Conclusão primeira: Clarisse imaginava melhor do que vivia.

Sempre imaginou, e imaginou-o incontáveis vezes, desde que se lembra de ser gente, que este dia seria especial. Que sentiria coisas que não caberiam nas pobres formas vocabulares e que, por isso, teria de ficar calada durante dias – talvez semanas, chegou mesmo a supor – antes que conseguisse dizer algo que se aproximar-se da enorme felicidade que sentiria. As palavras são pobres, sabia-o bem, e o seu peito rico em coisas e sentimentos, e emoções, e arrepios, e cores e sons e naves espaciais e especiais de coisas gigantes que não há maneira de se ajeitarem nas palavras. Nem alargando costuras, nem descendo bainhas, nem desabotoando fileiras de botões ou colchetes. Não há muito aconchego no vocabulário disponível, quando aquilo que se sente é colossal. Por decisão sua, mas não só, que o próprio corpo também tem muito a dizer sobre o assunto e não se coíbe em fazê-lo, nem se intimida com desejos e vontades, esse dia chegou. Soube-o, gosta de se convencer disso, antes mesmo de o saber. Antes mesmo do primeiro sinal do código geral das coisas que apenas se sentem ou intuem. Coisas que começam por ser mera convicção, sem provas ou testemunhos que as possam ancorar na realidade, ou na verdade.

Sentiu-o por um sem-fim de pequenos nadas etéreos, como sussurros de Deus, num idioma que parecia conhecer bem, mas que não conseguia interpretar cabalmente. Havia falta de treino, que as línguas exigem exercício diário e um cérebro capaz de raciocinar nesse dialeto, e um espírito apto a sonhar sobre essas palavras estrangeiras. Alice, decidiu, mas sobre isso ainda havia discussão. O marido gostava de Rute. Isso logo se veria. Chegou inclusivamente esse outro dia. O da confirmação. O do gesto probatório. O do documento oficial. Aquele que, por ela e em seu lugar, diria ao mundo o que já se passava, sem possibilidade de contraditório, pois que nada contra havia a dizer, e a refutação seria impossível. Um dia que, ainda que tivesse andado surda a tudo o que intuía, ainda que cega a tudo o que já se mostrava, colocava dúvidas, se as houvesse, no cesto da reciclagem, e todas as certezas no lugar que lhes era devido. Pois Ambos os dias chegaram, mas Clarisse estava longe de sentir tudo aquilo que até já havia experimentado por antecipação, com maior felicidade e alegria do que tudo aquilo que sentia agora. Era morno e não vibrava. Era pouco, muito poucochinho perante a enorme expectativa que ingenuamente antecipou quando apenas imaginava. Conclusão primeira: Clarisse imaginava melhor do que vivia.

Conclusão segunda: revoluções hormonais não destroem casamentos.

Sensibilizava-a aquela espécie de rosto tridimensional, a cores, quase um ser vivo, que era já o seu ser vivo. A sua filha. O seu segundo coração. Um coração que, em breve, suplantaria o primeiro, segundo ouvia dizer. Parece que as batidas que passam a garantir a nossa existência se mudam para esse outro lugar fora do peito. Aguardava esse momento. Seria um momento exato, a uma determinada hora? Ou um processo? Dar-se-ia durante o parto? Uns dias antes? Uns instantes depois? Ocorreria sempre, como uma condição universal da maternidade? Seria uma consequência natural, animalesca vivida de igual forma por todas as mães do universo? Aguardava. Não pretendia viver nova desilusão. Supunha até que, talvez, algumas fêmeas não experimentassem esse transplante de coração, essa mudança de casa cardíaca. Pensava-o sem julgamentos, que tudo é demasiado complexo e ninguém pode, levianamente e sem conhecimento de causa, entrar na toga de juiz nem em toca alheia. Pensava-o, porque queria perceber a que tipo de mãe pertenceria. Ao tipo visceral, que passa a viver por vicariato, ou ao tipo autocentrado, que não cai em truques de magia que lhe raptam o coração para parte incerta, apenas porque se pariu. Ambos os tipos amam os filhos, mas o primeiro sufoca e sufoca-se, enquanto o segundo respira sem dificuldades de maior, ainda que possa gerar insegurança no filho, mas dá-lhe certamente mais liberdade para ser aquilo que deve ser.

