O que aquilo o divertia. Ver-se assim, mais velho. Tão mais velho que parecia a sua avó materna, agora com 97 anos. Igual, igual, que quando as pessoas chegam a demasiado velhas, por vezes até antes dessa última velhice, perdem-se os traços distintivo de género, tal como estes são igualmente ilegíveis nos bebés. Ficamos todos iguais, a lembrar-nos de que não há diferenças, apenas carne e osso e já pouco mais. Muitas vezes já nem há memórias, ou crenças ou alegrias. No final dos finais, resta muito pouco. Apenas corpos indistintos de velhice feitos. Apenas formas vagamente humanas. Apenas massa genética em deformação. Apenas um refugo do que já fomos. Uma espécie de sombra agoirenta, lembrando a proximidade daquela outra coisa que se desconhece. Que pode apenas ser nada. Pois ele ali estava, a ver-se escandalosamente velho, décadas antes desse provável cenário fisionómico, caso lá chegasse, o que não era certo. Nem certo, nem errado, era apenas e tão somente uma divina incógnita.
O que ele se ria. Não se conseguia controlar. Era a cara da sua avó Rita. Teria alguma foto da avó no telefone, que tivesse levado a preguiçosa aplicação a poupar-se a trabalhos e a simplesmente adaptá-la ao seu rosto? Não se recordava. Achava que não. Mas quem sabe não tivesse tido e, ainda que já apagada da sua galeria de imagens, ela não andasse à deriva no espaço virtual e tivesse, agora, sido captada por um braço deste gigantesco polvo internauta. Os algoritmos são tramados. Devem tê-la ido desencantar a Saturno, ou mesmo a Plutão, que embora mais pequeno, deve esconder bastantes coisas. Por mais que lhe falassem em roubo consentido de dados biométricos, espionagem russa e o diabo a sete, aquilo era muito divertido. Queria lá saber do resto, se é que havia resto e havendo, podia ser que fosse resto zero. Estava delirante. Substituiu a foto de perfil de todas as suas contas. Fez dela plano de fundo do monitor do computador e telemóvel e estava já a trabalhar um postal de Natal para esse ano com base na sua imagem envelhecida.
Na sua ânsia de futuro, congratulava-se por lhe ser possível antever o que aí vinha e viria, seguramente, que a sua família era possuidora de ADN de primeira, resistente, e todos os mais velhos chegavam a idades dinossauricas. Os que mantinham a memória intacta, recordavam um mundo que só já encontramos nas páginas dos compêndios de história escolares… antigos. Coisas de antanho, algumas das quais quase custam a acreditar. Logo, tinha alguma garantia genética de que chegaria longe no tempo. Assim tivesse tanta certeza de chegar longe na vida, matéria onde ser erguiam mais dúvidas e obstáculos do que certezas. Sentia-se particularmente feliz por a aplicação lhe manter o cabelo. Já não tão farto, nem preto, como seria de esperar, mas não o projetava careca. Dava um velho bem mais apessoado do que todos os seus colegas de trabalho, cujas peles encarquilhadas, carecas e deformações etárias resultavam em idosos medonhos. Ele, ainda que com uma expressão mais carregada e a tal sinistra semelhança com a avó Rita, de 97 anos, feitos no mês passado, era ainda bem parecido e bom de ver.
Agradava-lhe ainda aquele tolo orgulho de se apresentar velho, mas mantendo a vivacidade e as capacidades da sua juventude, entrara há pouco nos trinta. Fazia-o sentir-se um superidoso, daquelas pessoas que se mantêm ativas, produtivas, criativas e úteis até ao final dos seus dias. Sem doenças ou queixas, apenas vida que querem viver da melhor forma e da mais agradável também. Enquanto a restante população do planeta tudo fazia para se manter jovem, ou aparentá-lo, ou mesmo para se fazer passar por jovem, recorrendo a artimanhas, mentiras, Photoshop e bisturi, ele delirava com os anos extra, que em nada lhe pesavam. Magicava em todo este encantamento, quando recebeu um e-mail a convocá-lo para uma junta médica. ‘Que coisa bizarra’, pensou, sem preocupação. Vendo sempre o lado positivo dos acontecimentos, mesmo dos mais insólitos, percebeu logo que isso talvez lhe valesse um dia de ausência no trabalho, uma benesse que jamais pode ser descurada. Mostrou a missiva ao chefe, muito rapidamente para que este não se apercebesse da hora exata a que a sua presença era requerida, mentiu um pouco sobre o horário, e ficou decidido que, no dia em questão, caso ainda conseguisse regressaria ao trabalho da parte da tarde, mas que, se houvesse atrasos de monta, não necessitaria de voltar apenas por uma hora ou duas. O chefe era bom tipo. Demasiado novo, para os seus atuais padrões de maturidade, mas um tipo certo e justo. Tinha-lhe parecido que deveria estar a passar por uma fase complicada da sua vida, já que sempre que o via, se mostrava assustado, receoso, quase fugindo. Deve ter assuntos que receia poderem ser abordados em conversas de circunstância e, por isso, se mantém à distância. Era compreensível e aceitável.
