Poderão entender que tamanha coincidência ocorre apenas por beneficiar a presente narrativa, mas quem nunca assistiu a coisas completamente loucas, ou mesmo estúpidas e inexplicáveis, que coloque o dedo no ar, ou simplesmente abandone a sala. Se a vida vos foi favorável e rica em vivências, serão bem poucos os que partirão. Agora, sim, perante a audiência certa, escute-se a inacreditável história do trio de cordas Corda Banda Três+Um, que já deu a volta ao mundo e faz as delícias das redes sociais.

Tudo começou, para todos os membros deste agrupamento, com uma delicada – uma delas, as outras três nem tanto – carta de despedimento. Estava-se em plena crise de 2007/8 desta nossa fatídica era, a qual se arrasta até aos dias de hoje, escorraçando que nem lava fervente, milhões de indivíduos condignamente inseridos na engrenagem oleada do mais insólito capitalismo, para as áridas margens da sociedade. Todos eles se tornaram obsoletos e excedentários no ambiente de dieta rigorosa e regime detox que se instalou no setor público e privado. Havia que emagrecer as estruturas, adelgaçar custos, drenar supérfluos ou mesmo matar à fome alguns departamentos ou empresas na sua totalidade, a fim de fazer frente aos novos e exigentes padrões de beleza empresarial e maquilhagem financeira.

By Antonio Mora

Deu-se a purga. Mesmo de tecidos saudáveis, e de músculos tonificados, porque quando a dieta é forçada pela falta de alimento, não há verdadeiros sobreviventes. Não há real cura. A purga, nestes casos, funciona segundo a mesma lógica de um vírus, ou letal bactéria, destruindo tudo aquilo que encontra pelo caminho. Desde que os tecidos sejam permeáveis, são contaminados, corroídos, comidos. Inflama, infeta e, por fim, mata. Assim foi no hospital privado em que o então médico Luís Mosca exercia a especialidade de urologia. Com a crise, até as próstatas e restante vizinhança perderam atenções clínicas, além de que uma queixa contra um ato clínico, em que esteve envolvido, aceleraram o passo do seu nome na corrida para a lista de despedimentos desse ano. Havia que fazer cortes. Mosca foi pulverizado, como gostava de dizer, quando ainda fazia humor com a situação. O seu número de stand-up, porém, durou muito pouco tempo, mas, mesmo assim, mais do que o seu casamento. Um pouco menos do que o seu crédito. Amizades e autoestima terão sido as últimas a desertar, mas também elas seguiram para parte incerta.

Passado algum tempo, deixou de as procurar. A vida na rua exigia novas rotinas e bem mais prementes preocupações, sendo que procurar comida e sítio onde dormir com alguma segurança, eram as mais desgastantes e aquelas que maior tempo consumiam. O restante tempo era passado a lamentar a sua burrice e ela manifestou-se de muitas formas: na escolha da mulher, que ao primeiro sinal de perigo sério se pôs a salvo, pelo que não devia ser um grande amor; na ingenuidade de que deu provas ao usar de rigor e veracidade quando explicou os factos naquela espécie de tribunal interno para apuramento de responsabilidades, quando – soube-o mais tarde – todos os colegas inventaram ‘verdades’ que melhor os defendiam; ao ter saído de casa sem nada querer, confiante ainda nas suas capacidades e curriculum… Que burro!, repetia para si mesmo um milhão de vezes ao dia, quando ainda se dava ao trabalho de remexer no passado, enquanto já necessitava de esgravelhar o lixo.

Foi nessas andanças que conheceu Inácio Pacheco. Melhor dizendo, achou-o a meio caminho entre o céu e o inferno, com uma agulha enfiada ainda no braço. Valeu-lhe o treino de médico e a vontade expressa de Inácio de percorrer novos caminhos. “Depois de uma vida de cão, fui salvo pelo Mosca”, dirá Inácio, anos mais tarde, em entrevista a um conceituado e muito alternativo site de música. Inácio Pacheco tinha vasta experiência em processos de restruturação e qualquer outro tipo de despedimento. Eles eram quase tão antigos quanto a sua necessidade de aspirar pós pelo nariz, mas bem mais antigos do que a sua mais recente heroína. Quando as principais feridas são psicológicas e se enraízam na infância e adolescência, com pais toxicodependentes e uma vivência direta e pessoal de violências várias, não há Processos Especiais de Revitalização, insolvências, falências ou meros chefes que não iam com a sua cara ou, mais frequentemente, com o seu estilo de vida, que possam realmente fazer mossa. Desde que equilibrados e assegurados os níveis de toxicidade no cérebro, tudo lhe parecia simples de resolver. Costumava cair de pé e todos aqueles amigos a quem sempre forneceu ‘estimulantes’ e outras recreações, acabavam por lhe dar a mão e algo mais. As oscilações na sua vida eram tantas e tão drásticas quantas as flutuações da bolsa de valores, onde, de resto, sempre trabalhara, de forma direta ou indireta. Era um meio relativamente permissivo no que toca ao consumo de drogas, desde que estimulantes, claro, e desde que não consumidas nas instalações de trabalho. Tudo aquilo que ajudasse a aumentar o lucro e a fechar o dia no positivo era… positivo aos olhos de todos. Acontece que Inácio Pacheco gostava de variar, tinha propensão para o aborrecimento e logo que se fartava de algo, procurava novidades.

