Na Rua de Baixo, que ficava exatamente abaixo da Rua de Cima, sendo ambas mediadas pela Rua do Meio, o universo parecia ter-se concertado para reproduzir em menos de 50 metros de comprimento e muito menos do que isso de largura, um exemplar de cada um dos vários tipos humanos. Um mostruário tão completo que até tínhamos um leproso, que é coisa que vai sendo rara por estes dias, e bem reveladora de como não se pouparam esforços para recriar o mundo todo numa única artéria.

Havia de tudo um pouco, sendo que para o nosso universo, cada um era quase um protótipo ímpar, especial e irrepetível e todos aceitávamos que assim fosse, que todos fôssemos únicos, preciosos. Mas não tão preciosos que não nos conhecêssemos exatamente pelo detalhe que nos diferenciava. O que gaguejava era o Gago, o que coxeava era o Coxo, o que tinha lepra era o Leproso… Sem maldade ou preconceito. Era o que era e aceitávamos que assim fosse. Além de que, dessa forma, ninguém era verdadeiramente normal, porque nenhum de nós se assemelhava. Todos únicos. Um de cada. Uma mostra representativa de todas as possibilidades genéticas. Um grupo estranho. Muito estranho, mas feliz. Um miniplaneta surreal, que era nosso e só nosso!

As nossas particularidades não eram tanto de natureza física, exceto a copilota – já lá vamos – e eu, o Mais Feio, por ser, precisamente o mais feio de todos os habitantes da rua, segundo fui sendo informado ao longo de toda a minha vida. Não foi necessária votação, nem comparações patetas à laia de concursos de beleza. Era apenas uma evidência brutal e desmesurada. Não havia como contrariá-la ou razão para a contradizer ou lutar conta ela. Podia ser até que eu, o Mais Feio fosse o mais feio do mundo. Porém não nos regíamos por superlativos. Éramos o que éramos, sem juízo de valor ou preconceito, mas também sem melindres idiotas. Regíamo-nos pelas evidências. E o óbvio é sempre óbvio. O Baixinho era o baixinho e o Gordo era o Gordo. Apenas isso. Apesar dos horrores que a linguagem parece hoje causar na sensibilidade social, a verdade é que éramos, e somos, inclusivos. Todos iguais na sua aberrante diferença. Todos iguais na sua obsoleta humanidade e biologia. Um de cada.

Uma mostra representativa de todo o mundo, reunida na Rua de Baixo, mas nós, a grupeta, éramos apenas cinco e um dia fomos Fátima. Levámos o carro do Maneta, o único carro da rua que nos pareceu conseguir chegar inteiro ao destino, até pelo facto de ser uma relíquia com um conta quilómetros que quase não contava metros, quanto mais quilómetros, já que o Maneta perdeu o braço pouco depois de ter comprado o carro e o mesmo é dizer que pouco andava com o veículo e quase sempre por ali, nas redondezas da Rua de Baixo, pois nunca adaptou o carro às novas necessidades. Não o culpávamos. Contrariamente à maioria de nós, todos programados à nascença com a nossa particularidade, o Maneta tinha conhecido as alegrias da dualidade, da duplicação de Úmero, Rádio e Ulna. Um de cada em cada braço e antebraço, pelo que vivia agora na privação. Conhecia aquilo que lhe faltava e tinha saudades do que havia perdido. Era um caso sensível gerador de empatia.

Assim, no carro quase sem uso do Maneta, seguíamos cinco, dispostos a irmos a Fátima, com intuitos que iam do religioso ao gastronómico. Isto porque o Idiota se convenceu de que Cantanhede e Mealhada e, no fundo, toda a zona da Bairrada e do seu belo leitão, ficava logo ali, a dois passos da Cova da Iria, pelo que o apetite a gordura de filhote de porco e a devoção a Nossa Senhora de Fátima se misturaram numas migas de propósito incerto e meio baralhado. A fim de unir esforços e dividir o valor da gasolina, que a vertente prática da vida não deve ser desvalorizada, menos ainda descurada ao desbarato, mesmo quem sabia bem avaliar as distâncias geográficas, embarcou na viagem a Fátima, com possível extensão à zona da Bairrada. O Espertalhão achava mesmo que, se encontrássemos em Fátima um sítio que servisse leitão ou apenas uma sandes de leitão, mal-amanhadas que fossem, se convenceria o Idiota e sem qualquer tipo de esforço, de que estávamos em Cantanhede ou qualquer outro destino celebrizado pelos pobres dos leitões assados em tenra idade.

