Olhou mais uma vez para o cansaço exposto nos olhos ainda assim demasiado abertos dos filhos. O filho preso a si pelo cinto dos casacos. A filha, presa já só e apenas nos seus braços à custa de fé, que as forças tinham ficado lá atrás, no quilómetro cento e muitos daquela transumância forçada e desumana. Era apenas a vontade, mais do que isso, a necessidade, o pânico e o desespero que mantinham a criança nos seus braços e estes suspensos ainda, graças a um qualquer milagre seguramente. Dois membros num estado latente e insano de quase rigor mortis. Se por algum motivo a filha lhe caísse dos braços, estes, seguramente – estava certa disso – manter-se-iam na mesma posição de berço improvisado à custa de sacrifício, talhado no amor visceral que une carne da mesma carne, sangue do mesmo sangue. Nem dariam pelo vazio da ausência da criança, aqueles braços sobre-humanos, caso ela resvalasse. Eram os laços maternos e apenas eles a segurar ainda a filha nos seus braços mortos. Era o abraço da vida em dias de desassossego, medo e morte. Preso pela trela, que o filho segurava com a sua vida, como garante, seguia Matias, o cão. Também ele vestido com o silêncio da compreensão. A compreensão de que tudo o que fazia sentido antes, um dia antes, uma hora antes, um minuto antes, um segundo antes, deixara simplesmente de existir. Já não era. Já não existia. Já não tinha substância. Já não tinha sentido. Já não se erguia na rotina diária como coisa importante, afã, necessidade ou prazer. Tudo era nada e nada era agora tudo.

O pequeno grupo de mulheres, crianças e animais de estimação com quem tinha partido era já uma fila gorda e comprida. Uma centopeia humana, com bem mais do que uma centena de pés, bem mais do que uma centena de quilómetros de extensão. Pela estrada, pelo mato. Pelos caminhos da urgência de fugir. Sem nunca olhar para trás. Sem tempo para entregas estéreis ao desassossego da lamentação, à inquietação da saudade de quem teve de ficar a defender o cerco, os avós, os pais, os irmãos e os filhos mais velhos, se é que velho encaixa em meras crianças de 18 anos. Os homens. Todos os homens. Eles ficaram. A elas competia fugir. Era essa a sua missão. Salvar o feminino e a prole. Salvar ventres e peitos maternos, para cuidar de quem já tinha nascido e garantir a promessa de outros que viessem a nascer.

Cidades nervosas, aldeias vazias, coisas abandonadas pelo caminho. Coisas boas que ninguém abandonaria no seu estado normal. Acontece que aquele era um estado em tudo anormal. Percebeu o rodar da cabeça do filho quando se cruzaram com uma bicicleta. Uma rosa inexplicavelmente bela num jardim cheio de destroços e um pó espesso… Coisas boas que tornavam boas as vidas de quem ali vivia antes de deixarem de ali poder viver. O mundo do avesso e os corações no destrambelho da incompreensão e da raiva, da saudade e do cansaço, da fome e do brutal desassossego. O que viria por aí? Como seria amanhã? Quantos mais dias pela frente? Passados como? Fazendo o quê? Haveria algures, num lugar e num tempo outros, uma cama à espera de todos aqueles que se deslocavam? O vazio do peito espelhado no vazio das ruas, desertas de vida mesmo com tantos caminhantes, naquela errante peregrinação, rumo a qualquer coisa que não aquilo.

Uma pequena pausa. Tinha de “ir à casa de banho”, num local onde obviamente esta não existia, substituída por ramos, arbustos, árvores e a calada de alguma ravina ou sombra mais discreta. Alguém se ofereceu para ficar com a filha. Temeu que abrindo os braços, os tais braços rígidos e moldados ao corpo da criança, eles jamais voltassem à mobilidade necessária, jamais desarmassem aquele berço carnal, montado com mais engenho e habilidade do que qualquer esquema da Ikea. E caso se desarmassem, aliviados, por fim, havia outro perigo a acautelar. E se não voltasse a conseguir armá-los junto ao peito, na concha necessária? O que seria da filha? Como a transportaria? Como carregaria a filha e seguraria o filho e o cão, únicas posses que se propôs salvar daquela loucura? A mente respondia-lhe tranquilidades, que a coragem de uma mãe supera qualquer necessidade e muito facilmente a montagem de todo o tipo de berço braçal. O coração alertava cuidados. A mente aconselhava cautelas. Não seria preciso ajuda. Toda ela bastaria. Mas tinha mesmo de aliviar a bexiga, único órgão que podia aliviar por esses dias. Tudo o resto se mantinha numa tensão suspensa, que adiava todas as outras funções ou necessidades. Bastava que o coração batesse, os braços aconchegassem. Tudo o resto… Tinha ficado a bexiga, única que reclamava emergências de quando em vez.