Estas foram-se sucedendo na sua vida e corrente sanguínea até que, um dia, caiu fundo e não houve mão amiga que o conseguisse alcançar, nem corretor que o empregasse. Acabou na rua e nas ruas.

Inácio sentia uma dívida de gratidão para com A-Mosca, como rapidamente passou a chamar Luís, que apresentava como seu médico particular. Por isso, foi numa espécie de paga à divina providência que ‘adotou’ um miúdo que tocava violino em pleno Chiado, dando pérolas a porcos, como é fácil de perceber. Deu por ele antes ainda de o ouvir tocar partituras clássicas, com inequívoca mestria e apaixonado enlevo, numa espécie de estado catatónico que o alheava por completo de tudo o resto. Em tudo isso reparou depois de já lhe dedicar toda a sua atenção, pelo número de gatos que seguiam aquele miúdo, pouco mais do que um adolescente, que se vira órfão de família e de escola, depois de ter perdido a bolsa de estudo que lhe tinha permitido sair de um lugarejo transmontano para vir para o Conservatório, em plena corte lisboeta. A falta de dinheiro e a vergonha, perante a família, empenhada até ao tutano para o conseguir manter longe de casa, impediam-no de regressar. Mosca e Pacheco, dentro das suas limitadas capacidades, ajudaram Manuel, de seu cognome, o Gato – sim, os gatos continuaram a segui-lo, como fãs convictos, no encalço do seu ídolo –, acolhendo-o no seu pedaço de rua.

Todos eles partilhavam, mais do que os desencantos do seu atual estatuto social, uma genuína paixão pela música. A-Mosca tinha tocado contrabaixo num quarteto de jazz, que o próprio tinha fundado enquanto aluno universitário, e Pacheco era um autodidata da guitarra clássica, tudo porque, em tempos, tinha garantido algumas doses de coca a um músico que, sem dinheiro vivo, lhe tinha entregado o instrumento, sua maior e derradeira relíquia. Imbuído de criatividade tóxica, Pacheco não tardou a dominar mais do que os rudimentos. Assim, não tardou a que formulassem o desejo de formarem um trio de cordas, com instrumentos que a rua providenciou, ou quase, mas não entremos em ilegalidades, pois já se percebeu que podíamos ser qualquer um destes homens. Mais do que um sonho latente, ecos da adolescência, em que qualquer um deseja ser uma rock star, este era já um projeto para escapar à indigência e à mendicidade.

Adotaram o primeiro nome que lhes surgiu como óbvio: Corda Banda, pelas cordas e pelo periclitante balanço das suas vidas, sempre à beira do fim. Ainda que relutantes acerca do possível sucesso da empreitada, elaboraram um plano de ação muito simples: tocar à porta de salas de espetáculos, antes dos concertos, animando o público com versões criativas de clássicos das bandas que iriam atuar, mesclados com temas clássicos. E não é que deu certo? Não só granjearam a simpatia de um eclético público, como despertaram a atenção de Benevides Galo, sexagenário caído em desgraça no meio artístico, que durante décadas se dedicara à produção musical. O vício do jogo e algumas dívidas de perfil obeso acabaram prematuramente com a sua carreira e, de um dia para o outro, Benevides deixou de cantar de galo. Mas como a vida não é uma linha direita e caminha em círculos mais ou menos concêntricos que tantas vezes parecem retrocessos de trajetória, lá veio a moda hipster, o amor ao vintage, a paixão pelo retro e Galo começava a ser revisitado por novas gerações de músicos e a remexer antigos cordelinhos. Ainda e sempre de ouvido apurado e ciente de que a sua vida não era tão diferente da daquelas três insólitas personagens, Galo acabou por ser o quarto elemento daquele trio de quase mendigos. Foi então que somaram Três+Um ao nome do agrupamento.

Num universo que presta vassalagem às redes sociais, a história destes quatro foi postada, repassada, escrutinada, ampliada, amplificada, modificada, amada e glorificada vezes infinito. Mais frequentes do que os muitos concertos em nome próprio que já davam, eram as entrevistas um pouco por todo o mundo, que a nossa aldeia é cada vez mais pequena e neurótica. Uma ascensão meteórica que jamais os impediu de regressarem à rua, seu primeiro palco, sua última casa, o que ia alimentando uma cada vez mais entusiasta e gigante turma de fãs e seguidores. Afinal, quem resiste a uma pitada de romantismo e universos alternativos?