A Malcriada, das únicas pessoas da grupeta com carta de condução e verdadeira paixão por carros, foi a condutora destacada para a viagem a Fátima. No lugar do pendura, e chegamos à outra exceção, ia a Anã – vão ter de aguentar sem chorar e sem irritações, é assim que nos tratamos e mais vale aceitar que dói menos –, com uma almofada debaixo do rabo bordada pelo Habilidoso, e onde se podia ler: Coisinha Fofa num delicado ponto espinha. Elevada pela Coisinha Fofa, Anã copilotava como uma profissional. Irónico, o sexto elemento – que agora vos deixa este relato –, não entrava na contabilidade, já que a ironia cabe em qualquer lugar, vai bem com qualquer roupa e é sempre bem-vinda. Éramos, portanto, os Cinco + Um a caminho de Fátima e de uma sandes de leitão da Bairrada, onde quer que a encontrássemos, preferencialmente antes da zona da Bairrada.

Como única bagagem, um radio a pilhas bem grande, já que o carro do maneta estava sem som. Parece que havia ratos a dormir no quentinho do morto, ou algo do género, que se entretinham a causar curtos-circuitos ou apenas a roer os cabos por diversão, que as noites enfiado num carro podem ser longas e enfadonhas. Idiota levava-o no colo, mas nem sempre funcionava, como descobriríamos logo depois de sair de Lisboa. Ainda esticámos a antena para fora do carro, mas depois havia a questão do vento e do barulho deste…

Logo no início da aventura semirreligiosa, Irónico ainda tentou que Anã lhe cedesse o lugar, mas em vão, pois, na verdade, ninguém era tão entendido nas tecnologias analógicas quanto ela, que entendia um mapa de papel como ninguém mais.

– As mulheres, de facto, não se medem às palmadas. Aqui a Anã, onde mal conseguiríamos acertar uma palmada, é uma exímia leitora de mapas e outras realidades abstratas. Basta ver como é entendida em astrologia. Ninguém determina um ascendente quanto ela.

Arrumou-se de vez o assunto copilotagem. Até porque outro se lhe sobrepôs. Ainda mal tínhamos passado Alverca e demos conta de um fenómeno. A parte da frente do veículo autonomizou-se da arte de trás e aquilo que por lá se passava era ex-tra-or-di-ná-ri-o. Encarnando de forma imersiva os papéis de pilotagem, Malcriada e Anã ignoravam tudo o resto em seu redor. Todo o universo se resumia a um pedaço de alcatrão e a três espelhos retrovisores. Tudo o mais se eclipsou das suas mentes. Nada mais existia, nem sequer as necessidades físicas de Idiota que, como sempre, já tinha entrado no carro com vontade de ir à casa de banho e já gemia de ansiedade e dor na bexiga.

– Filhos da puta, filhos da puta… Achas que conseguem ler os meus lábios?

– Achas mesmo necessário? O facto de andares há três quilómetros a impedi-los de te ultrapassar não será suficiente, sem acrescer a isso uma aula de leitra de lábios pelo retrovisor? Não sei, estou só a mandar ideias para o ar. O que te parece?

– Grandes filhos da puta. FI-LHOS DA PU-TA. Ouviram? FI-LHOS DA PU-TA.

– Achas, ou não, que conseguem ler os meus lábios? Espero que saibam ler os meus lábios, grandessíssimos FI-LHOS DA PU-TA. Grandes cabrões. Vou no limite de velocidade pelo que ninguém pode ir mais rápido. É simples de entender.

– Mas tu és agora o provedor da velocidade na autoestrada?

– Não, sou a provedora e aqueles tipos são uns enormíssimos FI-LHOS DA PU-TA!

Sempre que Malcriada dizia isto colocava os lábios bem no centro do retrovisor interior e articulava bem as palavras e com um volume que seguramente era ouvido em toda a extensão da A1. Erguia-se até um pouco no assento, descurando por completo a condução. Anã já começava a denunciar receio, o que não lhe era muito comum, habituada que estava a defender-se num mundo incomensuravelmente maior do que ela e gente sinistra e sádica.

