Logo que entrou em casa, viu-a. Os seus olhos pareciam ímanes a colarem-se, com todas as suas forças, alheias a si própria – bem o sentia –, a serem atraídos para ela. Como se nada mais do que ali estava existisse.Como se, estando lá, lá não estivesse verdadeiramente. Nem a parede que, a cerca de três metros, enfrentava a porta de entrada; nem, à esquerda, a porta de duplo batente que com ela formava um ângulo reto; nem o amplo tapete branco que cobria aquele espaço a quem competia dar as boas-vindas a quem chegava; nem o complexo padrão do antigo parquet de madeira – pelo qual desde logo se apaixonara, a primeira vez que visitou o apartamento, e que demorou quase um ano a recuperar –; nem a consola suspensa, uma raridade feita de uma peça única de raiz de nogueira, que ela própria concebera; nem a ampla claraboia aberta no teto pela qual entrava uma dourada luz de fim de tarde de verão; nem o painel de azulejos antigos, ainda da fábrica Viúva Lamego, e que se espreguiçava tranquila e elegantemente numa moldura de madeira, nas costas da consola suspensa…
Nada. Nada ela viu, além daquela lagartixa que, por sua vez, a olhava com igual incredulidade, com igual ignomínia, imaginava, com igual detalhe, nojo e surpresa ou, para usar de rigor visceral, com igual asco. O mútuo escrutínio ainda lhe gelava mais o sangue no corpo. Uma lagartixa… Não, o animal, que denunciava uma postura absolutamente insólita – tinha o seu repugnante corpo reptiliano dobrado ao meio, com rigores de impossibilidade anatómica, na própria esquina superior direita da já apresentada parede frontal, no ponto exato em que se abria um segundo hall, este de acesso à cozinha – ‘aventosava-se’ na parede, era demasiado largo e claro, pelo que não devia ser uma lagartixa e sim uma osga. Quando enfrentamos o perigo devemos ser exatos em todos os pormenores do nosso adversário, em cada detalhe das suas características, e saber-lhe o nome, a espécie, a classe, se possível. Pode dizer-se que são os mínimos olímpicos, o mínimo indispensável, para melhor preparar o ataque. O seu medo de répteis – infundado, na opinião do marido, sempre tão fanfarrão –, fazia com que tivesse algum conhecimento acerca dos comportamentos e reações destes animais. Importava fazer algum movimento, algum barulho, mostrar-se o suficiente para que o animal registasse na sua memória instintiva que estava perante o perigo, pois os répteis tendem a imobilizar-se perante ele. Isso dar-lhe-ia algum tempo para preparar a próxima manobra, para elaborar o seu plano de batalha. Deixou cair a mala, fazendo-a deslizar do ombro até à mão e daí até ao chão, onde caiu com o ruído pretendido. Com o volume auditivo desejado. Também não se devia fazer demasiado barulho. Parar perante o perigo, para avaliar grau e intensidade do risco que se corre – e também para ver se é possível passar despercebido sem necessidade de confrontos – é um instinto primitivo, faz parte do cérebro reptilínio, e dele restam ainda fortes vestígios no próprio cérebro humano. Todavia, demasiado ruído, sinónimo de aflição, e a reação seguinte é a fuga, a qual antecede a terceira opção possível: o ataque, o confronto direto, a medição de forças. Tinha de evitar estes dois últimos cenários. Havia que manter a osga alerta, mas imóvel. Estava a ser bem-sucedida, mas tinha de conseguir ir até à cozinha sem que a osga saísse do sítio. Tinha de a vigiar.
