Esta receita tem um passado e já nos chega plena de bagagem, de mão, de cabine e de porão, requerendo um início ao estilo ‘Era uma vez…’ Não sabemos ao certo quantas vezes eram de facto, mas com a economia no patamar deslizante em que se encontra, assumimos claramente uma única vez, no singular, que não é hora de extravagâncias. Também não conhecemos bem a história, pelo que inventaremos à farta, que a cozinha é o local ideal para fartazanas e em cada receita devemos deixar o nosso contributo criativo

Pois bem, era, então, uma vez uma bailarina russa, que para efeitos desta narrativa tinha coração, alma, mente, espírito, coragem e corpo ucranianos, estando apenas de passagem por Moscovo onde dava literalmente ‘uma perninha’ na Bolshoi Ballet Academy. Ora, num belo dia – pelo menos mais bonito do que os dias regulares – um charmoso pasteleiro neo-zelandês encantou-se com as piruetas da bailarina, cuja imagem já rodopiava na sua cabeça há demasiado tempo para que não acabasse por o inspirar. Quer dizer, inspiração foi aquilo que ele chamou a um verdadeiro desastre culinário do qual nunca desistiu, acabando por aceitar os facto e aperfeiçoar a técnica do caos. Criou assim uma das mais delicodoces sobremesas de todo o universo artístico e não só. Um verdadeiro embate entre uma arte plástica de texturas e consistências várias feita, e uma arte performativa que acaba sempre em joanetes e outras deformações podológicas. Conseguiu encafuar uma montanha de fofo merengue no interior de algo crocante e com ligeira forma de bolo, naquilo que se pode chamar de inesperado Pas de Deux. Não tem a graciosidade de um pliè perfeito, mas é bem mais saboroso, ainda que não passe de um grande e talvez um pouco mais sofisticado, ou apenas mais afamado, suspiro deste mundo.

Acontece que o garboso neozelandês não passou por Portugal quando andava às voltas com a questão do nome a dar ao seu achado cremoso, além de que continuava muito embeiçado pela dita bailarina, por isso, perante a pia batismal dos pasteleiros, que é uma espécie de fondue de chocolate, não lhe ocorreu nada mais do que o nome da bailarina russa que, afinal era uma espia ucraniana. Foi assim que nasceu a Pavlova. Quer dizer, a sobremesa, já que a que andava sobre o palco nasceu bem antes disso e chamava-se Anna Pavlova.

Em relação ao Qualquer Coisa é mesmo qualquer coisa, que isto de nos limitarmos a kiwis, frutos do bosque ou da mata também já teve os seus dias. Seja inventivo.

Por hoje é tudo, amigos da cozinha culta e intelectualizada.

Ingredientes:

– Doses industriais de açúcar

– Claras de ovos

– Natas gordas

– Um esguicho de vinagre

– Um sopro de açúcar em pó

– Qualquer coisita de amido de milho

– Qualquer coisa colorida para enfeitar, caso você seja uma pessoa Pantone e garrida, caso contrário, branco e preto é um classico

Basicamente, falamos de açúcar e natas. O resto é o milagre culinário da transformação.

Tempo de preparação:

Ui, só de forno, esta menina pede 70 minutos e depende sempre da intensidade do forno. Tudo isto já depois de ter batido e misturado bastante e ainda ter de dar forma à donzela. Depois ainda há a considerar o chantilly, lavar a fruta, triturar parte dela para obter algum caldo, se assim se desejar, enfeitar… Não vale a pena mentir: é moroso e estafante. Espero que goste de comer com os olhos, pois de facto é uma sobremesa impactante do ponto de vista visual. Os invisuais e amblíopes que nos perdoem se forem capazes.

 

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