O último de nove filhos, a bem da verdade, não traz novidades a uma família. É apenas mais um. O único ‘mais’ que se lhe assiste é o de mais novo. Claro que acaba por ser desejado, talvez nem por isso planeado, mas lá para o nono mês já se ultrapassou a fase calamitosa, já se chora menos e já estão organizados os restos de coleção de enxovais anteriores. Claro que haverá digladiações maritais. Que o pai culpará a mãe por não ter feito aquela operação ‘estética’ uterina que bloqueia trompas e com esta acusação marcará um golo. Claro que a mãe rirá de escárnio, dizendo que se ele estava tão empenhado em interromper os desígnios divinos para aquela prole, deveria ter sido ele a submeter-se a uma vasectomia, e com isto ela empatará o jogo. No final, refugiar-se-ão no credo cristão e naquele ato de fé insano que assegura que Deus tudo criará. Deus apanhará uma fúria pois se há assunto onde nunca se meteu – não obstante a milenar insistência da Igreja – foi no coito dos outros, era o que mais lhe faltava! Já tinha o mundo para gerir e ainda queriam que providenciasse as finanças domésticas e servisse de método contracetivo? Cada um que soubesse de si, já que ele teria de saber de todos, e se havia coisa em que nunca se metera foi em lençóis alheios. Deus pode até dar vida, mas não diz a quem quer que seja quando e como deve exercer a sua sexualidade ou mesmo se dela deve fazer uso ou para que fins a deve exercer. O que seria?! “Abstenham-se, que eu faço o mesmo”, era sempre o que dizia Deus entredentes, para não explodir de ira. Sim, Deus também tem o seu temperamento.
O irmão mais velho dará bela boa-nova apenas uns anos depois, ao contar o número de ingressos pagos para uma qualquer atração, e o penúltimo regozijará de felicidade pois pelo menos um dos herdeiros lhe deverá obediência e sempre é mais uma cabeça com quem dividir carolos e responsabilidades. A vida nas famílias numerosas é uma animação. Onde colocar mais uma cama, quando os beliches já se acastelam por todas as paredes da casa? Como organizar uma escala, mais ou menos justa, de rotatividade à mesa? Quem terá de comer mais rápido, a fim de liberar louça para os últimos à mesa? A quem deixar nove pestes de uma só vez para uma noite, ou apenas umas horas de descanso dos pais? Como determinar qual dos miúdos está a chorar e de onde vem o choro? De que forma fixar em que escola deixar quem? Haverá pais no final de tudo isto? Vai havendo, mas com sério prejuízo da sanidade mental de todos os envolvidos, porque isto de espalhar por aí que “o melhor do mundo são as crianças” tem sido demasiado sobrevalorizado, quase sempre sem exceção, precisamente por aqueles que não têm crianças. É certo que as crianças crescem e vão galgando patamares de independência, mas isso, é sabido, demora as suas décadas. Isto quando a educação é bem-sucedida, o que nem sempre é certo, por indeterminadas razões, que envolvem desde o ADN à qualidade da manicura paterna e aos dotes argumentativos maternos.
Neste caso particular, os lamentos ainda não tinham cessado por completo, por conta de mais uma boca para alimentar, quando os progenitores se deram conta de que não tinham nome para o garoto. Nono, por questões de ordenação sequencial, tinha sido o desajeitado petit nom pelo qual trataram o feto desde o início, pelo que Leonor, caso fosse rapariga, era uma possibilidade, na medida em que poderiam acrescentar uns chapelitos aos ‘ós’ e lá manter Nônô, como abreviatura. Mas se acham que o miúdo colaborou, estão enganados. Vida de pobre nunca é fácil, nem nos detalhes. Facto que os pais apenas perceberam no dia em que nasceu já que, ao nono parto, já ninguém se entusiasma com questões como: “será rapaz ou rapariga”? Simplesmente não se quer saber. Também, que diferença faz? Já se tem uma mão cheia de uns e de outros. Sem surpresas, mas ainda com alarme, no próprio dia do parto – ao qual apenas a mãe assistiu, não que o pai não tivesse insistido em ir, mas logo a mulher ralhou, sem dó nem espaço para contrariedades, que não precisava mais do que da equipa médica, reconhecendo a manha de que o marido se servia para não ficar sozinho com as oito pestinhas –, a criança lá nasceu e, não bastando ser já o nono, nasceu rapaz. Retomaram-se as aflições em torno do nome e porque já tinham esgotado todos aqueles de que mais gostavam, havia mesmo algumas redundâncias como Carlos e Carloto, o miúdo regressou a casa ainda sem nome próprio. Um assunto secundarizado perante uma outra evidência, por demais horrenda para ser descurada ou até esquecida.