A casa não era palacete algum, mas era demasiado grande para o risco de a perder de vista ser mais do que provável. Podia não mais saber por onde andava e com ela em casa, sabia-o bem, jamais se deitaria, ou sequer circularia pela casa, descansada. Deu um passo rumo à sua direita. A osga mexeu-se. Pouco. Mas muito rapidamente. Estava agora com o corpo todo visível, bem de frente. Era amarelada e tinha a barriga dilatada, formando um pequeno semicírculo de cada lado. Caso a osga conseguisse chegar ao painel de azulejos, por exemplo, com todo aquele padrão de ramificações brancas, azuis e amarelas, podia deixar de conseguir distingui-la. E se ela fosse para trás dos quadros, ou dos móveis, ou mesmo para dentro deles… Tinha de manter a calma, agir com prudência mas rapidamente. O efeito anestésico daquele providencial ruído podia estar a perder força. Ela fugiria. Porque é que o marido nunca estava em casa quando estas coisas aconteciam? Seria ele a tratar do assunto, enquanto ela correria a trancar-se no quarto – como, de resto, lhe apetecia nesse instante – de onde apenas sairia para ver o corpo já cadáver do inimigo, ou assistir ao momento em que o marido, abrindo a porta do terraço, a libertasse, como já o vira fazer. Tudo bem. Não era preciso que morresse, apenas que desaparecesse. Fosse eclipsada do seu mundo privado. Da sua casa. Sumisse. Melhor mesmo, e não valia a pena inventar cenários outros, era que morresse, mas conseguia viver com qualquer outro tipo de eclipse. O que lhe garantia que a osga, manhosa, ou apenas ambiciosa, não voltasse do terraço para o conforto da sala, onde experimentaria algum do mais atual design? Continuou a andar, sem grande alarido, mas teve o cuidado de abanar um braço no ar. Não a pedir tréguas. Antes a deixar claro que o perigo que ela representava ainda ameaçava o réptil. Da parte da osga, imobilidade total. Estava a funcionar. Até entrar na cozinha conseguiu, com algum contorcionismo, manter os olhos na osga, mas tinha de abandonar a vigilância ocular enquanto, com absoluto domínio dos seus gestos, com rigorosa coordenação de movimentos, abria um armário de repente e dele retirava um par de luvas de lavar a louça e as enfiava até quase aos cotovelos e, da lavandaria, onde guardava os acessórios de jardinagem, trazia umas galochas que ia já calçando pelo caminho, enquanto largava os sapatos pelo chão. Ainda bem, congratulou-se, que não estava de ténis. Como desejou um escafandro ou um fato espacial…
Estava a ser ridícula. Tinha de manter a calma e perceber que estava tudo do seu lado e não da desgraçada da osga. A osga não tinha luvas, galochas, capacetes, nem… vassoura. Era o cabo desta, na mão, que mais a acalmava, mas receava, ainda assim, que a osga lhe saltasse para cima, ainda que advertidamente, durante a sua fuga, a qual se adivinhava já a qualquer instante. Porque não vinha o marido? As luvas, reparou, eram de um amarelo quase fluorescente. Será que a osga distinguia a cor? Essa ou qualquer outra? O que veem as osgas? Estaria a avaliar o cheio a humano? Não podia partir já para o ataque. A osga mantinha-se imóvel, mas tinha a cabeça apontada para a porta de batente duplo e seria essa a direção que tomaria, até porque os movimentos dela chegavam ao animal do lado oposto. As portas duplas eram de carvalho maciço e estavam fechadas, mas é do conhecimento comum que répteis são escorreitos e escorregadios. Uma pequena fresta, como as que separam o término inferior de uma porta e o chão, era mais do que suficiente para que ela entrasse na sala e se perdesse no labirinto de livros para todo o sempre. E uma osga instruída seria ainda mais perigosa e temerária. Arrancou, ainda de vassoura na mão, na mão e em riste, não fosse ser perseguida, rumo à casa de banho social, a que estava mais perto, e de lá saiu com todas as toalhas a que conseguiu deitar a mão. A osga, ainda imóvel. De olhos postos nela, recuou e, a andar de costas e de lado, deslocou-se até à porta e entalou as toalhas debaixo da mesma como pôde. Tudo a postos. Era agora. Também podia ligar ao marido, apressá-lo a regressar e ficar apenas ali a vigiar a osga. Era ridículo e embaraçoso. Além de que a osga podia fugir e esconder-se, e o marido, incomodado com tamanho despropósito, podia até atrasar a sua chegada, deixando-a indefinidamente de plantão. Por vezes, o enfado tem mais força do que o medo. O apartamento seria, na visão de uma osga, todo um novo e gigantesco planeta a explorar. Tinha de tratar do assunto. Ergueu a vassoura no ar com cautela. Avançou com determinação, movida pelo pavor. Imaginava os seus próprios olhos abertos em modo de loucura e o seu rosto pálido e já com nuances de cinza. Catapultou as franjas da vassoura e pousou-a com inesperada pontaria sobre o corpo imóvel da osga. Ok. E agora? A osga não estaria morta. Já tinha matado uma outra, numa casa de férias em pleno Alentejo, em que passara uns meses sozinha a escrever a sua tese de doutoramento, e sabia bem quão resistente e ‘borrachoso’ é o corpo destes animais.
Tinha duas hipóteses: ficar estupidamente ali especada até que o marido chegasse a casa e permitir-se ser gozada por ele (porque adoraria ele rebaixá-la a propósito de tudo?), ou não (na verdade, ele preferia humilhá-la em público, e uma osga, convenhamos, não é plateia que se ambicione); ou podia deslizar a vassoura até ao chão, pressionando sempre contra a parede, de maneira a que pudesse, depois, pisar, com igual dose de receio e de satisfação, o animal, logo que o pousasse no chão. Optou por esta última hipótese. Com alguma perícia, que o medo consegue, por vezes, ser mestre, conseguiu trazer a farta cabeleira da vassoura até ao chão. No meio das cerdas pensou ter visto duas minúsculas luvas de um amarelo fluorescente a esbracejarem por entre o mar de cerdas. Gelou. Ocorreu-lhe, de repente, como se tivesse sido atingida por um raio de racionalidade, que ela era a osga. Sempre fora a osga. Se colocasse a descoberto o dengoso corpo daquele réptil que tanto pavor lhe provocava, teria reconhecido nele as suas próprias feições. Ela era a osga. Toda a sua vida tinha agido como aquela mesma osga. Assustando-se, sem reação, perante os abusos, perante os olhares de reprovação, perante a vida… Ela também não fugia, menos ainda se atrevia a enfrentar o inimigo. Não é a falta de medo que leva as pessoas a enfrentarem, de peito feito, as adversidades. Todos sabemos o que há a fazer, o que deve ser feito, a cada instante, principalmente quando a mensagem chega das entranhas. Apenas alguns avançam mesmo com medo e outros acobardam-se. Não é a falta de medo e sim de atitude e respeito próprio que faz com que nos acabrunhemos. Com que paremos, presos por ventosas a paredes de fantasia perante um par de olhos reprovadores ou acusadores. E se ela, no lugar de osga, avançasse? Não causaria medo ao marido, agora no seu lugar, no da mulher de vassoura na mão? Afrouxou a pressão que o pé direito exercia sobre as cerdas da vassoura. Nada. Nada? Teria fugido? Levantou o pé e manteve apenas a pressão da mão no topo do cabo a forçar a dobra das cerdas, sob as quais imaginava a assustada osga.
