Num impulso pouco habitual, e sentindo-se um pouco intruso na vida alheia, fez a pesquisa. Ainda se debatia com questões éticas e já tinha carregado na lupa, após ter escrito de um supetão o nome que tanta curiosidade lhe suscitava: José Imperador. Não era alcunha, era mesmo apelido e Ernesto garante, a quem duvidar, que era absolutamente adequado. Com ZéDor por abreviatura, José Imperador era invejado por toda a escola. Eles, porque ambicionavam ser como ele. Elas, porque o desejavam mais do que acabar o liceu e sair dali para fora. Para muitas elas, o liceu apenas fazia sentido devido à presença de ZéDor. Ele exalava uma mística qualquer, daquelas coisas de ator norte-americano ou de modelo de anúncio de televisão, que ninguém consegue verdadeiramente nomear. Não era particularmente bonito, divertido ou endinheirado. Tinha tudo isso, mas na justa medida, sem exageros ou carências, mas sobrava-lhe… à falta de melhor chamemos-lhe, aura. Carisma, também serve na perfeição. Era cativante e charmoso, sedutor e atrevido. Características que colmatavam medidas mais escassas de outros atributos. Os professores adoravam-no, as miúdas sonhavam com ele e os rapazes desejavam pertencer ao seu grupo de amigos e gozar de um pouco daquela sua auréola.

Há anos que Ernesto não pensava nele e nem sabe bem porquê, a meio de uma tarde de trabalho particularmente exigente, num intervalo forçado, para desanuviar as ideias, deu por si a querer saber o que era feito daquele Adónis do secundário. Nem sempre os mais promissores jovens acabavam nos adultos mais bem sucedidos, e talvez por isso – na infantil tentativa de perceber se não se teria ele, Ernesto Silva, saído melhor do que o herói da adolescência –, lá estava ele, que sempre fora uma mediana promessa de sucesso, a tentar perceber que caminhos tinha ZéDor trilhado. Poderia ser algo como cantor numa qualquer banda independente de que Ernesto nunca ouvira falar, ou apenas um agente de seguros, se é que ainda existe tal profissão. Não houve tempo para muitas suposições que os motores de busca são rápidos nas respostas.

Ali estava ele. No meio de outros Imperadores, lá estava o Zé. Boa pinta. Surpreendentemente dono de uma elitista galeria de arte, ou várias, segundo percebia. Endinheirado, pareceu-lhe. Culto, deduziu. Viajado, percebia-se em todos os seus perfis. Não desiludiu, afinal. A seguir, Ernesto mal se reconhecia, um convite enviado, um pedido de amizade aceite. Troca de telefones e emails e a surpresa de também ZéDor estar disponível para um reencontro, após tantos anos. Só nessa altura lamentou não lhe ter dado para procurar a Manuela Rouxinol, a miúda mais gira da escola. Na verdade, a miúda mais gira que alguma vez conhecera, filmes incluídos. Quem sabe não estaria agora a preparar-se para um encontro com ela em vez de com ZéDor. Pensar nisso fê-lo ver-se novamente como o jovem inseguro que sempre foi. Parece que sempre apontara para o segundo lugar. Deixaria de se lamentar por não ter ido atrás do que seria feito da Rouxinol, logo após o encontro com ZéDor.

Agora, um dos grandes nomes das artes – mundo de que Ernesto sempre vivera afastado –, não pelo que produzia, mas pelo muito que levava até ao público, José Imperador era um verdadeiro imperador entre os homens. Um curador de renome. Conceituado, admirado, bem-sucedido e muito, muito rico. Não tardou, ao recordarem os tempos idos e não tão idos assim, que Manuela Rouxinol viesse à baila. E de que maneira. Quando Ernesto, noutro gesto sem precedentes, se prestava a confessar o seu eterno amor – ou apenas desejo, não sabia bem em que ponto poderia estar esse seu sentimento, já que quase nunca falara com Manuela, tendo-se limitado a guardar a imagem do seu corpo e da sua beleza na memória –, ZéDor, também ele imbuído de um inexplicável espírito de abertura para com Ernesto, decide contar-lhe a sua história. Curiosamente, e mostrando um certo caráter, não avança com autoelogios ou episódios de sucesso e dinheiro e outras gabarolices, que até poderiam ter, ali, alguma justificação. Era disso que se tratava. De relatarem as suas vidas. Os seus feitos. As suas escolhas. A sua história. Pois ZéDor contou a sua, sem reservas ou atalhos. A começar pelo facto, que tinha tanto de chocante como de previsível – dependendo da perspetiva –, de que se tinha casado com Manuela Rouxinol.

