus e a todos os anjinhos e ainda desculpar-se pela sua prévia precipitação. Uma palavra amiga ainda ao Tinder, que tudo tinha agilizado na Terra. E ainda uns lábios carnudos. Obrigado, também Universo! Egas voou em direção ao mancebo e avançou de imediato com dois beijos naquelas faces bem escanhoadas. Os seus perfumes misturaram-se de forma encantadora, assim entendeu o olfato de Egas. Que maravilha! Estava tudo alinhado, astros e chacras incluídos.

– Adoro o teu look. Ainda mais au point do que a tua foto prometia. E a tua pele é di-vi-na! O que usas? Eu sou fã da Biotherm, mas a minha cútis parece saturada da marca, está na hora de lhe dar um boost de outros ingredientes.

Egas estava extasiado. Ainda não se tinham sentado e já estava com um banho de autoestima e entusiasmo que o derretia do joelho para baixo, mas acreditava que não tardaria muito a estar completamente submerso em idolatria, coisa que a-do-ra-va! A idolatria é o desejo de agradar e de demonstrar o quão avassaladora a outra pessoa é, sem vergonha ou melindres. Gostava de homens sensíveis a esse ponto. De se apagarem na presença de um ser superior, como seria o caso, não obstante o visual, absolutamente brutal, do parceiro. Aquele fato axadrezado devia ser o seu número. Se a coisa rolasse como prometia, sugerir-lhe-ia que lho oferecesse, e era bem capaz de rolar até porque ele se chamava Rolando. Para dentro, lá bem fundo na sua persona, Egas divertiu-se com o trocadilho. Será que ele ‘rolava’ bem? Seguramente que iria comprovar tudo isso. Nesta fase já tinham trocado marcas de cremes, nomes de sítios da moda que deveriam explorar, já tinham descoberto que gostavam ambos de comprar os legumes na praça e a roupa no estrangeiro, já tinham planos festivos para se apresentarem ao grupo de amigos de cada um, falado dos pais e muito, mesmo muito sobre trabalho, pois imagine-se que Rolando era personal shopper e Egas era vitrinista!!! Aquilo já nada tinha a ver com Deus, aquilo era coisa do Demo. Tinham tudo para dar tão certo, que Egas rejubilava baixinho, para manter em alta os níveis de bajulamento de Rolando e impor desde já um certo padrão de comportamento.

A sua escolha estava mais do que feita. Rolando era o seu match, mais do que perfeito.

Três meses depois

Egas não suportava aquele risinho histérico a propósito de tudo e de praticamente nada, nem o condizente histrionismo dos gestos dramáticos que nem em momentos apocalíticos se justificariam. A constante bajulação de tudo e de todos, que não era mais do que um infantil e irritante disfarce do seu permanente modo de engate. Amigos, vizinhos, rivais, colegas, inimigos… Desde que fosse homem, ainda que hétero, Rolando lá estava a elogiar, a insuflar ar no mais ignóbil ser, na mais insignificante criatura, polindo com brio aquele Olimpo onde a todos colocava. Se todos são deuses, ninguém é Deus, logo, Egas era apenas mais um.

E quando aquela criaturinha comia?! Os barulhos que fazia?! Os esgares!? A nojenta tentativa de ir, em simultâneo, limpando os dentes com a ponta da língua viperina, para que, quando abrisse a boca a meio da mastigação, oferecendo ao mundo um vislumbre do seu bolo alimentar – que não passa de uma fase prévia de cocó –, pudesse sorrir, rir e gargalhar sem coisas nos dentes. O pobre não se apercebia de que ninguém reparava nos dentes dele quando abria a boca, estando esta cheia de coisas que jamais deveriam ser vistas por terceiros no seu trajeto do prato à sanita.

Vivia num inferno de pequenos horrores diários, que se replicavam ao infinito. E aqueles pés sem meias enfiados o dia todo em sapatos de sola?! Eram uma desgraça e as unhas todas rachadas e amarelecidas, daquele amarelo ‘anicotinado’ que surge nos dedos de tabagistas veteranos. Quando passava para sapatilhas, também sem meias, claro, a tudo isso somava-se um cheiro pestilento, que deixava o odor a chulé parecer um doce perfume. E o tempo que o coisinha ruim passava na casa de banho?! E frente ao espelho?! Egas não aguentava. Claro que Rolando o tratava como a uma princesa, e isso era precioso, mas por vezes sentia-se a viver ao lado de um velho ogre bajulador. Tudo aquilo era muito bom de ver, mas depois, bem espremida a laranja e nem uma gota. Nem cérebro, nem cultura, nem conhecimento, nem vontade de aprender… Uma de-si-lu-são. Lá estava ele a debitar disparates atrás uns dos outros, numa interminável fiada de pérolas falsas para a sua plateia de amigos, todos ainda mais tolos do que Rolando.