Conhecia esse bater do coração, essas pulsações a descompasso a roubarem o oxigénio e a falta deste a atordoar já o pensamento. Conhecia a dor repentina na base do crânio que impedia o pescoço de se virar, de olhar de frente o olhar de simpatia-barra-desprezo de quem calhava a assistir às cenas ‘cómicas’ do marido. “Estava a brincar contigo, pá. És completamente desprovida de sentido de humor. Não tens o mínimo poder de encaixe”, e, depois, meio entre dentes mas não suficientemente piano para que ela não ouvisse “Não sei o que vi nesta gaja”. Sim, ele podia mesmo dizer ‘gaja’. Ela fingia não ouvir, tal como a osga fingiu que os ruídos que ela fazia para a imobilizar não eram de um perigo real. Letal. Pelo menos não o suficiente para acionar o mecanismo de defesa seguinte: a fuga ou, num terceiro momento, o confronto. Qual seria melhor? Tinha de pensar no que mais lhe convinha. Levantou a vassoura, solidária, arrependida. Enquanto os olhos se lhe enchiam de lágrimas viu a osga fugir numa espécie de ziguezague, mas muito tímido, com as suas luvinhas amarelas néon e umas galochas um número acima. Teria sido, talvez, capaz de a esmagar, ainda assim, se corresse atrás dela. Mas já não podia. Ela era a osga, além de que pensar na sensação pegajosa de esmagamento daquele corpo sob os seus pés a incomodava, e não apenas metaforicamente. As lágrimas iam desfocando a osga, disformando-a, mas, em simultâneo, libertavam-na.
Olhou em redor: os azulejos eram, na verdade, uma fancaria de preço mínimo e elegância zero que o construtor – para quem Viúva Lamego era apenas a mulher do falecido Sr. Lamego – tinha aplicado do chão até meio da parede, como em tantos e tantos andares da periferia do bom gosto. A consola, não vale a pena fingir, não passava de uma linha de caixas de fruta que ela, em infindáveis serões que subtraiam horas preciosas ao seu descanso, mas que ajudavam a dividir as suas desilusões, a subtrair desencantos, tinha lixado e envernizado com ternura, mas que a seus olhos, era raiz de nogueira pura. A porta era de carvalho… folha de carvalho. Tão fina, tão fina que, certa vez, nela tinha enfiado uma unha e quando a puxou, empolou uma incrivelmente grande área da porta junto ao puxador. Colou tudo em segredo, para não ter de ouvir mais um “Desajeitada! Vê se te concentras no que fazes!” Se olhasse bem, ela, que conhece o sítio de cor, de tanto o ter vigiado a fim de garantir a sua manutenção, ainda perceberia a sua unhada e até reconheceria o cheiro a cola. Tinha inventado para si, uma vida que nunca fora real, uma realidade que nunca fora vida. Crianças sem brinquedos brincam com os sonhos. Ela tinha feito o mesmo. Tinha servido para se manter viva. Já não servia. Ia-se embora. Ia libertar-se da vassoura que a pisava há mais tempo do que aquele que achou possível.
Olhou para as mãos, que faziam as luvas amarelas tremer como pastos secos ao vento. Não estava tempo para galochas, mas sairia mesmo assim. Algo mais que fizesse, algo mais que distraísse o seu pensamento e podia perder o ímpeto, a força. A coragem. Não podia sair da pele da osga. Tinha de manter aquele medo espevitante no coração. Se voltasse a ser mulher, morreria. Não sobreviveria muito mais tempo. Entrou em contagem fluorescente, em contagem vital. Tinha um record pessoal a bater. Dali só sairia viva enquanto osga. Seria enquanto osga que teria de percorrer aqueles cem metros barreiras até à liberdade. Não pensou mais e… célere, deslizou pela parede, de narinas abertas e a língua bifurcada a sair-lhe da boca, uma língua radar, a captar informações preciosas, em busca do ar da rua. Em busca do ar da vida.
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