O bebé era ME-DO-NHO. Nasceu roxo e roxo se manteve, com a cabeça em ogiva imperfeita, geometria que jamais se desfez, os olhos demasiado unidos e híper salientes, uma testa proeminente para não dizer estratosférica, um queixo comprido e bicudo e já com um dente de leite cariado. Este último dado, uma excentricidade biológica, a qual nem os médicos mostraram interesse em investigar, tão assustadora era a criança. A única coisa que se apressaram a tentar perceber foi se tal grau de ausência de beleza tinha algum elo de ligação com alguma doença. Logo que asseguraram que nada se passava com a criança, que era saudável e perfeita – aqui, perfeita é um conceito muito, muito lato –, correram para longe, mas não sem antes assinar a alta.
Desanimados, os pais lá levaram a ‘coisinha’. O que havia a fazer? Não mexer, para não estragar mais e (tentar) amar o rebento. A mãe ainda planeou subtrair outra criança do berçário, mas logo percebeu que a sua pequena criaturinha estava num quarto isolado, seguramente para não assustar os restantes pais de visita ao piso de obstetrícia. A chegada a casa deu brado. Correção, deu gritaria e a fuga de alguns dos irmãos mais novos e impressionáveis, crentes de que aquela coisa embrulhada era um enviado do demo. Lá lhes explicaram que não, que era o mano, um bebé… Piorou tudo. Os mais novos insistiam em que deviam deitá-lo no lixo, o que incitou o macabro humor dos pais, os mais velhos alucinaram com a primeira certeza de tal afirmação: se era mano, teriam de viver com ele. Voltaram os gritos, a berraria e horas infinitas de risota. É que depois da estranheza, a bizarra família percebeu que a feiura do bebé era de tal forma extrema que, dando uma volta completa ao conceito de feio, a criaturinha chegava a ser divertida. É que, bolas?!, como conseguiram eles a proeza de tal monstrengo?
A família paterna, que se julgava uma elite em comparação com a família da nora, logo foi informando que a criança tinha bem a quem sair e que era a cara chapada de uma mistura de traços da família materna. Como resposta, a nora decidiu nesse instante que nome dar ao nono. Teria o nome do avô paterno, Paulo, cujo rosto em tudo lembrava o do seu Benjamin. Lamentou querer manter esta pequena vingança, já que não gostava do nome Paulo, e lamentou ainda não se ter lembrado do nome Benjamim ao invés. Não apenas era giro como o mais adequado, já que decidira que aquele seria o seu último filho, pois jurara a si e à sua santinha que só voltaria a ter sexo após a menopausa. O marido discordou, meio alucinado, mas sempre que olhava para o filho mais novo, aceitava que era a decisão mais acertada. Depois daquele bebé, muitas outras possibilidades estéticas podiam acontecer e se havia coisa que aquele pai aprendeu a respeitar foram os caprichos da genética.