Teria tempo para averiguar tudo isso. Premente, para já, era ir controlando enjoos, mal-estar constante, flatulência, idas constantes à casa de banho, hipertensão, má circulação, retenção de líquidos, pés de elefante, diabetes, azia… A gravidez não era uma experiência agradável. Sentia-se um pequeno animal de engorda aguardando apenas o matadouro. A pele manchada, o corpo disforme e uma espécie de ansiedade constante. No meio de tanta coisa, total ausência de sexo e um casamento, também ele, a romper pelas costuras, ou demasiado esquelético, não sabia distinguir qual o tipo de sufoco. Em certos dias, pensava que tudo se resolveria depois do nascimento do bebé, que um pontinho aqui e um bom remendo acolá seriam mais do que suficientes para voltar a galvanizar o amor, e a criar na memória que tudo se deveu à enorme revolução hormonal que experimentava diariamente. Claro que um segundo de clarividência, um dos raros em que não estava a vomitar ou sentada na sanita ou em qualquer outro estado deprimente, lhe disseram o óbvio: o final de um casamento não se deve nunca a hormonas, nem por excesso nem por defeito, e que uma alegria – ambos desejavam a paternidade – não provoca tristeza.

Conclusão terceira: Tentar salvar um casamento com um filho, além de egoísta e estúpido, é como lançar a âncora num barco que mete água.

Claro que, entre o tumulto físico e psicológico, a oscilação sentimental acerca de tudo, o choro descontrolado, o cansaço permanente, a convicção de que era o ser humano mais medonho à face do universo, Clarisse tinha pouco tempo ou disposição para alimentar os níveis de afetividade e compreensão que um casamento exige. Enquanto ela se queixava de excesso de tudo, o marido acusava a falta de atenção e de amor, ou apenas carência de sexo, também não tinha bem a certeza. Clarisse entretinha-se a imaginar todos aqueles casais tolos que avançam para a grande aventura de ter um filho, ou mais um filho, esperançados de que isso salvará o casamento. Tanta ingenuidade e falta de discernimento. Como é que um filho salva o que quer que seja? Como se atrevem a lançar tamanha responsabilidade sobre um pequeno ser que é expulso, sem dó nem piedade, para o mundo dos vivos? Como têm coragem de se demitirem de resolver os seus próprios assuntos, de não chamar a si a exclusiva competência para se desenvencilharem? Um bebé requer toda a atenção do mundo, não está disponível para fazer terapia de casal. Além de que Clarisse sabia bem o que significava terapia de casal para um casamento. Era apenas um adiamento do previsível. Tentar salvar um casamento com uma criança é como largar a âncora num barco com um rombo no casco. Só precipita o desfecho que já se adivinha, mas que por qualquer razão se prefere ignorar. Reparou que as flores, na jarra sobre a mesa, começavam a murchar.

Pensar noutros casais fê-la refletir sobre o seu casamento. Dever-se-iam todos os seus enjoos e mal-estar ao mundo subaquático que crescia no seu útero? Não teriam ambos, Clarisse e o companheiro, desejado apenas aquele bebé, sem vontades paralelas de um amor feliz juntos? Teria o ‘projeto filhos’ anulado o seu amor ou iludiram-se, tomando por amor outra coisa qualquer que os ligava, na ânsia de conquistarem a experiência da paternidade? O que sentia de verdade, naquele momento, em relação ao marido? Era ainda amor? Teria alguma vez sido verdadeiro amor? Como se distingue o amor verdadeiro do outro? O que fazer quando não há termo de comparação? Aquele era o homem que mais ou melhor amara até então. Disso não duvidava, mas, em termos absolutos, que lugar do pódio ocuparia esse amor? Seria já um primeiro lugar ou apenas uma qualificação honrosa, daquelas que não permitem medalhas nem hino, mas que também não desonram uma boa carreira, um honesto desempenho? Clarisse não sabia. Sabia, porém, que ter dúvidas sobre isso era bastante esclarecedor. Um amor total, absoluto, divino, único e real não levanta dúvidas quanto à sua natureza, quanto à sua genuinidade e dimensão. Percebia também que Ricardo era um pouco egoísta e que tendia a não a apoiar nos grandes momentos, sempre mais receoso do que os outros poderiam pensar sobre o que quer que seja, secundarizando o que ela pensava ou sentia. Sentia-se hipersensível para querer formalizar opiniões demasiado sérias naquele momento. Mas a dúvida persistia na sua mente. O que sentia de verdade? Clarisse teve de interromper a profundidade dos seus pensamentos e voltar à superfície. A realidade mundana chamava por si. O que sentia naquele momento? Apenas gases. Correu como pôde para a casa de banho.