Com a filha ao colo e o filho preso a si pelo cinto dos casacos de um e de outro, num improvisado cordão umbilical, e Matias ligado ao pequeno por uma trela, que bem podia lá não estar, que Matias sabia bem o que se passava, desceu um pequeno declive que bordeava a berma da estrada. Tropeçou. Emendou o passo a tempo de evitar a queda dos quatro, unidos como estavam. Nada de lágrima e também nada de acidentes. Já bastava tudo o resto. O que seria dela e dos seus pequenos se um pé se torcesse, se um osso cedesse. Nada disso. Emendou o passo. Redobrou a atenção. Testou o piso. Procurou calcar o terreno com pastos secos, que permitisse maior tração. Toda a atenção nos pés e na passada pequenina do filho. Toda a concentração nas ações imediatas a executar. Como uma formiga. Como um bicho acossado na sua própria toca. Alerta.

Nada de pensar nos homens lá atrás. Nada de pensar no que estaria à frente. Apenas um pé à frente do outro, para já. Nisto, olhou melhor para os pés. Não percebeu logo. Achou que sempre se teria aleijado. Que havia uma ferida, apenas o corpo tinha prescindido do luxo da dor, da sofisticação do lamento, que isso é para quando não há preocupações maiores. Depois percebeu. Era o maldito período que se adiantava na gravitação e na gravidade, que o enviavam direto pelas suas pernas. Não tinha percebido. Não tinha sentido. Não tinha pensos. Não tinha tampões. Tinha apenas os filhos e Matias, que era tudo o que havia de importante para salvar. Compreendia agora melhor as dores a que não deu ouvidos, o cansaço e a sensibilidade. O seu sangue a juntar-se ao dos outros já caídos e ao desconforto de cada passada. Passou a filha para os braços do filho. Apenas seis anos e já um pequeno berço de apoio e amor. Não podia chorar. Nem tempo, nem necessidade, que até as lágrimas se tinham de poupar para o que pudesse vir ainda. Nada de água desperdiçada.

Tirou o casaco. Abriu-o no chão. Disse ao filho que se sentasse. Dois minutos de descanso. Matias de vigia. Afastou-se ligeiramente. Um chichi, sem nunca os perder de vista. Todos sabemos como situações limite trazem ao de cima o melhor e o pior de cada um. Podiam roubar-lhe um filho. Ou roubá-la dos filhos, ou… O único sangue que se derramaria naquele obsceno trajeto, naquela impensável fuga seria o que já lhe sujava as meias e os ténis. O marido que não se atravesse a morrer e que ninguém ousasse chegar perto dos filhos. Aquele chichi tinha de ser rápido. Precisava de improvisar soluções. Enquanto decisores tentavam engendrar um tampão para a guerra, uma saída que estancasse o sangue dos homens, ela tinha ainda de encontrar um tampão para o sangue mensal das suas entranhas, algo que o impedisse de escorrer pelas suas pernas.

Da mochila retirou uma fralda. Não podia utilizar uma inteira. Havia as necessidades da filha e havia que poupar ainda para os próximos dias de menstruação, quase sempre uma semana, que até nisso era intensa. A mãe, apenas dois, três dias. Ela, o tempo de uma missa à outra. Um dilúvio de feminilidade todos os meses. Com as mãos trémulas, no breve rescaldo do esforço, e os dentes em modo tesoura, rasgou, como pôde, uma parte de fralda. Enfiou-a nas cuecas. Apertou o cinto das calças um pouco mais. Ajudou o filho a levantar-se. Vestiu de novo o casaco que os unia. Afagou Matias, que em casa tinha deixado todos os truques para conseguir mais uma festa, mais um biscoito. Eram, agora, todos diferentes. Todos eles, outras versões de si mesmos. Alerta. Eram eles em fuga. Pegou na filha ao colo. Voltaram para a estrada, para a fila, que apanharam já mais atrás. Eram outras mulheres, outras crianças, mas os mesmos rostos, as mesmas aflições, a mesma história, a mesma angústia, o mesmo passo desalentado, o mesmo bater de coração. Tudo igual. Mulheres indistintas, com crianças iguais. Todas iguais. A desgraça tende a ser democrática, como constatou, sem surpresas, de resto. Eram todas filhas da mesma desgraça. Gente da mesma gente a partilhar o mesmo destino, a mesma tragédia. O mesmo imprevisível destino.