A junta médica foi, em todo o seu esplendor e bizarria, um dos momentos mais inexplicáveis da sua vida. Um grupo de médicos de várias especialidades, segundo percebeu, que o tratavam com enorme deferência – o que lhe agradou sobremaneira e se devia, seguramente à sua recente promoção –, mostraram-se surpreendidos e assustados. Parecia que de saúde estava tudo bem, mas começou a perceber que direcionavam todas as questões para o foro mental. Claro que houve espaço para um pouco de urologia e sexualidade e bem notou como as bocas de abriram quando referiu que uma semana sem, no mínimo, três doses de sexo, era uma semana imprestável. Devem estar habituados a jovens nerds, sempre perdidos nas suas tecnologias e presos a mundos virtuais, para quem a sexualidade não é uma necessidade, uma boa prática da higiene mental e física, mas apenas um fait divers, ou mero passatempo sem o qual se vive bem. Pois ele não era assim. Cada coisa no seu lugar e o lugar do sexo era enorme na sua existência e fundamental para a sua felicidade. Além de que a mulher lhe impunha um certo ritmo que ele deveria acompanhar, se não quisesse andar sempre receoso de ela poder encontrar outra atividade para ‘complemento de rendimentos’, por assim dizer. Ficaram igualmente impressionado com a sua dentição, completa e em bom estado. Aí, percebeu que aquela era gente estranha. Mais parecia que apreciavam um cavalo. Nesse ponto, deixou de lhes dar importância e passou a responder o que quer que fosse, para despachar tudo aquilo, que já se fazia tarde. O coletivo de médicos não parava de escrevinhar apontamentos nos seus blocos de notas. Pena não serem notas de euro, ficariam ricos com a sua consulta. Lá estava ele a tirar partido de uma enorme estucha.
Findo o interrogatório, onde não faltaram perguntas sobre possíveis hemorroidas e se se recordava do que tinha comido ao pequeno-almoço, mais uns testes patetas com relógios e horas de bocejo, percebeu que não apenas já não valia a pena, de facto, regressar ao escritório, como era bem mais tarde do que a sua habitual hora de saída. Malditos médicos. Nunca mais o apanhavam numa coisa daquelas. A que propósito uma junta médica? Teria sido a empresa? Estariam arrependidos da recente promoção e quereriam, agora, desfazer tudo de forma radical, vendo-se livres dele por completo? Pulhas. Matutava, perplexo, nesta eventualidade quando, uma brigada da GNR, em amena operação STOP, o manda, precisamente parar. Não percebeu como, foi tudo demasiado rápido e patético. Apreensão de carta e impossibilidade de conduzir até obtenção de um atestado médico. Aquilo era simplesmente demais. Só ficaremos bem servidos quando forem as máquinas a tratarem de tudo. Até lá, estamos sujeitos a todo o tipo de mal-entendidos e disparates. Era o mundo a enlouquecer à sua volta. Tudo no mesmo registo da junta médica, cheios de atenções e delicadezas. Até o conduziram a casa, para lhe evitar mais incómodos. Isto já não poderia ser obra da empresa, que não era assim tão influente, nem tinha extensões para lá das quatro paredes em que funcionava. Aquilo tinha mais a ver com karma, ou falta de feng shui, ou qualquer outra modernice pós-mindfulness.
Esperem até que fiquem a conhecer o relato do que o aguardava em casa. Surreal. Deu por si de babete, em frente a uma taça de flocos e a mulher a perguntar-lhe insistentemente se tinha vontade de ir à casa de banho. Na sua própria casa? Inadmissível. Levantou-se de supetão, quase tropeçando numa tripeça que por ali andava, e levou o jornal para a casa de banho. Se queriam tanto que ele fosse, ele iria. Sempre ficaria sozinho. Aproveitaria e fazia já a barba, que fazer a barba de manhã era coisa que o aborrecia de morte, se bem que, em apenas uma noite, a barba tinha alturas em que crescia como erva daninha em dia de chuva. Palpou o rosto e, admirou-se por sentir a pele suave. Extrema e inesperadamente suave. Nem precisaria de fazer ainda a barba. Olhou-se ao espelho. Gelou. Na superfície plana do vidro, as suas rugas avolumavam-se em perfil 3D. Pior. Não era o seu rosto. Era a avó Rita que o olhava com olhos esbugalhados e surpreendidos. No reflexo do espelho? O que faria ela ali?
Fotos By Lee Jeffries
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