Conclusão final: Alice é muito mais bonito do que Rute.

Ricardo impacientava-se. Era a terceira vez que Clarisse ia à casa de banho e ainda nem tinham feito o pedido. Joana e Pedro, irritantemente de mãos dadas, sentavam-se felizes à sua frente e desdramatizavam a situação.

– Calma, Ricardo. Quando engravidei da segunda vez, ainda foi pior. Cheguei a pedir ao médico que me algaliasse, pois estava incontinente.

– Além disso não temos pressa. Vamos pedindo o vinho. Alentejo ou Dão?

Clarisse regressou, pálida, mas sorridente. Sempre que estava muito tempo de cabeça para baixo a vomitar, a tensão arterial pregava-lhe partidas, oscilando e fugindo no sentido inverso ao necessário. Trazia a blusa molhada. Com o esforço e a má posição no cubículo do WC, tinha sujado a blusa, a qual teve de molhar, o que fez com que transpirasse… Sentia-se miserável, só desejava ir para casa, deitar-se e fechar os olhos em total silêncio, e ainda tinha todo um jantar pela frente com colegas do marido. Ele deveria ter evitado tudo aquilo. Sentia-se cansada e o chão fugia-lhe. Pediria para irem para casa. Não. Não podia. Seria desagradável e muito antipático para os acompanhantes. Além de que Pedro era basicamente superior hierárquico de Ricardo e poderia cair mal, se bem que pareciam bem simpáticos. Aquilo deveria estar a passar. Um copo de água, por vezes, faz milagres. Tentaria acalmar-se. Talvez um pouco de ar na rua…

Pedro, educadamente, levantou-se quando regressou à mesa. Ricardo não. Estava fulo. Clarisse conhecia bem aquele rosto fechado, de dentes cerrados, e um sorriso frio que desastradamente fingia o que não podia.

– Podias ter dito que não te sentias bem. Não tínhamos vindo. Já é a terceira vez que vais à casa de banho em menos de meia hora…

Joana e Pedro, de olhos arregalados, não conseguiam dizer uma palavra, perante a grosseria, a humilhação e insensibilidade daquele jovem marido à espera do primeiro filho. Sentiam vergonha alheia. Joana não resistiu, ia falar, mas Clarisse não lhe deu tempo. De forma pausada, mas firme e com o volume acima do nível médio, ainda de pé, mão na barriga, explicou-se, olhando exclusivamente Ricardo nos olhos.

– Primeiro fui fazer chichi, depois fui largar gases, agora fui vomitar e agora vou-me embora. A nossa viagem acaba aqui. Espero que vás amanhã sem falta recolher a tua roupa. Quando a ALICE nascer serás informado.

Parido tudo aquilo, Clarisse nunca mais sentiu gases nem voltou a vomitar. Continuava a fazer chichi de quinze em quinze minutos, “mas tudo é um hábito”, resignava-se com humor. Começou, inclusive, a sentir aquilo que receou não lhe estar reservado: que o seu coração já palpitava noutro lugar. Seria a filha, ou estava a apaixonar-se? Sim, em nove meses, muita coisa nasce.

Moral da história:

Um urso é um urso e não será nada mais do que um urso, incluindo aos olhos de outros ursos. As coisas são mesmo assim.

By Bastien Oswald

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