Egas percebeu que tinha de se abstrair para não gritar, para não cometer um assassínio múltiplo ou, pior do que isso, transpirar a sua camisa de linho na cor safari-adventure, um tom lindo, mas muito delicado e sensível ao suor. Nisto, toda a sua atenção e hormonas foram captadas por uma imagem celestial. Aquilo, sim, era o Céu na Terra. Não um céu qualquer. Não um céu astrológico. Não um céu estrelado. Aquilo era um céu bíblico. Algo na esfera do divino, todo ele salpicado do mais apetecível paganismo. Aquilo era épico! Desde logo, um fato do mais irrepreensível azul-navy, que apenas um olho clínico distinguia do preto. Aliás, era um smoking. Percebia umas delicadas bandas pretas que tocavam uma camisa do mesmo azul profundo, que tanto, mas tanto, encantava Egas. A altura das calças era perfeita. Uns sapatos clássicos lindos e meias pretas. Os olhos de Egas babavam perante tudo aquilo e quanto mais olhava e via, mais entusiasmo e frenesim sentia. Tinham ateado fogo no seu peito, que incendiava a sua imaginação mais escandalosa. Aquele até podia ser um estúpido sem cérebro e comer de boca escancarada, mas seguramente que nada disso seria verdade perante aquele outfit. Um caso sério de bom gosto e refinamento. Um cabelo escuro farto e desgrenhado ultimava aquele corpo soberbo. Aguardava o momento em que aquele homem chamado desejo se voltasse. O tipo acaba de beber o café ao balcão e parte em passo acelerado. Egas levanta-se. O destino chamava-o. O tipo atravessa a estrada em dois passos atléticos e entra no Coliseu dos recreios, onde um grupo de pessoas o aguardava, em petit comité, e praticamente lhe faz vénias. Um príncipe, pensou Egas. Um Deus. Tinha de entrar. Viu a porta de artistas aberta, impedida de cerrar por um grosso cabo. Não hesitou. Lá dentro, percorreu os bastidores tão desenfreadamente que ninguém achou que não pertencia à azáfama que por ali se vivia. Já no corredor circundante da sala, entrou na primeira porta e ali ficou. Uma cadeira vazia. Egas senta-se e vai-se chegando à frente, de cadeira vazia, em cadeira vazia, desculpando-se de que tinha perdido o convite e não tinha memorizado o lugar.

Uma garota famosa apresenta uma gala que parecia maçadora, sem música ou outros elementos de diversão. Coisa séria e enfadonha, lastimou. O seu olhar percorria avidamente a plateia e os balcões. Nada do homem blue-navy. Nada daquela cabeleira que apetecia desgrenhar ainda mais. Egas só desejava que ele não tivesse barba, como a dado momento lhe tinha parecido, mas bem que podia ter sido a sugestão de uma sombra maldosa. Começam a debitar nomes, prémios e discursos. Homenagens e salamaleques. Egas perdia o interesse e ponderava abandonar aquele festival de tédio. Aproveitaria aquela estrondosa salva de palmas, toda a gente de pé. Levanta-se. Ajeita o seu fato de três peças. Alcança o corredor contornando uma gorda com tanta dificuldade que o exercício necessário obriga a que fique de frente para o palco. Está lá o seu amado. O homem do fato azul irrepreensível e não tem barba, santo Deus! É um milagre! E pela exaltação da sala, deve ter salvado o planeta de uma qualquer catástrofe intergaláctica. É um messias. É o seu gajo. Olha melhor e tudo em si gela de incompreensão. Involuntariamente abre a boca e fala sozinho:

– Fuck, é o Donald!

Moral da história

O que é que preferimos: uma história verdadeira mal contada, ou uma boa história inventada? A primeira maça muito, mas a segunda pode revelar-se uma ‘massada’.

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