Vão novamente dizer que o desfecho desta história cumpre meros propósitos narrativos, que as coisas não acontecem assim na vida real, que tudo isto mais parece um alinhamento cinematográfico, um guião nem por isso muito elaborado sobre a caprichosa e delicada linha do destino, a qual nem sempre as cartomantes conseguem ler nas palmas das mãos, uma vez que são linhas que se vão moldando por cada um, conforme a sorte e o azar do momento. Linhas vivas que avançam e retrocedem, que se adensam ou desaparecem e que se tornam fugidias a quem não domine verdadeiramente os sortilégios do destino. Porém, tudo aconteceu ao vivo, em palco, lá para os lados de Braga, ponto de paragem de uma longa tournée nacional, que celebrava o regresso destes bravos a terras lusas, após um périplo pela Europa e arredores. Tomem atenção e confirmem o seguinte relato com as muitas testemunhas, caso, ainda assim, mantenham ceticismos que, aqui, não criticaremos.

Em plena atuação, Inácio Pacheco, cuja conta bancária e retomado estatuto social o tinham atirado de novo para o canto iluminado das drogas recreativas, tem um estranho ataque cerca de trinta minutos após o início da atuação. Entre estremecimentos, em tudo semelhantes aos epiléticos, vómitos intermitentes e uma forte dor no peito, Inácio cai inconsciente, sem que o seu corpo deixe de estrebuchar, como que movido por um louco comando à distância. Luís Mosca, sem pestanejar, volta à sua bata de médico, abandona o majestoso contrabaixo, debruça-se sobre Pacheco, retira-lhe o papillon – sim, atuavam invariavelmente com fraque, camisa, colete e papillon, e jeans e ténis como complemento, numa alusão simbólica aos dois mundos que os acolheram – e coloca em prática os seus outros saberes. Parece conseguir reanimá-lo, mas logo invadem o palco polícias que não lhe reconhecem autoridade clínica para exercer medicina. Gera-se a confusão. Chegam os bombeiros e INEM. Mosca acaba por ser acusado. Uma possível tentativa de homicídio involuntário ou qualquer outro disparate do género. Pacheco não morre. É-lhe diagnosticada esquizofrenia. É internado numa clínica, onde vegetava num universo de drogas que nada têm de recreativo. Desfeito o trio de quatro, o miúdo, Manuel Gato – não tão miúdo assim, por esta altura –, num raro caso clínico, bloqueia toda uma zona do cérebro, deixa de conseguir ler partituras e passa o tempo a tocar as poucas músicas que a sua memória gravou de cor. Ainda hoje o seu caso vem referido nos manuais escolares de todas as universidades de medicina do mundo. Galo, que secretamente sempre foi gastando a fortuna dos Corda Banda Três+Um, em loucas, mas discretas apostas online, fugiu para evitar a vergonha e nova bancarrota, já agora.

Por razões bem distintas, o grupo volta a encher as notícias do planeta virtual. Há contras, há prós, há indiferentes, há amor, ódio e incompreensão. Depois, nada, seguindo o ciclo normal da vida online. Primeiro, tudo, depois, esquecimento, porque algo de novo já ocupa as mentes e os feeds.

Agora, anseiam, como se imagina, por um desenlace digno de Hollywood, em que uma espécie de milagre viesse resolver toda esta lamentável balbúrdia de vidas desperdiçadas pela segunda vez. Saibam, todavia, que o bom cinema deve preocupar-se mais em pôr-nos a pensar do que em pôr-nos a sonhar. Galo, segundo consta, vive num país africano, onde abriu, não vão acreditar, um casino semiclandestino, ou seja, é clandestino, mas frequentado por entidades oficiais. Mosca cumpriu uma pena que lhe consumiu grande parte do dinheiro que tinha de lado e da energia que a sua nova vida lhe tinha permitido recuperar. Acompanhou de perto o caso de Pacheco, e logo que conseguiu, levou-o para casa, onde o tentou curar com música e amizade. Juntou-se-lhes Gato e o seu inédito caso clínico, temperado por cíclicas depressões. Incapazes de reproduzir o projeto anterior, dedicam-se a inventar sons em computadores, mais como terapia do que como projeto profissional. Voltam a ter notoriedade, em grupos de nicho intelectualóide, e começam a acreditar piamente que não há duas sem três, que a vida é linda, que há cura para os seus males e que tudo vai ficar bem, finalmente.

Estavam enganados. A vida deixa marcas. Todas as vidas deixam marcas e não apenas nas linhas das mãos, como nos querem fazer acreditar cartomantes e outros mestres do invisível. Pacheco, num deslize de violência, ataca Gato, por este impedir que colocasse a cabeça no forno, onde acreditou que conseguiria apanhar uma tripe com gás. Este defende-se com uma faca. Quando Luís Mosca regressa a casa já é de noite e nada o podia preparar para aquilo que o esperava. Mas nem seria preciso. Acendeu a luz…

Moral da história:

Tiramos daqui duas conclusões: Há muito menos probabilidade de ser vítima de uma explosão de gás quando não se tem gás nem casa, e há, de facto, vidas mais simples do que outras, digam lá o que disserem.

Partilhar