Ao contrário de Ernesto, um olheiro mais profissional nestas coisas de desejos impossíveis de realizar, ZéDor não se recordava da Rouxinol na escola. O seu foi um encontro normalíssimo entre dois jovens adultos. Ele inaugurava uma exposição. Ela era a artista convidada para cantar no cocktail da vernissage. Mal houve tempo para grandes conversas. Ele apaixonou-se por ela, antes mesmo de a ver, inebriado que estava pela sua voz quente e arrastada e também por algum Porto a mais. O sucesso de ambos andou em paralelo. Ela tornou-se um insólito êxito de bilheteira no distante Japão, enquanto ele era o verdadeiro imperador das melhores galerias um pouco por todo o oriente. Até geograficamente a vida os juntava. Mas nem tudo correu pelo melhor. Ele passou a ter mais ciúmes do que os necessários e entendeu que ela não precisaria de trabalhar tanto quanto até aí. Dessa forma, poderiam passar mais tempo juntos, podendo ela acompanhá-lo com mais frequência nas suas viagens. Poderia aprender sushi com os melhores mestres nipónicos, a manusear sombras chinesas, a adotar trejeitos de geisha para consumo privado… Nem a conta bancária seria o limite, pois já se sabe que quanto mais se tem, de menos se necessita, dado o número de ofertas, privilégios e convites que chove sobre os que se encontram no topo. Rouxinol encantou-se com a dedicação e adulação de Imperador, que a seus pés colocava o mundo e o seu coração.

By Robert Doisneau

Se inicialmente ela se apaixonou pelo mundo de possibilidades que a sua arte ainda não lhe permitia pagar – até porque não entendia o prazer de cantar enquanto um negócio – e que Imperador lhe facultava por puro amor, com o tempo, Rouxinol perdeu a chama, a frescura e a paixão. Sentia-se presa numa gaiola dourada, para adoração exclusiva de um homem egoísta, que com primores de guardião, mantinha no bolso, bem junto à carteira, a chave da sua clausura. Rouxinol começou a sonhar com o mundo lá fora, os palcos, as palmas… a vida. Vivia um mero papel de dona de casa luxuosa, de prisioneira, sem futuro, sem presente. Começou por se entreter com o jardineiro, seguiu-se o garoto que tratava da piscina – era mais do que um, mas nem isso ela conseguiu discernir, tal o vórtice em que caíra. O sushiman também era engraçado e o motorista um encanto. Imperador desesperou, pediu terapias e medicação, exigiu respeito e maior contenção. Houve diamantes e tréguas, rubis e reaproximações. A si próprio, mimou-se. Substituiu Rouxinol na cama com as mais caras call girls do momento. Houve discussões e sexo, muito e de qualidade, pelo meio, mas o amor… O amor esgotava-se e o pouco que jazia em armazém, definhava com uma anemia crónica. Evaporava-se no calor das discussões e minguava com o progressivo afastamento.

Um dia, não porque o quisesse, mas porque nada mais havia a fazer, Imperador abriu a porta da gaiola e Rouxinol voou para longe. Não disse adeus. Não olhou para trás. Voou com prazer e sofreguidão. Tardou a ouvir falar dela de novo. Mas voltou. O sucesso aguardava-a no ponto exato onde ela o tinha deixado. Fazia furor a Oriente e a Ocidente com o nome artístico de Nightingale. Neste ponto do relato, Ernesto estremeceu. Pois claro. Bem que a cara de Nightingale lhe era tão familiar, mas jamais supôs que fosse Manuela Rouxinol, a brasa do secundário. Deixou de ouvir Imperador. Nightingale tinha concertos agendados para Madrid. Sabia de cor as datas, já que a sua empresa tinha bilhetes para oferecer a alguns clientes especiais, uma transação que passava pela sua própria aprovação. Se partisse nesse instante, estaria em Madrid mais do que a tempo da primeira atuação. Imperador tinha tido a sua luxuosa oportunidade, porque não tentaria ele a sorte agora? Agora, que sabia que amor sem liberdade não tem futuro. Agora, que sabia que só se pode amar de portas abertas. Pois ele partiria com elas já escancaradas.