Os mais difíceis foram os primeiros anos, depois, todos se habituaram ao petiz, incluindo os animais da casa, o que não quer dizer que, de quando em vez, quando, ainda estremunhados, o encontravam no escuro a caminho do último chichi da noite, não apanhassem, qualquer um deles, sustos de morte, inclusive os pais. O pai optou mesmo por não usar óculos quando a visão ao perto começou a falhar. Sempre era uma forma de não dar de caras com o filho, o qual apenas via na perfeição com alguns metros de distância o que, parecendo que não, sempre dava alguma tranquilidade ao coração sobressaltado. Na escola, os irmãos descobriram um dado de vital importância para a sobrevivência do clã. O miúdo funcionava como azeite na água: ninguém chegava perto. Era ele a chegar e a restante turma a debandar. O pavor que a feiura de Paulinho causava era um escudo protetor que todos os irmãos usaram enquanto puderam, como puderam ao longo de toda a vida. Apenas não surtia grande efeito em encontros motards, vá-se lá saber porquê, mas fora isso, era o melhor bilhete de entrada (por acharem que a criatura era uma espécie de mutante e facilitarem-lhes o acesso, por vezes gratuito) e de saída de inúmeras situações (lá está, por a cara de Paulo ser um ótimo incentivo à fuga).
Os mais idosos da família, lá iam fazendo eco da sabedoria popular, ou algo equivalente, tranquilizando os pais, pois era sabido que criança feia resulta em adulto bonito. A essa réstia de esperança se agarraram os progenitores enquanto lhes foi possível, mas esse era um galho cada vez menos resistente ao peso da aflição, já que esta aumentava com o passar dos anos. No dia em que Paulinho, já então cognominado de Criatura Mais Horrenda do Universo – aka CRIMHU –, completou quinze anos, a maçã de Adão se tornou proeminente, a voz adotou sonoridade mais grave e um imberbe buço assolou acima do seu proeminente lábio superior, os pais acorreram ao seu quarto, achando que o milagre poderia ter acontecido no decurso dessa noite. Se algo aconteceu foi no sentido de somar mais umas pazadas de neve à avalanche de monstruosidade com que o pobre miúdo tinha nascido e que parecia, agora, pronta a desabar montanha abaixo. No simples espaço de uma noite, Paulinho tornou-se estupidamente hirsuto em todo o espaço de pele visível – ninguém se mostrou interessado em ver as zonas ocultas –, enquanto, na cabeça se abria uma ampla clareira bem no cimo. Como podia uma calamidade irromper no meio de outra? Era como atear um incontrolável incêndio em pleno dilúvio. Não era possível. Mas o impossível ali estava, para total desânimo dos pais. Habituado às suas idiossincrasias e hábil no uso das mesmas, apenas Paulinho parecia conviver às mil maravilhas – que estranha escolha de palavras, neste turbilhão de boçalidades físicas –, com a sua aparência. Até porque não tinha noção das suas fracas capacidades intelectuais, pelo que se considerava inteligente. Todavia, nisto das fatalidades, essa ingenuidade e inocência são necessárias, já que permitem um grau suficiente de abstração e inconsciência para que se procurem vocações e se aja em liberdade, e liberdade era coisa que sempre tivera. Como não ceder total espaço de manobra a alguém que já nasce tão desfavorecido? Num mundo de aparências e faz de conta, como não ser solidário com os Paulinhos desta vida? Seres de fila única, onde ninguém se atreve a entrar? Clareiras da humanidade. Ilhas de gente.
Paulinho, que longe de entender o repúdio que causava, já tinha, ainda assim, percebido que não era tão lindo quanto isso (ou quanto fosse o que fosse, a bem da verdade), percebeu ter todo o espaço do mundo e sem barreiras, já que todos se afastavam à sua passagem. Tudo em que pusesse o pé ou apenas os olhos, era seu. Se cheirasse a morte ou a papas de serrabulho, o efeito não seria tão eficaz. Assim sendo, lá descobriu, relativamente cedo, que sabia cantar, ou algo semelhante a saber cantar. Mais. Percebeu que no mundo das artes, mais liberais e abertas à diferença, especificamente nos universos mais adeptos de consumos psicotrópicos, como bandas rock, ou ambientes noturnos do género e em mood steampunk, feiras populares, circos de horrores, bares de alterne ou no rico e muito alternativo submundo das parafilias, havia espaço para si. Um enorme espaço. Começou por uma tímida página no Facebook a que deu o nome de ‘Feio nos Dentes… e Não Só’, onde se começaram a reunir os não belos deste mundo. Avançou para um blog, o ‘UgglYou’ e, num ápice, tornou-se uma espécie de celebridade entre os proscritos da beldade. Um fenómeno que lhe trouxe notoriedade, fama e até avultadas somas de dinheiro, já que era um nicho para anunciantes de produtos de que os bonitos não necessitam: espelhos defeituosos, super lâminas de escanhoar pelos lupinos, tesouras de poda para unhas, fio dentário extra grosso, pentes sem dentes para cabelo complexo, loções várias para várias questões cutâneos, capilares, halitose e problemas diversos. Assuntos que raramente acometem os belos deste mundo ou, quando tal acontece, dificilmente são obstáculo para a gente gira, dissolvido que está em quilos de outras coisas tão atraentes que ninguém repara nos detalhes, ainda que desagradáveis ou de odor duvidoso. O mesmo não acontece com os feios. Nestes, tudo é exacerbado e elevado ao expoente da sua feiura. Culpa nossa, de quem está de fora. De quem estranha o feio. Azar o deles, coitados!
