Esta é a história de como, por portas e tendas travessas, começou a mais emblemática e celebrada empresa de organização de festas surpresa para adultos.
Um ano antes
Asdrúbal mal podia esperar pelo dia da festa. Andava envolvido na organização do aniversário do seu companheiro/futuro marido/amante que aconteceria daí a precisamente um ano. Meio século de vida, quase vinte dos quais enquanto inseparáveis parceiros de andanças mil. Entregara tudo nas mãos de uma empresa internacional, que quando o pretendido é o segredo absoluto e a surpresa máxima, só se pode confiar em bons profissionais. Aquilo ia custar-lhe o ordenado de quase um ano de trabalho, mas a sua barber shop BalRoom, ia de vento em popa e o amor deve ser celebrado e mimado e acarinhado e bradado com os devidos decibéis. Reuniria o atual núcleo duro de amigos comuns, grupos de amigos e conhecidos de todas as épocas, mais ou menos remotas no tempo, e os poucos familiares a quem tinham exposto o seu amor – não eram muitos, pois ambos vinham de famílias tradicionais, demasiado fervorosas do seu convencionalismo bacoco, para aceitarem relações ‘antinatura’, como a elas se referiam, fazendo eco de vozes preconceituosas e redutoras de párocos de aldeia de outros séculos. A fim de que tudo fosse assegurado com primores e requisitos de primeira, tinha entregado a tarefa à mesma empresa que tratava de casamentos aristocráticos, e mesmo alguns enlaces reais em toda a Europa.
Havia demasiado a fazer: estabelecer todos os contactos necessários, garantir que todos convidados estariam disponíveis na data, tratar de toda a logística e transporte de quem vinha de mais longe, no espaço e no tempo, de mandar fazer os convites, concebidos por designers de topo, de os enviar atempadamente, de tratar das respostas, de eleger o espaço, o catering, a decoração, o dress code… Apenas de pensar em tudo aquilo que havia para fazer, sonoros suspiros desprendiam-se dos lábios hidratados de Asdrúbal. A conceituadíssima Snob&Snob, cuja especialidade, a par dos casamentos, eram festas surpresa para adultos em todo o mundo, trataria de tudo com esmero e muita pompa, que a circunstância assim o exigia e Asdrúbal assim o desejava. À empresa tinha passado todo o tipo de informação, incluindo cópias dos contactos de telemóvel de ambos, acessos pessoais às redes sociais – não apenas para perceber, através dos históricos, quem deveria realmente estar presente, como para evitar comentários e deslises, ainda que inofensivos, que pudessem comprometer a surpresa. Asdrúbal andava encantado com o profissionalismo e os muitos tentáculos da empresa em Portugal. Um palacete semiabandonado, onde imaginara um cenário boémio-circense, e cujos donos sempre recusaram a sua proposta, estava já assegurado, e este era apenas um dos inúmeros exemplos de obstáculos abatidos pelo poder da diplomacia e do dinheiro que colocara nas mãos da empresa.

By Stanley Kubrick
Desde que os contratara, há já quase um ano, que Asdrúbal apenas é chamado a decidir detalhes estéticos, ou a alterar algo que menos lhe agrade e que venha referido nos relatórios quinzenais, onde é colocado a par de todos os desenvolvimentos. Mereciam todos os tostões que cobravam, pena era que não fossem realmente tostões, mas sim, milhões. Mas o seu Janeco tudo merecia. Tudo e mais um tanto. O seu único lamento, por esses dias, era não ter budget para contratar Sir Elton John, mas conseguira, para o seu outfit, mais uma vez com a estrondosa ajuda da Snob&Snob, uma réplica perfeita de uma casaca do cantor britânico, confecionada pela mesma costureira do original, ainda muito destra nas artes da confeção artística e no uso de lantejoulas e paillettes. Não era, de forma alguma, o seu estilo, mas para uma ocasião especialíssima, em que o propósito era surpreender o seu mais que tudo, porque não surpreender em todas as frentes? Estava a adorar o seu visual glampop, o qual ia bem com toda a temática da festa, e já magicava um penteado que o deixasse irreconhecível. Haveria, ainda, um fato concebido para o aniversariante e que este usaria depois de surpreendido pela festa, à qual teria de ir achando Janeco que iam apenas jantar fora, a casa de uns novos clientes da barbearia, ou coisa do género. Ou talvez lhe colocasse uma venda nos olhos, a qual retiraria apenas no centro do enorme chapiteau montado no átrio principal do palacete e decorado em estilo boémio-circense.