Não tardou a que todos, com mais pronunciada gana o Idiota, fossem contagiados com o vírus da loucura motora, que acomete todo e qualquer ser humano desde que se coloca em andamento aos comandos de uma viatura. Costuma afetar apenas quem está ao volante, mas Idiota era um criativo entusiasta, com pendor para qualquer assunto que envolvesse estupidez ou drama.

– Isso, Malcriada, mostra-lhes quem manda aqui. Grandes filhos da puta. Quem se julgam eles? Onde querem ir com tanta pressa? Passem por cima, grandes broncos! Aposto que vão diretos ao mesmo restaurante do que nós e que, chegando mais cedo, vão acabar com a última dose de leitão. NÃO OS DEIXES ULTRAPASSAR-NOS!

Até Espertalhão não se continha, virando-se para trás e fazendo manguitos aos dois ocupantes do outro carro, como se tivesse enlouquecido. Espumava de raiva e não parava de incentivar a doida da Malcriada, que sozinha já dava bem conta do recado, e que conduzia agora já de braço de fora a mostrar o dedo do meio ao outro carro, quase roçando os raids. Idiota rejubilava. Pulava no banco e emitia guinchos histriónicos que promoviam toda aquela situação a um estádio de loucura inimaginável. Lembrava os gritos de um cowboy.  Irónico nem conseguia pensar, nem fazer-se ouvir por cima de tamanha insanidade.

Anã, a mais calma, ainda assim, era também a que conseguia manter um raciocínio mais lógico e são.

– Mas qual é o vosso problema? Acham que a estrada é só nossa? Que interessa se seguem em excesso de velocidade? Na verdade, não era má ideia abrandar e parar na próxima estação de serviço. Isso, sim, era inteligente.

Nisto, enquanto Malcriada continuava com aquele número de linguagem gestual e de soletração de asneiras ao retrovisor, apercebi-me, antes de todos os outros de uma luz azul que lançou o alerta vermelho ao meu cérebro. O carro que nos seguia era um veículo descaracterizado da polícia e o que se seguiu, só visto, pois contado vai parecer mentira do início ao fim, se é que ainda lançam crédito a este relato. Apenas uma cor, intermitente, mudou o tom de todo o ambiente que até àquele prévio segundo reinava no carro.

 

– Achas que conseguiram ler os meus lábios?

Até esta pergunta, feita até à exaustão nos últimos 10 quilómetros, tinha mudado de tom. Adquiria agora uma tonalidade de súplica, de quem solicitava compreensão, uma voz amiga que sossegasse, que dissesse: deixa estar, vai ficar tudo bem, ainda que contrariando as evidências. Idiota, por ser isso mesmo, respondeu prontamente:

– Claro que sim, esta gente está treinada com todo o tipo de ‘quilts’…

– Abranda, faz pista e, de forma bem tranquila, encosta à berma.

Anã continuava a ser a voz da razão, no meio de todo aquele caos transformado, num repente, em pânico temperado de estupefação. Para quem nunca saía de carro, aquela viagem era, em tudo, excecional, até na probabilidade de terminar com cadastro.

Malcriada parou o carro, seguindo quase todas as boas práticas automobilísticas recomendadas pela Anã. O carro da polícia parou alguns metros atrás. Aguardaram. Parecia uma eternidade, com aqueles dois sem saírem do carro.

– Meu Deus. São bandidos com uma luzinha azul comprada no chinês. Fomos bem enganados. GRAN-DES FI-LHOS DA PU-TA!!!

De repente, o medo escalou ainda mais. A polícia já assustava, mas acabar às postas e espalhados pela autoestrada era todo um novo tipo de terror. Malcriada nem repensou o assunto. Volta a ligar o carro e faz um arranque daqueles só vistos em Le Mans, ou nos filmes sobre Le Mans, pois que nenhum dos cinco alguma vez tinha lá estado para presenciar o tipo de arranques que por lá acontecem. Nós os três, do banco de trás, estávamos com os olhos postos no carro ainda parado lá atrás, mas logo percebemos que vinham em nossa perseguição. E na bisga, com o pirilampo azul a cintilar indignação por todos os flashes. Aquilo só podia piorar. Com uma manobra arriscada, ultrapassaram-nos e bloquearam-nos a passagem. Saíram do carro e, afinal estavam fardados. Ou era Carnaval por aquelas paragens, ou estávamos safos. Sempre era a polícia. Em princípio, já não morreríamos esquartejados. Antes a choldra. O Básico já lá tinha estado e não lhe aconteceu nada daquilo que vimos no cinema. Até aprendeu um ofício e tudo. Os policias aproximam-se. Um mais à frente, o outro mais perto do carro deles.