Foi, por isso, com uma enorme sensação de alívio e de pertença que, numa das suas primeiras atuações numa festa popular de verão, por conta do ‘UgglYou’, onde publicava amiúde temas roqueiros que versavam sobre as contingências de quem nasce feio e outras coisas prementes, que cofiavam a autoestima dos mais desfavorecidos fisicamente – com recurso a algum humor e certo mau gosto em doses e num misto suficientemente apelativo e macabro para suscitar um certo culto e seguidores de todo o lado –, Paulinho encontrou a sua ‘turma’. Uma turma que o seguia já em palestras e encontros de autoajuda para pessoas como ele próprio, ou quase. Gente singular, sem grandes dívidas à beleza ou, outra parte delas, sem grande apreço por estéticas comumente aceites. Paulinho percebeu que tinha chegado a casa. Não que a sua verdadeira casa não fosse confortável ou acolhedora, mas porque sentia que esta, sim, era a sua gente. Os seus pares. Os seus iguais na diferença.
Claro que esta era a romântica versão de Paulinho. A verdade, pura e crua, tão pura e crua como um carpaccio de novilho ou mesmo um medíocre ceviche de garoupa, é que a sua presença reconfortava toda aquela comunidade de rejeitados, que nele viam tão-somente um caso tão pior do que o seu, mas tão pior, que lhes permitia colocar tudo em perspetiva e até conseguir – com a luz certa e a falta de vista exata de não sei quantas dioptrias e com um necessário índice de alcoolémia –, conseguir, como íamos dizendo, acharem-se um pouco menos feios. Além de que havia entre eles alguns adeptos da parafilia que se excita com gente feia e, nesse campo, ele estava em franca vantagem. Ele era o top of the tops, o indiscutível número um, o pai de todos os muito feios, o mentor do ‘para lá de horrível’, a Miss Universo dos medonhos, porque Paulinho era, de verdade, neste ou noutro planeta, a Criatura Mais Horrenda do Universo. O mais curioso, é que nunca nos conseguimos ver de fora. O mais divertido – resultante do ponto anterior –, é perceber que mesmo os feios têm preconceitos e repulsa perante outros feios.
Na vida, há coisas em cada um de nós que parece que nunca mudam. Um sinal de nascença, um traço de caráter, ou, no caso de Paulinho, uma aparência de se fugir para muito longe. Mas Paulinho não apenas era feliz, como colocou a sua horripilância a faturar, a trabalhar para si, contrariando todas as suas desvantagens, principalmente a idiotice. A cereja no topo do ‘tolo’, foi que encontrou o amor nos braços de uma bela míope com um corpo não muito vergonhoso, que se encantou com o sucesso empresarial de CRIMHU. Nesse ponto, Deus não dormiu. Paulinho não percebia que ela era interesseira, enquanto ela não via como ele era realmente feio. Bem sabemos que há amores que assentam em coisas bem mais estranhas do que isso.
Moral da história:
Não lute contra o óbvio, torne-o antes seu aliado. Ah, e aprenda música, é sempre um bom recurso, e abrace todos aqueles que vêm por bem. E depois, é bem verdade, mais vale feio do que morto. mais uma coisa: O amor apenas é cego quando é interesseiro!
Deixe um comentário