Seis meses antes
Asdrúbal prescinde dos préstimos da Snob&Snob, mas há quem garanta que foi a empresa a cancelar o contrato por falta de cumprimento. Ao cabo de três derrapagens principescas, que a empresa atribuía aos acréscimos megalómanos de Asdrúbal, e temendo este a bancarrota, substituem-se os artistas do Cirque do Soleil por um circo menos heliocêntrico, que costumava assentar arraiais ali para os lados da Chamusca, que é terra escaldada, como bem se percebe, e que sabe fugir de exorbitâncias rumo aos saldos. Haveria na mesma quem cuspisse fogo e outros que o engoliriam, e o palhaço de rico passava a pobre, os domadores a domados, e os animais exóticos viriam, afinal, de capoeiras locais e tudo seria mais alternativo e delirante, que excesso de profissionalismo só iria retirar protagonismo ao seu Janeco e isso – dizia Asdrúbal mais para se convencer do que outra coisa –, é que não podia acontecer. A sua casaca seria alugada num teatro de Alcântara e o palacete daria lugar a um amplo descampado ali para os lados de Marvila, agora tão em voga, com todas as estrelas do céu como teto. Não deixara de ter problemas, mas eram todos mais contornáveis. Por enquanto, rezava um terço a Nossa Senhora, para que um persistente torcicolo deixasse em paz a contorcionista, que também cometia as suas loucuras no trapézio, sempre que as suas hérnias discais não comprometiam o arriscado número, amparado pela rede digital, a mais segura, segundo o informaram. Um duo de acordeonistas gémeos, versado no ligeiro-cancioneiro, animaria as hostes e um ou outro amigo do tunning garantira um fabuloso DJ7, pois eram sete a ‘orientar’ o equipamento necessário. Tudo em bom e em bem, como sempre desejara.
Fotos by Nina Leen
Um mês antes
Por falta de apoio, o pequeno teatro de Alcântara fechou portas e todo o guarda-roupa foi penhorado pelo senhorio do rés-do-chão esquerdo onde atuavam duas vezes por ano. Asdrúbal decide usar o fato com que brilhou num louco Carnaval no Rio… Tinto. A contorcionista já não tinha dores, felizmente. Tinha morrido de uma septicémia e agora já estava em paz, a pobrezinha. O pior é que tinha deixado um buraco de duas atuações que agora teriam de ser preenchidas por números caseiros. Uma prima voluntariou-se para um showcase, onde cozinharia cachupa de caranguejo ao vivo, e um vizinho garantiu que montaria uma maca para reiki. Nestas coisas, Asdrúbal era absolutamente pragmático e dizia, de si para si, que nestas e noutras coisas “o ótimo é inimigo do bom e bom já é o bastante”. Depois, não havendo termo de comparação, entre plano inicial e final, todos ficarão de boca aberta na mesma e Janeco terá a surpresa da sua vida. Por esta altura, Suzy, amiga de longa data, era a responsável máxima pela organização da festa surpresa para adultos desenhada para assinalar os 50 anos do companheiro de Asdrúbal. Pegou em toda a informação que já andava desgarrada e retomou a tarefa dos convites e reconfirmações, dos comes e bebes, com particular carinho pelos bebes, das atuações circenses e da montagem da tenda e, em menos de nada, deu tudo por concluído.
Fotos by Robert Doisneau, George Brassäi e Marie Šechtlová
Uma semana antes
Com os nervos em franja, e Janeco nem por isso muito animado com a ideia de estar a chegar à idade do meio e a teimar que gostaria que fizessem uma viagem sozinhos, para deglutir as cinquenta décadas, que, essas sim, lhe pareciam cinquenta sombras de cinzento e preto, Asdrúbal refinava-se em mentiras e desconversas.