– Porque não parou quando mandámos?

– Não percebi, senhor agente.

Acrescentar senhor agente foi inteligente por parte de Malcriada que, por uma vez, não fez jus à sua alcunha.

– O que achou, então, que estávamos a fazer?

– Não sei, tive medo, senhor agente.

Malcriada, no seu melhor, e que rapidez de raciocínio.

– E depois de perceber e parar, porque se pôs em fuga?

– Entrei em pânico. Podia ser uma tentativa de Carjacking…

– Carjacking…

– Sim, é só do que se ouve nas notícias… Tanta coisa ruim, por aí. Fiquei aflita. E logo quando estamos a caminho de Fátima, ver a minha santinha…

– Os seus documentos e os do carro.

Malcriada remexeu na mala, que Anã lhe passou para a mão, e rebuscou durante tempo suficiente para chegar à Lua… a pé.

– Não tenho. Não trouxe a carteira e na pressa também não trouxe os documentos do carro.

– Verifica esta matrícula.

– É de um Francisco Melo.

– É nosso amigo, senhor agente e emprestou-nos o carro para virmos cumprir uma promessa a Nossa Senhora de Fátima, que anda sempre comigo, quer ver, senhor agente, olhe a minha Santinha.

Malcriada acenada sem parar um pequeno postal, daqueles das igrejas, e pela cara da figura, a santinha já estaria maldisposta.

– Percebe que isto não se pode ficar assim, com uma santinha no lugar dos documentos, certo? Milagres não são da nossa responsabilidade.

– Mas, senhor agente, olhe bem para nós. Dependemos todos de milagres e por eles rogamos à minha santinha sempre que conseguimos um carro emprestado.

Num relance pelos cinco ocupantes do veículo, e ainda com a santinha a balançar-se no ar em frente ao seu nariz, o agente parece entender a necessidade de milagres múltiplos, mas continua com ar de poucos amigos. Nisto, recebe pelo rádio uma indicação numérica que o faz olhar imediatamente para o colega, ainda lá mais atrás, que lhe faz sinal de que têm de partir.

– Siga, mas com cuidado, percebeu? Tenho a matrícula do carro e entraremos em contacto, que isto não fica assim… Vá lá ver a sua santinha e nada de disparates na estrada.

– Sim, senhor agente, nunca acima de 120 km/h. jamais, que a minha devoção não mo permite. Olhe, quer ficar com a minha santinha, parece que irá precisar e eu tenho mais na carteira.

O agente não para e Malcriada sai a correr do carro, ainda a tempo de colocar a santinha no limpa-para brisas do carro da polícia, instantes antes de este partir a acelerar, com o tal pisca-pisca azul no topo do teto.

Malcriada regressa ao carro esbaforida e com um par de santinhas na mão.

– Digam lá que não há milagres! Vá.

Sem paciência para mais disparates, menos ainda de teor metafísico e fantasioso, Anã, atira:

– Entra imediatamente e vê se não voltas a ter paragens de cérebro enquanto conduzes, pode ser? E olha bem para os meus l ábios: NA-DA DE DIS-PA-RA-TES!!!! Já me chega.

Virando-se para trás, o que implicava colocar-se de pé em cima do banco, Anã, fala para nós os três, que seguíamos lá atrás:

– Se abrirem a boca, largo-os na estrada. Última oportunidade, pois não pararemos até chegar a Fátima: alguém quer fazer chichi? É agora ou nunca.

Idiota, sem falar, acena que sim e abre a porta. Mas, Irónico informa:

– Tu já não precisas de ir à casa de banho, grande estúpido. Siga!

 

Moral da história:

Quando até carjakers repensam um golpe, é porque estamos mesmo a precisar de um milagre. Ainda bem que nem toda a gente sabe ler os lábios em reverso ou metaverso. Atchim! Santinha! Mil vezes, Santinha! Já agora, um agradecimento também a St.º Estevão, que zela por todos os viajantes e viandantes.

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