Retomaram o passo. Unidos pelos cintos dos casacos e pelos braços exaustos, para que não se separassem, e pelo coração, para que nunca se separassem. O cinto que a prendia ao marido era líquido. Um rosário de lágrimas engolidas que aumentava a cada passo do caminho incerto. Segui-las-ia de olhos fechados na viagem de regresso. Sim. Haveria um regresso e todas essas lágrimas seriam as migalhas do conto, que a levariam de volta à sua casa, que assinalariam essa casa onde era feliz e que não era mais do que os braços do marido. Não havia teto nem paredes mais reconfortantes do que as arquitetadas pelo engenho do amor. Ensaiou uma canção de embalar, que lhe saía de mansinho. Meio conhecida, meio inventada, num improviso que pretendia assegurar aos pequenos que tudo estava bem, mesmo sendo óbvio que tudo estava completamente errado. Era hora do lanche, não de mais uma fiada de quilómetros. Era hora do banho, não de mais bolhas nos pés pequeninos, mas já sem lamúrias ou queixumes. Os filhos da guerra não choram. Lutam e sobrevivem. Mesmo em fuga, lutam e sobrevivem. Lutam e sobrevivem. O marido, lá atrás, de arma em riste. Eles, por aquelas andanças de dor e incerteza, hasteando uma fé que nem sempre era real. Apenas uma lembrança de fé. Um esforço esbatido, esfumado. Qualquer coisa apenas que carregavam no peito atulhado de inferno e medo. Um pequeno e inquieto pirilampo na noite escura. Uma nota de rodapé num texto que não entendiam, tentando dar sentido a uma narrativa indizível, com linguagem imprópria, cujo sentido lhes escapava, mesmo recorrendo ao dicionário da esperança, mesmo…

 

Sentiu uma cólica tremenda. Parou. Encolheu-se como pôde. Havia uma criança ao colo e uma presa à sua cintura e ainda Matias. Todos a olharam com olhos esbugalhados e pupilas dilatadas a absorver a sua dor. Cerrou os olhos. Caiu de joelhos. Sentiu uma golfada de sangue a aquecer-lhe as pernas, a manchar-lhe as calças. Poria uma fralda inteira desta vez, que até o período expressava ansiedade perante tamanho cenário. Era o corpo a ceder ao esforço, o choro contido, a dor indisfarçável. A dor voltou. Brutal. Maldito período. Estremeceu. Sempre sofrera de cólicas tremendas, mas… Algo lhe dizia que algo estava errado. Não eram as dores habituais, ou eram, mas com uma intensidade diferente. Era tudo igual, mas tudo diferente. Era… Alguém a ajudou a levantar-se. Eram todas mulheres, crianças e adolescentes. Eram todos família. Não tinha porque se envergonhar. Não havia pensos higiénicos, mas chegaram fraldas à sua mão. Agradecia, quando conseguia. Seguiu com os filhos para a mata. O rio de sangue já encharcava os ténis. Já assustava. Já era prenúncio de morte. O sangue dela a derramar-se de tal maneira que já deixava rasto nos pastos. Nas cuecas um gigantesco coágulo. Um punhado de sangue compacto. Um pedaço de qualquer coisa. Um bocado de carne. Com um graveto mexeu-lhe tentando perceber a sua textura, densidade e consistência. Era duro.

 

Seria por causa da ansiedade. Da distância do marido. Do adeus que poderia ser o último, ainda que nisso não pensasse, ou pensasse sem o admitir, para não chamar a atenção do Diabo que por ali já andava à solta. Tinha uma forma oblonga, uma espécie de coração de galinha… Nunca lhe tinha acontecido tal coisa, mas há coisas que não precisam de segunda vez para que as entendamos como elas são. Sendo um coração, como de facto parecia, aquilo era um aborto. O fim do início de um filho que desconhecia e jamais veria. Criança sábia. Era óbvio que não havia condições para mais um filho. Mas… Podia não ser. Porém, não sendo, o que seria então? Não havia tempo. Não havia atenção. Parar não era opção naquela fase. Há mulheres que abortam em mesas de cozinha, sem higiene e com recurso a coisas macabras e apenas morrem por dentro. Não morreria por causa daquele filho que optara por não nascer. Embrulhou-o no pedaço de fralda da filha que improvisara na paragem anterior. Colocou uma fralda inteira, de um tamanho mais generoso do que a da sua bebé. Ainda bem. O rio de sangue, parecia-lhe já um ribeiro. Vestiu-se. Matias lambeu-lhe a cara. Olhou-a fixamente nos olhos e virou-se para o caminho que os aguardava. Matias sabia tudo. Os filhos também. Voltaram à estrada. Dorida, mas com menos cólicas, ou mais espaçadas, pelo menos. Presa aos filhos. Aos quatro. Um preso pela trela, outro pelo cinto, outro aconchegado no seu colo e outro enterrado no seu bolso.

Era o sangue da guerra a misturar-se com o seu sangue. Pedia a Deus que aquele fosse o único sangue da sua gente a derramar-se no pedaço de angústia que viviam.

  

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