Suzy, afinal, continuava sem empresa de catering definitiva, mas já havia pipas de vinho e uma central de cerveja a operar na tenda de circo, entretanto montada e testada nas festas populares da cidade. Os artistas ensaiavam e, apenas à noite, o cenário era bonito e apetecível. Cheio de velas e relva sintética, e anões de jardim e cadeiras de diferentes nacionalidades e até um ou outro sem-abrigo. Tudo junto e era um paraíso do kitsch, que muitos já procuravam para diversão noturna, para gáudio da família circense, que sempre ia fazendo uns trocos extra.
Um dia antes
Asdrúbal entra em crise e decide cancelar tudo. E se Janeco não gosta? E se os couratos não chegam? E se a muqueca fica estragada? E se os animais de quinta não obedecem? E se o seu fato já não lhe servir? Suzy acalma-o com um grito e um bom safanão e tudo volta a entrar nos eixos. O catering fica resolvido com a recomendação de última hora de que cada comensal deverá levar a sua própria marmita. Não apenas todos comerão, como não criticarão a comida que é servida ou a quantidade da mesma. Melhor ainda, não haverá desperdício. A decisão agrada a Asdrúbal, mais feliz enquanto alarga as costuras do seu fato daquele Carnaval de má memória, ou boa, não se recorda ao certo.

By August Sander
No dia da festa
Vendado, Janeco segue as instruções precisas de Asdrúbal. Em plena tenda, onde um miraculoso foco de luz que se julgava fundido acende de rompante, o aniversariante olha em redor entre o deslumbrado e o assustado. O fumo dos grelhadores improvisados em metades de bidons, como nas festarolas de antigamente, enchem o ambiente de uma misteriosa atmosfera aromatizada pelas febras e entremeadas. No ar, uma acrobata rodopia numa corda da roupa, quinda com algumas peças no estendal, e um homem dança no arame farpado que encima a vedação daquele baldio, tentando entrar de penetra no recinto. Todos cantam os parabéns. O barulho dos escapes de quem chega de motoreta ecoa como rufos de tambor. Há um frisson no ar. Janeco emociona-se com a largada de balões brancos que flutuam já rente ao teto da enorme tenda, a par de algumas aves de capoeira que se acreditava não conseguirem voar, mas o pânico surte este efeito em algumas situações, como todos descobriram. Um palhaço abaixo do remediado tira moedas detrás da orelha de Suzy, que lhe prega um estalo, pois tem problemas de sociabilização. Todos riem do que julgam ser um número. Há pessoas sem cabeça e cabeças sem pessoas. Cenas de faca e alguidar improvisadas num momento de desacatos. Gigantes e anões, adivinhos e malabaristas, ou já se inventa por aqui? Outros números se seguem, num vórtice que deixa o aniversariante em êxtase. Asdrúbal rebentava de felicidade, por ter alcançado tal nível estético e artístico numa festa que chegou a ter tudo para ser dramática. À noite, todos os circos são bons. Dirige-se à rua, onde, à entrada, uma cartomante vai deitando as cartas e a sorte. Nisto, à sua frente, surge um cavalo nem branco nem preto, montado por uma bela amazona e três adoráveis crianças sentadas em cestos laterais.
“Meu Deus”, gritou, “É a Madonna, ainda bem que não demos a festa num palácio!” Aquela deusa apeia-se com a ajuda de pajens, ou assim lhe pareceu. Dirige-se a Asdrúbal ladeada já pelas adoráveis crianças, todas vestidas de igual e de mãos dadas. Um encanto. Uma ternura. Estas correm para os braços de Janeco a quem chamam pai. A deusa dá um abraço a Asdrúbal e felicita Janeco por finalmente ter assumido o seu casamento ao amante. “Já estava na hora de sairmos do armário!”, diz sorridente e num tom absolutamente simpático. Asdrúbal percebe que não é a Madonna. Vermelho como uma bandeira comuna, vira-se para Janeco, com um semblante onde havia raiva, drama, amor e incredulidade, abre a boca e… cospe fogo. Surpresa geral. Os aplausos são retumbantes. Nunca se tinha visto uma festa como aquela, talvez por ter virado um completo e verídico circo. Era a apoteose. O maior espetáculo do mundo. Ainda hoje se fala disso, embora o Google tenha dificuldade em encontrar o caso. A cachupa também foi um sucesso, ainda que à última hora se tivessem substituído os caranguejos por delícias do mar. Fez sentido que assim fosse. Afinal, estas eram por definição deliciosas. Quem poderia garantir que os caranguejos o seriam?
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