 

Foi de coração palpitante que lá arrancou para Madrid. Não tinha planos ou discurso preparado, apenas a enorme vontade de estar frente a frente com a mulher com que sempre sonhara. No bolso, um bilhete VIP com acesso aos bastidores. Nesse momento, valia mais do que a sua própria vida. Pela primeira vez em toda a sua mediana história, almejava o primeiro lugar. Corria pela posição dianteira. Agiria com naturalidade, aquela que leva os náufragos a engolir o ar sempre que a onda os eleva acima do mar. Como se daquele encontro dependesse a salvação do planeta, ou apenas do seu universo, o que, para efeitos pessoais, vai dar ao mesmo. Apostado em salvar o seu microcosmos, Ernesto partiu de coração cheio. Ainda teve tempo para avaliar se aquilo que se preparava para fazer poderia ser visto como uma traição a Imperador. Talvez sim, mas o mais certo era ser não. Não, porque já não estavam juntos. Não, porque Rouxinol e Imperador não voltaram a encetar esforços no sentido de uma reconciliação e, finalmente, não, porque compromisso algum, moral ou outro, o impedia de procurar a felicidade em nome pessoal. Não se estava a intrometer num romance. Estava simplesmente a tentar a sua sorte e disso, ninguém no mundo nos pode privar.

Quando chegou, o concerto estava a começar. No meio do silêncio e de uma total escuridão, a voz de Rouxinol, sem qualquer instrumento a acompanhá-la, ainda, fez estremecer a plateia que desatou a gritar “Nightingale”. O público calou-se e a penumbra era agora um céu estrelado de ecrãs de telemóvel. Um feixe de luz dourada no palco. Rouxinol ao centro. Nisto, um piano. Um violino. Um contrabaixo. Nisto, todos os sons necessários secundarizavam a voz sem rival de Rouxinol. Uma tempestade de emoções assolava o peito de Ernesto, mas não era caso único. Na sala reinava uma espécie de encantamento. De magia e hipnotismo. A sala tornou-se una num sentimento místico e alienígena. Os milhares de pessoas eram agora uma só pessoa, que vibrava e se emocionava com a voz e as palavras daquela sedutora mulher que, no palco, abria uma impressionante envergadura de asas e voava acima de todos os restantes mortais. No final deste primeiro e impressionante número, sem que alguém se atrevesse ainda a bater palmas e, com isso, arriscar desfazer o encantamento, Rouxinol anuncia que dedicava o tema, um inédito, ao amor da sua vida, ao “imperador” do seu coração.

Ernesto sentiu-se perdido e achado, ao mesmo tempo. Olhando para aquela mulher, sentiu que jamais estaria à altura de tanto magnetismo, de tanto mundo numa só voz. Não havia espaço na sua casa para tanta asa, para tantas penas e voos picados. Também ele cairia no previsível erro de a aprisionar. De lhe ofertar a mais bela das gaiolas para que cantasse só para si. Para que ninguém ousasse amá-la. Entendeu ainda que essa era uma metáfora que funcionava para qualquer pessoa no mundo e percebeu que nada há de errado em ficar em segundo lugar. Talvez o que melhor tenha percebido Ernesto, é que jamais seria o homem sofisticado que uma pessoa como Rouxinol exigiria a seu lado.

Ernesto não chegou a ir aos bastidores. Não contou a quem quer que fosse a sua viagem a Madrid, mas enviou convites para a segunda data de concerto a Imperador, com a nota: “Vem de coração e gaiola abertos.”

Moral da história:

Se gosta de bandidos, compre uma gaiola. Se gosta de aves, olhe para o céu.

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